Em Spitsbergen, na Noruega, uma aurora boreal brilha sobre um dos radares da estação científica EISCAT.
Texto: Eva van den Berg
Fotografias: Olivier Grunewald
As auroras boreais e todo o complexo sistema meteorológico que as gera continuarão a maravilhar-nos nas latitudes elevadas e ocasionalmente nas latitudes mais temperadas, como as do nosso país. Continuarão a emergir em intervalos incertos, com fases de proeminência e outras de ausência prolongada.
Num artigo publicado em 2005 na revista “Solar Physics”, que aborda o contributo dos oficiais alemães Jacob Chrysostomo Praetorius e Henrik Schulze ( que registaram pelo menos 18 auroras boreais na região de Lisboa confirmadas entre 1781 e 1785, em 1789 e 1793), revela um comentário de Praetorius em 1793: “A Aurora outro dia taõ frequente naõ apareceo.” Tal como eles, resta-nos olhar para o céu nocturno e esperar por novo espectáculo celeste.
“As duas auroras boreales rayantes de 5 de maio e de 8 de octubro naõ foraõ das maiores”, assegura um manuscrito de 1783 da autoria de um militar Alemão, Jacob Praetorius. Por “rayantes”, entendem-se as auroras que os especialistas hoje classificam como “descontínuas”, fortes mas relativamente raras.
O militar, porém, não descrevia um fenómeno avistado no Norte da Europa. Na verdade, Praetorius descrevia avistamentos em Lisboa.
Em 1762, desembarcou na capital o conde Guilherme de Schaumburgo-Lippe, o célebre conde de Lippe. Vinha numa missão delicada: os governos francês e espanhol exigiam que Dom José I proibisse a ancoragem de navios ingleses nos portos nacionais, atitude que forçou o marquês de Pombal a procurar consultores para reorganizar e preparar para a guerra o exército português. A missão recaiu durante dois anos sobre os ombros do conde de Lippe, mas esta não é uma história militar. Com o conde alemão, chegaram dois engenheiros militares: Jacob Chrysostomo Praetorius e Henrik Schulze. São eles que nos interessam.
Praetorius e Schulze tomaram a cargo a observação diligente de variáveis climáticas, como a temperatura, a precipitação, a pressão atmosférica, a humidade e a nebulosidade dos céus. O primeiro oficial permaneceu em Lisboa com o conde de Lippe entre 1762 e 1764 e regressou depois entre 1776 e 1798, o ano da sua morte. Metódico, compilou todos os fenómenos meteorológicos que observou e foi publicando as suas anotações no “Almanaque de Lisboa”. Foi graças a este par de oficiais que os investigadores José Vaquero (da Universidade da Extremadura) e Ricardo Trigo (da Universidade de Lisboa) conseguiram recuperar um fragmento importante da história da meteorologia em Portugal. Ao estudarem as observações dos dois alemães, descobriram que houve pelo menos 18 auroras boreais na região de Lisboa confirmadas entre 1781 e 1785, em 1789 e 1793.












Hoje, estamos em pleno ciclo solar 24. Por outras palavras: este é o vigésimo quarto ciclo (cada ciclo dura cerca de onze anos) desde que se iniciou em 1755 a contagem sistemática das manchas solares, indicadoras da actividade do Sol. Segundo a NASA, o apogeu do ciclo actual ocorreu em meados de 2014, mas aparentemente 2015 será também um ano em cheio. Haverá portanto inúmeras oportunidades para observar auroras boreais, que se encontram intrinsecamente ligadas à actividade solar e ao vento solar que esta intensifica.
A existência dos ciclos solares foi descoberta pelo astrónomo alemão Samuel Heinrich Schwabe que, entre 1826 e 1843, observou diariamente nos dias de céu limpo a evolução das manchas solares, visíveis através de um telescópio. De início, não se interessou pelo fenómeno. Ele pretendia comprovar a presença de um hipotético planeta novo na órbita de Mercúrio, um pequeno planeta (ao qual chamaria Vulcano) que, estando tão perto do Sol, seria muito difícil de observar. Por isso, optou por tentar “caçá-lo” quando ele passasse em frente ao astro-rei, assumindo a forma de uma mancha escura. Schwabe nunca encontrou o planeta, mas observou a maneira como as manchas solares evoluíam com o passar do tempo.
