Já lhes chamaram diabos e atribuíram-lhes monstruosidades. Hoje, as mantas preenchem os sonhos de todos os mergulhadores. E, nos Açores, desvendam segredos da sua ecologia.

Texto e Fotografia Nuno Sá

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As histórias e lendas de outrora ficaram na memória dos antigos pescadores, mas as mantas já não assustam. Pelo contrário: atraem. Calcula-se que o mergulho com mantas gere anualmente receitas de mais de setenta milhões de euros em todo o mundo.

Os primeiros raios de luz surgem timidamente no horizonte num dia de mar calmo, mas o convés de um dos mais famosos navios de investigação do mundo já fervilha de actividade. Os marinheiros do Princesa Alice executam de forma quase mecânica as suas acções de prospecção de águas profundas. Liderada pelo príncipe Alberto do Mónaco, a expedição encontra-se em pleno oceano Atlântico e sem terra à vista, a mais de quarenta milhas da ilha do Faial, mas inexplicavelmente o fundo que se deveria encontrar a mais de mil metros de profundidade é detectado a poucas dezenas de metros.

Mais de uma centena de anos depois, o investigador do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (DOP) Jorge Fontes flutua ao sabor da corrente sobre os pináculos do monte submarino Princesa Alice. Encontra-se num dos mais famosos locais de mergulho do Atlântico Norte, baptizado pelo príncipe Alberto do Mónaco a 9 de Julho de 1896, e o espectáculo que se desenrola a poucos metros de profundidade torna a sua missão ainda mais difícil. O mergulhador obriga-se a fechar os olhos e concentra-se em baixar o seu ritmo cardíaco, descontrai os músculos e prepara a apneia para um mergulho longo. 

O mergulhador obriga-se a fechar os olhos e concentra-se em baixar o seu ritmo cardíaco, descontrai os músculos e prepara a apneia para um mergulho longo. 

Dez metros mais abaixo, cerca de três dezenas de mantas nadam vagarosamente entre vários cardumes grandes de peixes pelágicos. Com quase três metros de envergadura, deslocam-se impulsionando lentamente as suas imponentes barbatanas peitorais semelhantes a grandes asas, parecendo voar nas águas cristalinas. Apesar do tamanho imponente desta espécie, que todos os verões se agrega em alguns dos montes submarinos dos Açores, a sua ecologia continua a ser um mistério para a ciência. Talvez o maior dos enigmas seja mesmo para onde vão estes peixes imponentes quando as quentes e calmas águas do arquipélago dão lugar a um mar revolto.

Por fim, a silhueta que flutuava estática à superfície move-se e mergulha rapidamente em direcção às jamantas. Na mão, o mergulhador leva um arpão havaiano. Este objecto, com uma função semelhante a uma “fisga” subaquática, consiste numa vara metálica impulsionada por um elástico que é mantido em tensão. Quando libertada, projecta o arpão. Embora esta arma arcaica seja usada há centenas de anos para a captura de peixes, na sua extremidade nota-se um pequeno aparelho que nada tem de arcaico. Este pequeno transmissor envolvido em resistentes materiais sintéticos contém tecnologia de ponta que permitirá a medição constante de profundidade, temperatura, salinidade e luminosidade, durante vários meses, até ser libertado para a superfície carregado de informação valiosa que permitirá dar resposta às muitas lacunas da ciência em relação a esta espécie.

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A capacidade das barbatanas em forma de asa para gerar calor permite suportar temperaturas baixas nos seus velozes mergulhos. “A necessidade de se aquecerem entre mergulhos nas águas quentes que se concentram à superfície dos oceanos poderá ser a razão pela qual podemos ver estes gigantes a nadar vagarosamente durante largos períodos junto à superfície”, explica o biólogo Jorge Fontes.

A Mobula tarapacana pertence à família dos mobulídeos. À semelhança dos tubarões, raias e quimeras, é um peixe cartilagíneo, pelo que não possui ossos. Ao contrário dos ratões e várias espécies de raias comuns na costa portuguesa, as mantas e jamantas não vivem junto ao fundo mas em oceano aberto. “Neste grupo, incluem-se onze espécies, incluindo a gigantesca Manta birostris, com uma envergadura que pode ultrapassar seis ou sete metros de largura e mais de uma tonelada de peso, também comum nos Açores mas muito menos frequente que a Mobula tarapacana”, diz Pedro Afonso, investigador do DOP e coordenador deste projecto internacional. 

