A corta da mina de São Domingos, em Mértola, uma das mais problemáticas a nível nacional, encontra-se junto de uma aldeia em cuja sociedade não se apagaram ainda os traços mineiros e na qual muitos recordam com saudade a prosperidade de tempos idos.
De uma mina extraem-se recursos fundamentais para a actividade industrial. Um dia, porém, a mina é encerrada. E, para trás, fica uma pesada herança na água.
Texto e Fotografia: António Luís Campos
Ao mencionar a palavra “mina”, ocorrem-nos imagens de homens rijos e de rosto enegrecido, em cenários lunares que rasgam a paisagem. Mas o que acontece às minas quando são abandonadas? Na Universidade de Évora, uma equipa tem analisado as feridas ambientais geradas pelas explorações mineiras, procurando soluções e tentando compreender a interacção dos metais pesados com o ambiente.
A água é o principal veículo de disseminação dos poluentes. A análise química de amostras obtidas neste ambiente deixa frequentemente António Candeias e José Mirão, investigadores da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade, de sobrolho carregado, de tal forma são elevadas as concentrações de chumbo, arsénio, mercúrio ou cobre. Estes elementos têm implicações na saúde humana, pois a exposição prolongada pode provocar alterações metabólicas que se revelam em doenças crónicas como neuropatias, síndrome hepática, insuficiência pulmonar ou cardiovascular e mesmo cancro.
A água é o principal veículo de disseminação dos poluentes.
Há muito que aquela dupla de cientistas trabalha em equipa, e é no Colégio Luís Verney, antigo quartel militar, que a encontramos, sob as abóbadas arredondadas do laboratório, analisando o solo contaminado com recurso a um difractómetro de raios X. “O equipamento permite a identificação mineralógica pormenorizada e, em conjunto com a extracção sequencial, a distribuição dos metais em argilas, óxidos ou sulfatos”, diz António Candeias. “Com esta informação, pode conhecer-se a dinâmica dos sistemas e a distribuição e biodisponibilidade dos metais pesados.”
Uma das mais emblemáticas minas portuguesas encontra-se em São Domingos, no concelho de Mértola. Com vestígios de exploração romana, era considerada no século XIX um dos importantes centros de extracção de cobre e enxofre na Europa, tendo inclusivamente um caminho-de-ferro próprio, o primeiro em Portugal. Hoje, é um espaço quase alienígena, com os seus matizes vermelhos, laranjas e amarelos, envoltos no abafado calor alentejano.
O reflexo do geólogo José Mirão espelha-se no tanque de drenagem ácida na mina da Tinoca, cujas águas escorrem até à albufeira de uma barragem de rega. No fundo, depósitos sólidos de materiais tóxicos relembram a urgência do tratamento destes locais.
Junto à aldeia, a corta impressiona pela dimensão. Bem perto, a ribeira segue a direito por um vale ensombrado pelos esqueletos de edifícios abandonados. Ácida (com pH que chega a 2, quando o valor normal para água não contaminada deveria ser entre 6 e 8, consoante a zona do país), a água transporta contaminantes até ao Guadiana. Ao entrarem em contacto com a hidrosfera e a atmosfera, os minerais iniciam um processo de alteração e libertam metais que se difundem no ambiente, contaminando os solos e os lençóis freáticos. A sua acção pode assim sentir-se em locais distantes dos focos de poluição superficiais.
Em Portugal, há aproximadamente cem minas abandonadas, com diferentes tipologias. Locais como São Domingos, Caveira ou Lousal situam-se sobre a Faixa Piritosa Ibérica, uma importante região mineralífera que se estende para lá da fronteira, onde se exploram sulfuretos. Nas condições em que se formaram, os sulfuretos são estáveis, mas, quando expostos, levam ao aparecimento de águas ácidas, fenómeno provocado pela oxidação do enxofre e pela libertação dos metais. Integrados na cadeia trófica, estes acabam por afectar os ecossistemas.
Em Portugal, há aproximadamente cem minas abandonadas, com diferentes tipologias.
Ao absorverem tais elementos, as plantas podem tornar-se acumuladoras de metais. Consumidas por animais e por seres humanos, acabam por provocar a ingestão de doses anormalmente elevadas de metais. Tal não impede, no entanto, a ocorrência de situações insólitas, como a que se verifica em Canal Caveira sempre que as temperaturas sobem. Em jeito de substituto dos selectos spas, alguns habitantes locais têm por hábito impermeabilizar de forma artesanal, com telas de plástico as poças cheias de águas coloridas. Nas águas drenadas da mina, contra todos os avisos, há quem mergulhe para usufruir de estranhos… “peelings ácidos”.
E não é tanto a acidez o principal motivo de preocupação: é a radioactividade.
