martim melo

O biólogo Martim Melo não se cansa de investigar o dilema essencial da formação da biodiversidade: por que motivo algumas regiões do globo são caldeirões de diversidade? Três vezes apoiado pela National Geographic Society, Martim Melo continua a dedicar-se de alma e coração a São Tomé e Príncipe. 

Texto de Gonçalo Pereira Rosa

Fotografias de Mário Rio

Na sua visão, o que pode a ciência fazer pela conservação da natureza?

Do ponto de vista da biodiversidade, é muito importante conhecer o que existe antes sequer de medir os impactes dos nossos padrões de desenvolvimento nesse equilíbrio. A ciência é a base, o primeiro passo.

Onde traça então a fronteira entre o cientista e o activista da conservação da natureza?

Os dois podem, naturalmente, coincidir. Há um certo tipo de ciência que não se pode permitir o luxo do activismo: a missão é produzir dados para que os decisores tomem medidas conscientes e essa tarefa não deve ser afectada por paixões. Diria que o activismo começa quando existe a percepção de que o decisor não usou os dados à sua disposição ou, pelo menos, que não os colocou no mesmo patamar de igualdade das outras prioridades. É importante também que os activistas estejam bem informados. Nem sempre acontece.

Na sua carreira de investigador, cedo apontou a bússola para as aves. Porquê?

É uma história clássica: desde a infância que sempre me interessei pela natureza. Todas as crianças se interessam pelo meio que as rodeia, mas depois é preciso sorte para alimentar esse interesse. Eu tinha acesso ao campo e tinha alguém que encorajou o meu interesse. Por volta dos 10 anos, dei por mim fascinado com as aves de um daqueles livros grandes sobre natureza. Talvez se possa argumentar que as aves são os animais mais fáceis de avistar: são maioritariamente diurnas e comuns.

Uma segunda escolha, talvez não exclusiva, foi África. Fez muito trabalho de campo em África.

Houve circunstâncias particulares. África tem, para mim, um grande interesse do ponto de vista biológico. Sempre me interessou o processo de formação da biodiversidade: de que maneira uma espécie forma duas, depois quatro… Gosto de trabalhar em sítios onde muitas espécies se formam e de perceber o que deu origem a esse mecanismo e África é um paraíso nesse sentido. Rapidamente percebi que a maioria desses locais especiais carece de urgentes medidas de conservação e, portanto, diria que a investigação foi também incentivada por esse carácter de urgência. É impossível não nos envolvermos no debate sobre a gestão desses locais depois de percebermos o seu equilíbrio frágil.

Muitos dos locais onde trabalha são ilhas. Porquê?

Quando concluí a licenciatura, fiz um ano de voluntariado num projecto das Nações Unidas em São Tomé e Príncipe. Já gostava de aves e todas as aves que lá via eram endémicas. Foi um processo natural até encontrar forma de lá investigar. Parti depois para a África do Sul, onde fiz mestrado em conservação da natureza e iniciei um projecto sobre o papagaio-cinzento. No doutoramento, voltei a São Tomé para compreender aquele ambiente tão único de especiação, invulgar em qualquer outra ilha do mundo. As espécies insulares costumam resultar de espécies continentais que, num dado momento, colonizaram o ambiente insular e, subsequentemente, muitas gerações depois, desenvolveram traços especializados para as novas necessidades. Face à sua dimensão e características, São Tomé deveria ter quatro ou cinco endemismos, mas tem 17. O Príncipe deveria ter 1 ou 2, mas tem 8 ou 9.

