Reconstituição conjectural da configuração do teatro romano de Lisboa após as obras de remodelação que lhe teriam dado maior monumentalidade. O edifício tem sido escavado desde 1960, com vários hiatos. Por baixo de vários prédios vizinhos, esconder-se-ão seguramente outros vestígios.
1 Entrada principal; 2 Acesso às bancadas; 3 Fachada cénica; 4 Palco; 5 Estátua de Silénio; 6 Espaço semicircular; 7 Baixo relevo de uma Musa; 8 Bancadas; 9 Anel superior
Ilustração de Anyforms Design /Museu do Teatro Romano de Lisboa /Modelação 3D: Carlos Loureiro
Nem todas as condenações póstumas foram cumpridas. A renovação do Teatro Romano de Lisboa foi dedicada ao imperador Nero no ano 57 d.C. por um liberto poderoso. Quando Nero caiu em desgraça, o seu nome não foi apagado.
No ano 68 depois de Cristo, o imperador Nero foi assassinado nos arredores de Roma e o seu nome, o último da linhagem dos Júlios-Cláudios, foi ostracizado. No período conturbado que se seguiu até Vespasiano assumir o trono e iniciar um período de apaziguamento, no Verão de 69, foi emitida uma damnatio memoriae, uma condenação póstuma do imperador tombado, que levou ao desfiguramento de estátuas e à destruição de epígrafes em vários pontos do império. Em Felicitas Iulia Olisipo, porém, tal não sucedeu. Recuemos alguns anos. No ano 57 d.C., o teatro da cidade fora restaurado com requinte, sem poupar despesas: o mármore provinha de Trigaches, no Alentejo, e da serra de Sintra; foram contratados os melhores executantes do império para concluir aquilo que a arqueóloga Lídia Fernandes, coordenadora do Museu do Teatro Romano (MTR) de Lisboa, designa por “obra de regime”. O poeta Terêncio revela que, no mesmo ano, em Roma, Nero inaugurou um anfiteatro de madeira. Não foi certamente coincidência a remodelação de um teatro em Lisboa precisamente no mesmo ano.
A importante inscrição. “A Nero Cláudio Augusto Germânico, filho do divino Cláudio Germânico, neto do César Germânico, bisneto de Tibério César, trineto do Divino Augusto, pontífice máximo, no seu terceiro poder tribunício, imperador pela terceira vez, cônsul duas vezes e designado para a terceira. O proscénio e a orquestra com ornamentos, o augustal perpétuo Caius Heius Primus ofereceu.” O estudo pétreo permitiu confirmar que o mármore (cinzento) provinha de Trigaches e o calcário margoso (rosa) da zona de Sintra.
No proscénio, o muro que delimitava a zona dos espectadores da área destinada aos actores, foi gravada uma inscrição requintada, encimada por várias estátuas de silenos, de mármore branco, proveniente de Vila Viçosa.
O texto, colocado no ponto central do teatro, no local para onde todos os olhos se concentrariam durante as sessões artísticas, prestava tributo a Nero, listando o pai, avô e bisavô do imperador e sublinhando a ligação dinástica a Augusto, o pai da pátria.
Depois, o texto referia o benfeitor, o membro da oligarquia de Felicitas Iulia Olisipo que custeara a intervenção arquitectónica e que tinha a intenção clara de, honrando o imperador, colocar o seu nome na mesma sequência. Esse homem era Caius Heius Primus.
Existe alguma informação biográfica sobre Caius. Tratava-se de um liberto, como havia muitos no reinado de Nero, mas fora libertado por uma família importante, que figura em inscrições por todo o Mediterrâneo, revelando a extensão dos seus negócios. Estavam vedadas aos libertos algumas carreiras na administração, mas não a possibilidade de ascensão social e de enriquecimento. Caius seria certamente um homem com infiuência, que apoiou projectos na cidade e que fez questão de gravar neles o seu nome. Era mecenato, mas não anónimo – era uma afirmação de autoridade.
O proscénio. Só os actores subiam ao proscénio, um palco em plano mais elevado sobre a audiência, onde exerciam a sua actividade teatral. A orchestra era o espaço semicircular defronte do proscénio, destinado à elite citadina – correspondia à plateia dos teatros actuais. Dos vários silenos que certamente estariam no local, chegaram-nos dois. Um pertenceu à família dos marqueses de Rio Maior e foi comprado pelo município de Lisboa. A outra estátua foi oferecida ao Museu Etnológico de Belém, actual Museu Nacional de Arqueologia.