Estas espécies possuem duas barbatanas cefálicas, que lhes conferem um aspecto agressivo.
É a justificação para, em alguns locais, serem conhecidos por nomes como diabo-do-mar. Aliás, durante centenas de anos, a jamanta povoou lendas de gigantes agressivos que engoliam marinheiros, pescadores e embarcações, numa distorção grosseira da natureza destes animais filtradores que se alimentam de plâncton e pequenos peixes. Esta é, aliás, uma característica que partilham com outros gigantes do mar, como a baleia-azul ou o tubarão-baleia. “Se olharmos para os nossos oceanos, vemos que os maiores mamíferos marinhos e peixes são aqueles que se adaptaram a alimentar-se dos mais pequenos habitantes”, resume Pedro Afonso.

Durante centenas de anos, a jamanta povoou lendas de gigantes agressivos que engoliam marinheiros, pescadores e embarcações.

Nas últimas duas décadas, no entanto, a reputação deste grupo de animais sofreu uma reviravolta de 180 graus com o crescimento do mergulho recreativo. Os magníficos e afáveis animais tornaram-se espécies icónicas visitadas anualmente por centenas de milhares de mergulhadores em redor do globo. A popularidade motivou um acréscimo global de estudos científicos sobre estes animais sobre os quais pouco se sabia. E é por isso que estamos no banco Princesa Alice.

 Nos Açores, em paralelo com o projecto de marcação de jamantas com transmissores por satélite, uma estudante de mestrado do DOP acaba de desenvolver o primeiro projecto de foto-identificação desta espécie a nível mundial. Locais como o banco Princesa Alice e a Baixa do Ambrósio, na ilha de Santa Maria, levam hoje milhares de mergulhadores a estes locais, pois são visitados regularmente por grandes grupos de mantas. “Há centenas de fotografias captadas por turistas todos os anos que podem ajudar-nos a perceber se estes animais voltam ano após ano ao mesmo local.”

Locais como o banco Princesa Alice e a Baixa do Ambrósio, na ilha de Santa Maria, levam hoje milhares de mergulhadores a estes locais, pois são visitados regularmente por grandes grupos de mantas.


O projecto implicou a adaptação de uma aplicação desenvolvida para o reconhecimento de caudas de cachalote e conta já com uma base de dados de mais de duas mil fotografias e vídeos.

Como no tempo da mala-posta, a resposta tarda mas não falha. Cinco meses depois da marcação, Simon Thorrold, investigador do departamento de biologia da maior instituição privada de pesquisa sem fins lucrativos, a Woods Hole Oceanographic Institution, recebe um e-mail de alerta com a informação do transmissor colocado em mantas nos Açores. A informação contida em cada um dos 15 transmissores foi constantemente armazenada durante meses até, finalmente, o transmissor se soltar flutuando vagarosamente na sua última viagem até à superfície. Uma vez ali, a informação de cada transmissor é captada pela rede de satélites e estações de recepção espalhadas por todo o mundo (a argos) e reencaminhada para os investigadores. “O cruzamento de todas as informações, como os níveis de luz, a temperatura, a profundidade ou a salinidade, permite-nos saber em que ponto do globo se encontrava cada animal durante esse período, actuando como uma espécie de gps subaquático”, explica Simon Thorrold. 

Ao abrigo de um projecto de investigação açoriano, várias mantas foram marcadas com transmissores. Algumas chegaram a percorrer mais de quarenta quilómetros por dia, ressurgindo em Cabo Verde.

 Os dados parecem contradizer os estudos publicados sobre a espécie. “Até hoje, acreditava-se que as jamantas habitavam os nossos oceanos em águas tropicais e temperadas até uma profundidade de 50 metros. Apesar de sabermos que a grande ausência de conhecimentos sobre a espécie poderia reservar algumas surpresas... nunca pensámos que estivéssemos tão longe da realidade”, diz o investigador.