Não era a primeira vez que alguém se apercebia da sua existência. Galileu já o fizera e os astrónomos chineses também. Mas Schwabe centrou-se na sua cadência, contou metodicamente as manchas e, em 1843, publicou um artigo que sugeria a existência de um ciclo solar com dez anos de duração, posteriormente alargado a 11. Foi essa descoberta que levou outro grande astrónomo, o suíço Rudolf Wolf, a recolher toda a informação disponível para estabelecer um padrão desses ciclos. Wolf conseguiu recuar até ao primeiro ciclo de que existem provas concretas: em 1755, o ano do grande sismo de Lisboa. É graças ao seu trabalho que sabemos estar agora no ciclo solar número 24.
À partida, poder-se-ia pensar que a actividade solar pouco afectaria as auroras boreais, mas são estas manchas (regiões mais frias e obscuras de intensa actividade magnética) que costumam ser acompanhadas de gigantescas erupções na coroa. Em épocas de maior actividade, intensifica-se o vento solar que, ao interagir com a magnetosfera da Terra, origina as auroras boreais junto dos pólos.
Uma gravura anónima do século XVI ilustra uma aurora boreal avistada em 1570 na cidade de Kuttenberg, na Boémia. As auroras terão sido comuns na Europa no fim do século XVI e duzentos anos mais tarde, devido a intensa actividade solar nesses períodos. A crença popular considerava-as sinais de catástrofe iminente, ou aviso divino. Biblioteca Crawford / Observatório Real, Edimburgo / SPL / AGE FOTOSTOCK
A origem destas luzes fantasmagóricas intriga há muito os cientistas. Alguns tentaram simulá-las através de experiências complexas, como o físico norueguês Kristian Birkeland no século XIX. Birkeland conhecia o modelo de escala reduzida do planeta Terra construído no século XVII pelo médico pessoal da rainha Isabel I de Inglaterra, William Gilbert, a partir de uma pedra magnetizada. Gilbert chamou-lhe Terrella, que em latim significa “Terra pequena”, e Birkeland construiu também o seu, inspirando-se no do britânico. Depois, colocou a esfera magnetizada dentro de um tanque de vácuo e bombardeou-a com raios catódicos, as correntes de electrões que se podem observar experimentalmente no interior destes espaços estanques a baixa pressão. Conseguiu desta forma reproduzir pseudo-auroras minúsculas, fruto da interacção entre o gás residual do tanque, o campo magnético da esfera e os raios catódicos, provando que os electrões, sob a influência do campo magnético, se dirigiam para os pólos da Terrella, onde orbitavam, emitindo luz.
Em pleno século XXI, a reprodução da beleza cósmica das auroras boreais continua a estimular a imaginação dos cientistas, mas a tecnologia é mais avançada. Jan Egedal, investigador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts nos Estados Unidos, demonstrou em 2012 que a região activa na extremidade da magnetosfera da Terra é aproximadamente mil vezes maior do que se pensava e que nela liberta-se uma quantidade de electrões muito superior à que se supunha até então. Conseguiu-o graças a uma complexa simulação levada a cabo num dos supercomputadores mais potentes do mundo, um equipamento informático denominado Kraken, composto por 112 mil processadores. Jan utilizou 25 mil para seguir durante onze dias os movimentos de 180 mil milhões de partículas de vento solar durante o processo de reconexão das linhas do campo magnético terrestre, período durante o qual libertam mais energia.
O astrofísico francês Jean Lilensten, director do Laboratório de Planetologia de Grenoble, é um dos maiores especialistas em actividade solar e na influência que esta exerce sobre os planetas do sistema solar. Admirador de Birkeland, Jean Lilensten construiu em 2008 um artefacto chamado Planeterrella, um simulador de auroras boreais que replica diferentes interacções entre planetas e estrelas. Fizeram-se aliás várias réplicas da sua invenção, que circulam agora pelo mundo.