Ilustração de Anyforms Design /Museu do Teatro Romano de Lisboa /Modelação 3D: Carlos Loureiro. Fotografia de António Rafael/ Museu de Lisboa - Teatro Romano.
A investigação nas duas últimas décadas apurou que Caius também teve escravos. Um deles, Notus Heius Primus, figura numa epígrafe de Mérida de cerca do ano 40 d.C., onde foi aprender medicina e honrou o seu mestre, igualmente escravo, com uma inscrição. Outra epígrafe, encontrada em 1798 e mais tardia, dá conta de que Notus, à data do restauro do teatro, era já um liberto, como o seu patrono Caius. “É todo um modelo de ascensão social numa das províncias mais remotas do Império”, explica Lídia Fernandes.
A inscrição do teatro não foi riscada nem martelada. Não foi caso único na Hispânia, mas representa, apesar de tudo, uma circunstância peculiar. Alguns especialistas acreditam que o facto de Olisipo se posicionar na periferia do Império poderá ter implicado a chegada tardia da condenação ao esquecimento e que o rápido apaziguamento, promovido por Vespasiano em Roma, terá poupado a dedicatória. Outra hipótese sugere que talvez a oligarquia que controlava Olisipo fosse mais independente. Caius seria uma figura social da cidade. Ninguém se atreveria a riscar uma obra que ele mandara construir e onde figurava o seu nome. Riscar o nome de Nero seria uma ofensa a Caius. E o teatro permaneceu incólume.
A Estátua do Sileno. Este tipo de estátuas ornamentava a parte superior do muro do proscénio (o muro que separava o palco da área dos espectadores). O sileno era um dos seguidores de Dioniso e seu professor e tinha poderes divinatórios quando ébrio. Da sua mão, sairia um cano de onde jorraria água para a parte inferior do proscénio. A volumetria, o contraste de volumes e consequentes efeitos de claro/escuro evidenciam uma qualidade superior da oficina escultórica que produziu esta peça, encontrada em 1798. Fotografia de António Rafael/ Museu De Lisboa - Teatro Romano.
O terramoto de 1755 permitiu redescobrir diversos vestígios do passado romano da cidade, expondo ruínas há muitas esquecidas. Apesar da pressa para reconstruir, muitos desses vestígios permaneceram durante décadas à vista, servindo de pedreira improvisada. Em Abril de 1798, enquanto se abria a nova Rua de São Mamede, identificaram-se ruínas imponentes.
Durante décadas, esse achado foi atribuído ao arquitecto italiano Francesco Xavier Fabri, mas a descoberta, por Carlos Fabião, de documentos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro permitiu apurar que terá sido o arquitecto régio Manuel Caetano de Sousa o primeiro a valorizar a descoberta.
O terramoto providencial
Uma pioneira da arqueologia portuguesa. Embora os primeiros trabalhos no teatro romano de Lisboa tenham sido conduzidos por Dom Fernando de Almeida em 1964, coube à arqueóloga Irisalva Moita (aqui, acompanhando uma visita às escavações na Praça da Figueira, em Lisboa) o verdadeiro impulso que revelaria a dimensão das ruínas escondidas. Sensível às questões patrimoniais mas também às dificuldades sociais da população residente, Irisalva concentrou-se a partir de 1965 em documentar fotograficamente tudo o que escavava, alertando regularmente a tutela para a necessidade de adquirir e demolir os prédios vizinhos. O segundo grande impulso arqueológico deu-se sob coordenação de Lídia Fernandes, que conduziu as escavações e coordenou os importantes trabalhos de musealização a partir de 2001. Fotografia de Arquivo Municipal de Lisboa.
Fabri tomou então a condução do processo e, imbuído do novo espírito romântico, tentou preservar todos os registos históricos, incluindo as inscrições e a estatuária. Recriou em desenho aguarelado tudo o que viu. Aos poucos, porém, o afã construtivo levou a melhor. E as ruínas ficaram esquecidas. Havia referências literárias (o jornalista Rocha Martins referiu-se ao teatro em dois textos de Abril de 1934), mas só as campanhas de 1964-1967 voltaram a localizar a estrutura e a permitir, graças ao empenho incansável de Irisalva Moita, a escavação.
Hoje, o Museu de Lisboa – Teatro Romano é uma referência e Lisboa é a única capital europeia (com excepção de Roma) onde chegou até à modernidade um teatro romano.