À medida que os dados dos transmissores chegavam através do satélite, a surpresa aumentava. “Os dados mais interessantes, e que colocam em causa os próprios conhecimentos da anatomia e biologia da espécie, foram mesmo os seus perfis de mergulho”, explica Simon.

Os dados indicam mergulhos a profundidades de quase dois mil metros, a uma velocidade máxima de seis metros por segundo em águas com temperaturas que chegam a 4ºC. 

Os dados foram reencaminhados para o Departamento de Oceanografia e Pescas, na cidade da Horta, onde Pedro Afonso e Jorge Fontes se mostravam igualmente incrédulos. Afinal, as pacatas jamantas vistas a deambular vagarosamente no banco Princesa Alice junto à superfície realizam um dos mais velozes e profundos mergulhos registados pela ciência. Os dados indicam mergulhos a profundidades de quase dois mil metros, a uma velocidade máxima de seis metros por segundo em águas com temperaturas que chegam a 4ºC. “São mergulhos a uma velocidade de descida superior a alguns dos mais rápidos animais dos oceanos. É superior aos valores registados com cachalotes, baleias-de-bico ou os grandes rabilhos”, compara Pedro Afonso. 

Poucos animais têm a capacidade de mergulhar para além das águas epipelágicas e entrar no reino da escuridão total, das baixas temperaturas e das pressões esmagadoras das águas batipelágicas, entre 1.000 e 4.000 metros de profundidade, onde se calcula que existam camadas compactas de pequenos peixes e crustáceos. “Pode ser esse o segredo do seu sucesso”, sugere Jorge Fontes. “As barbatanas peitorais e caixa craniana possuem um órgão, a rete mirabile, que permite gerar calor, não dependendo da temperatura da água que a rodeia.” Este órgão, comum em peixes endotérmicos, tinha sido identificado nas jamantas na década de 1970, mas pensava-se que o seu papel seria de arrefecimento do cérebro e não de aquecimento. “Talvez tenhamos descoberto a sua função.” 

Uma rara imagem captada ao largo da ilha de Santa Maria, nos Açores. Duas espécies de mantas (Manta birostris e Mobula tarapacana) cruzam-se num lento mergulho de superfície. Os dados deste projecto de investigação sugerem que as mantas podem usar os mergulhos de superfície para descanso após rápidas incursões ao mundo frio das profundezas.

 Infelizmente, o seu hábito de agregação em locais específicos e junto à superfície poderá pôr em causa a sobrevivência destas espécies. Tal como acontece com os seus parentes próximos, os tubarões, também a pesca de todas as espécies de mantas aumentou muito. As suas guelras são muito apreciadas e a pesca acidental também contribui para o declínio. “Estamos perante um grupo de animais que oferece uma reduzida capacidade de recuperação de situações de excesso de pesca, pois tem uma das mais baixas taxas de fecundidade de todos os elasmobrânquios, um crescimento lento e uma maturidade tardia”, explica Jorge Fontes.

Mais de um milhão de mergulhadores visitam anualmente os mais remotos locais de mergulho do mundo para interagir com elas.

Mas nem tudo são más notícias para estas espécies. Mais de um milhão de mergulhadores visitam anualmente os mais remotos locais de mergulho do mundo para interagir com elas e a receita gerada com esta actividade é já dez vezes superior à receita anual resultante da sua pesca. As mantas obtiveram também uma pequena vitória em 2013 com a inclusão das duas espécies mais ameaçadas na lista da convenção cites, condicionando a comercialização internacional de produtos derivados desta espécie.  

“Estudos como este mostram o pouco que sabemos sobre este grupo de animais e o papel que desempenham no ecossistema dos oceanos. Sem compreendermos dados básicos como a distribuição e migrações das mantas, não podemos tomar medidas eficientes para a sua protecção”, resume Simon Thorrold. Afinal, estas espécies não reconhecem fronteiras e a ciência também não o deverá fazer. “Só em conjunto poderemos compreender e ajudar a preservar os gigantes afáveis dos oceanos.”

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