Lilensten é especialista em condições meteorológicas fora da atmosfera terrestre, algo de grande interesse para a ciência e para a prevenção dos danos que as tempestades magnéticas podem causar aos satélites e à rede de telecomunicações terrestres em geral. Em Longyearbyen, no arquipélago norueguês de Svalbard, ele e outros colegas de Grenoble e das universidades de Oslo e de Svalbard, estudam a polarização da luz das auroras com um pequeno telescópio de alto rendimento. “Em astronomia, as observações baseiam-se quase exclusivamente na análise da luz emitida ou dispersa pelo corpo estudado. Um dos parâmetros de luz actualmente utilizados é a sua polarização, que mede a forma como varia o campo eléctrico de uma onda ao longo da sua trajectória de propagação. Essas variações informam-nos sobre a composição e a energia contida nas partículas solares que penetram na atmosfera, dando-nos assim uma ideia da intensidade de uma tempestade tormenta solar em formação”, explica.
Ao longo da história, várias tempestades solares colossais, provocadas por manchas solares maiores do que o nosso planeta, causaram danos na Terra. Recentemente, em Julho de 2012, ocorreu uma de grandes dimensões à qual escapámos por pouco. Se tivesse interagido com a nossa magnetosfera, poderia ter afectado os sistemas de comunicação do planeta, como sucedeu no final da década de 1980, com particulares implicações na província canadiana do Quebec.
A pequena escala:O astrofísico Jean Lilensten gosta de divulgar os fenómenos meteorológicos espaciais. A sua Planeterrella ajuda-o bastante nessa tarefa. Por enquanto, existem 71 réplicas deste visualizador de auroras boreais em diferentes organizações mundiais. A sua invenção permite também simular interacções entre planetas e estrelas, como as existentes entre Ganimedes e Júpiter, e mostrar jorros e anéis estelares. Lilensten cede gratuitamente os planos de construção às instituições interessadas e colabora na execução deste dispositivo que fascina todos os públicos.
Enquanto a beleza das auroras boreais cativa os comuns mortais, os especialistas desenvolvem esforços para obter mais dados sobre essas tempestades potencialmente perigosas. Deveríamos estar preparados para essa eventualidade, mas não estamos – como se verificou numa simulação de tempestade solar extrema realizada pela NASA e pela Comissão Europeia em 2010, com vista a avaliar a nossa capacidade de resposta em caso de embate geomagnético.
As conclusões foram contundentes: se hoje sofrêssemos um “evento Carrington” como o de 1859, o colapso seria gigantesco. Após a simulação, foram elaboradas recomendações para os governos, tanto a nível nacional (desligar as centrais electroprodutoras e as telecomunicações antes do impacte da tempestade solar, por exemplo) como a nível doméstico, procurando ensinar as famílias a enfrentar um “apagão” tecnológico.
Existem apenas 12% de probabilidades de sermos atingidos por uma grande tempestade solar nos próximos dez anos, segundo os cálculos de Peter Riley, assessor da NASA. É uma percentagem baixa, mas não deve ser menosprezada. Ao contrário do que acontecia há menos de um século, a interligação actual entre territórios torna-nos muito mais frágeis e dependentes uns dos outros.
As auroras boreais e todo o complexo sistema meteorológico que as gera continuarão a maravilhar-nos nas latitudes elevadas e ocasionalmente nas latitudes mais temperadas, como as do nosso país. Continuarão a emergir em intervalos incertos, com fases de proeminência e outras de ausência prolongada. A última entrada validada por Vaquero e Trigo no seu artigo de 2005 na revista “Solar Physics” sobre o contributo dos oficiais alemães para o conhecimento deste fenómeno revela um comentário de Praetorius em 1793: “A Aurora outro dia taõ frequente naõ apareceo.” Tal como eles, resta-nos olhar para o céu nocturno e esperar por novo espectáculo celeste.