Incluindo o mocho…

É verdade. Com uma bolsa National Geographic, descobrimos uma nova espécie, um mocho da ilha do Príncipe. E foi a partir do zero. Não foi daqueles processos – igualmente nobres, claro – em que se procede a uma revisão taxinómica e se identifica uma nova espécie. No caso do mocho, em 1998, ouvi a história de dois apanhadores de papagaios que apanhavam crias nos ninhos e viram um animal com olhos grandes, que tomaram como o diabo. Pouco depois, comecei a gravar sons que pareciam de mocho (as frequências coincidiam), mas não eram de nenhuma espécie conhecida. Vinham de copas muito altas. Tentei atraí-los e nunca resultou. Um dia, um observador de aves belga amador ajudou-me a localizar o mocho e a fotografá-lo. No ano seguinte, apanhámo-lo e retirámos amostras para confirmamos que era uma nova espécie.

Como entrou o seu projecto de investigação no Gabão nessa narrativa?

Para perceber a origem das espécies endémicas das ilhas, é preciso identificar os parentes mais próximos no continente. Foi por aí que surgiu o Gabão, no âmbito de um estudo comparativo sobre espécies de território continental e insular. Esse projecto também foi apoiado pela NGS. Queríamos perceber a menor exuberância de plumagens garridas em espécies insulares e colocámos a hipótese de as espécies do Gabão, por serem forçadas a sobreviver num ambiente com mais pressão, com mais parasitas, menos benigno do que o das ilhas vizinhas, teriam de investir mais no comportamento de corte. Nas ilhas, num ambiente mais benigno, essa plumagem parece ser menos importante. Foi uma conclusão interessante, embora com implicações nas questões de conservação: se as espécies insulares vivem num ambiente menos pressionado e à partida com menos predadores e ameaças, também desenvolverão menor imunidade e reacção contra novas ameaças. Serão mais vulneráveis.

As leituras de Darwin influenciaram-no. Foi o autor que mais o marcou?

Mais de 150 anos depois de ter formulado a sua teoria original, Darwin continua a ser a base para o que fazemos. Para se compreender a biologia, tem de se compreender a evolução e Darwin teve esse mérito. Outros autores contemporâneos investigaram o tema, mas o livro dele – as tais quinhentas páginas que ele admite que eram um sumário redigido à pressa – continua correcto, baseia-se em observações de campo e tem ainda o mérito de, hoje em dia, servir de inspiração para ideias novas. Tocou em tantas áreas e fez provavelmente mais rupturas do que qualquer outro cientista. Falhou na genética porque tal não se conhecia em 1858 e isso afectou o princípio da hereditariedade. Foi uma pena ele não ter lido o [Gregor] Mendel, que estava a escrever quase ao mesmo tempo que ele. Ciclicamente, as revistas gostam de criar artigos sobre o que Darwin errou, mas são sempre questões minoritárias. Na grande conceptualização teórica, Darwin acertou.

Ainda há mundos por descobrir?

No caso da biodiversidade, há quase tudo. Para o impacte que a nossa espécie está a ter e para a destruição que estamos a desencadear, conhecemos pouco. Estão descritas um milhão ou um milhão e meio de espécies e estima-se que possam existir oito a dez milhões. Caiu fora de moda a taxinomia, a exploração e a saída de campo. Acho que esse é o grande contributo da National Geogaphic: promover a exploração. Investe-se muito em genética, mas será preciso reactivar a dinâmica de exploração nesta disciplina. Perdeu-se a saída de campo do século XIX. Mandamos sondas para procurar vida noutros planetas, mas ainda falta muito para compreender a biodiversidade à nossa volta.

Nos próximos anos, onde estará?

Prossigo o trabalho em São Tomé e Príncipe. Estamos numa fase importante de gestão das zonas decisivas de conservação e estou muito dedicado a acções de formação de investigadores que possam trabalhar nos locais de origem e contribuir para o estudo dos territórios de onde provêm. Também tenciono trabalhar em Angola, nas florestas de montanha do Centro. Angola é o país africano com maior número de biomas. E tem esta escarpa de norte a sul, que corta a corrente de Benguela. Dá origem a uma pequena faixa de floresta muito interessante e particularmente ameaçada, sobretudo na zona de escarpa. Julgo que nos próximos anos será um dos meus objectos de interesse.

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