Mais a norte, as diferentes características geológicas têm outras implicações no que às minas diz respeito. Ali, foram os depósitos de urânio e volfrâmio que motivaram a exploração mineira. E não é tanto a acidez o principal motivo de preocupação: é a radioactividade. Jorge Teixeira, professor na principal instituição universitária alentejana, coordena um trabalho de investigação para o desenvolvimento de novos sensores electroquímicos para monitorização ambiental de urânio em águas de minas abandonadas. Segundo ele, o problema da contaminação radioquímica tem dificuldades adicionais, implicando um grande esforço de caracterização, para o qual a criação de nova tecnologia, mais barata, transportável e fiável, pode contribuir sobremaneira. Na sua opinião, apesar do mediatismo das grandes intervenções, como a da Urgeiriça, elas não resolvem, por si, o problema nacional, pois há várias pequenas minas que não são intervencionadas.
A paisagem das explorações mineiras é sinistramente contraditória. Lado a lado, convivem encostas floridas, fruto de acções de remediação, com lagoas e ribeiras de cores berrantes.
Dada a importância da actividade mineira em Portugal e em particular no Alentejo, Évora tem desenvolvido um esforço significativo na investigação ambiental associada às minas. São vários os projectos ali implementados, procurando minimizar os problemas causados pelas minas abandonadas. Deste esforço, resultaram doze artigos científicos, três teses de mestrado e oito trabalhos de fim de curso de licenciatura em química, geologia e biologia. De acordo com Paula Pinto, professora na Universidade de Évora, a remediação de minas que produzam condições ácidas pode passar pelo desenvolvimento de plantas tolerantes/acumuladoras após correcção das propriedades dos solos pela adição de materiais alcalinos, que fazem subir o pH, como cal apagada ou resíduos de pedreiras de mármore e adição de materiais derivados da compostagem de resíduos sólidos urbanos.
O pH da água subiu para 6 e a concentração de metais foi reduzida em 95%, tornando-o uma opção válida para aplicação real.
Sob a égide do projecto GERMINARE, uma equipa da Universidade do Algarve, coordenada por Clara Costa, desenvolveu sistemas de biorreactores para remediação de águas ácidas por bactérias sulfatorredutoras, de forma a minimizar os impactes das explorações mineiras. Embora a sua implementação se tenha ficado por uma escala-piloto, os resultados foram impressionantes: o pH da água subiu para 6 e a concentração de metais foi reduzida em 95%, tornando-o uma opção válida para aplicação real.
Deixamos para trás as muralhas da cidade de Évora, a caminho da mina da Tinoca. Ali, encontra-se um exemplo paradoxal dos processos de reabilitação de áreas contaminadas. Na sequência do estudo de impacte ambiental da barragem do Abrilongo, a jusante na bacia hidrográfica, foi exigida a intervenção na mina. Esta viria a ser sujeita a medidas de recuperação, o que minorou o impacte ambiental, reduzindo a exposição dos resíduos ao clima. Infelizmente, porém, os trabalhos não foram finalizados – as águas recebidas pelo tanque não são tratadas, transbordando e, mais abaixo, a antiga barragem ruiu, deixando sedimentos tóxicos concentrados, com cerca de dois metros de espessura, à mercê dos efeitos erosivos da diminuta linha de água.
Na sequência do estudo de impacte ambiental da barragem do Abrilongo, a jusante na bacia hidrográfica, foi exigida a intervenção na mina. Infelizmente, porém, os trabalhos não foram finalizados.
A oeste, no concelho de Estremoz, a pequena mina da Mostardeira, de 1863, tem sido usada como caso de estudo. Delimitada por duas linhas de água, partilha o território com explorações agrícolas de olival e cereais, que parecem não fazer caso dos níveis de arsénio 20 vezes superiores ao limite máximo legal, chegando em certos pontos a 1%, ou dez mil partes por milhão. Este foi, aliás, um dos factores que inviabilizaram o estabelecimento de espécies vegetais colonizadoras adequadas à recuperação das escombreiras e zonas circundantes. Ali, numa ilha de castanho envolta por um mar de verde, as chuvas invernais fazem transbordar sem controlo pequenas charcas esverdeadas, escoando a água pela encosta em direcção à ribeira mais próxima.
Lúcia Rosado, da Universidade de Évora, analisa amostras de solo num sofisticado difractómetro de raios X para obter a sua caracterização mineralógica.
Num fim de tarde chuvoso, regressamos, tentando conduzir, na segurança possível, um jipe cansado em que as escovas limpa-pára-brisas teimosamente se recusam a funcionar. No banco traseiro, António Candeias expressa optimismo na evolução dos métodos de remediação, mas frisa que as soluções passam sobretudo por vontade política, devido aos elevados custos e recursos envolvidos. O aproveitamento turístico deste legado arqueológico industrial, que começa a dar os primeiros passos, e a recente legislação nacional – que criou um fundo para o qual todas as empresas mineiras em laboração têm obrigatoriedade de contribuir e que será mais tarde investido na reabilitação de minas após o seu encerramento – são sinais positivos num cenário ainda negro. No ar fica a esperança de que, um dia, a ciência e os decisores políticos permitam apagar definitivamente a marca deixada na paisagem pela nossa incessante sede de recursos.