É mais inteligente, perigosa e musical do que imaginávamos.
Texto Jeremy Berlin Fotografia Paul Nicklen
Um macho ergue-se sobre o gelo marinho em Svalbard (Noruega), onde a caça é ilegal desde 1952. “É por isso que as presas são tão grandes”, explica o fotógrafo Paul Nicklen. “Podemos distinguir as populações protegidas graças ao tamanho das suas presas.”
Figuras castanhas cor de canela formam pilhas vivas sobre plataformas de gelo e praias rochosas no Atlântico Norte. Algumas pesam mais de uma tonelada. Outras têm mais de três metros de comprimento. Cada uma é um retrato enrugado, de dentes salientes e bigodes, cicatrizes profundas e olhos raiados de sangue. Dormitam, arrotam, discutem e ladram, “num misto de mugido de vaca e latido de mastim, de som mais grave”, como descreveu um explorador do século XIX.
Um grupo misto de machos, fêmeas e crias repousa sobre uma plataforma de gelo depois de emergir na bacia de Foxe. “Um animal que emita um arroto com o som errado poderá levar um toque do vizinho”, diz o perito Robert Stewart. “As crias têm imunidade na comunidade. São-lhes permitidas algumas indiscrições.”
As morsas talvez pareçam familiares, mas a maioria dos leitores nunca verá um grupo de morsas em ambiente selvagem. Poucos fotógrafos documentaram, aliás, este pinípede perigoso, musical e socialmente sofisticado, com barbatanas na extremidade dos membros.
“Eu próprio fiz de isco”, conta Paul Nicklen, que passou três semanas a apontar a sua máquina para morsas com a ajuda do mergulhador sueco Göran Ehlmé. “Sentava-me na costa e as morsas aproximavam-se. Ficavam curiosas. Só que elas precisam de nos bater com os dentes para perceberem o que somos. E o golpe de uma morsa pode ser mortal.”
As presas de marfim podem ter mais de meio metro de comprimento. Prendendo-se ao gelo como um machado, ajudam-na a sair do mar, mas também golpeiam rivais e dissuadem predadores.
Morsas nadam entre as plataformas de gelo ao largo da costa da Gronelândia.
Os bigodes são outra característica emblemática. Centenas de fios cor de palha eriçam-se acima dos lábios da morsa: espessos como espinhos e sensíveis como dedos. Utilizando essas vibrissas, as morsas conseguem localizar amêijoas enterradas no leito marinho. Para lhes retirarem a carne, utilizam a força de sucção da sua boca, como um aspirador, só que a sucção seria suficientemente potente para puxar a pele de uma foca.
Estas poderosas criaturas também são melodiosas. Durante a época de acasalamento, entre Janeiro e Abril, “machos adultos irrompem em cantos e todo o tipo de sons estranhos, como castanholas, sinos, dedilhar de guitarras e rufo de tambores”, diz Erik W. Born, cientista do Instituto de Recursos Naturais da Gronelândia.
“O melhor cantor espera que a sua música atraia uma bela senhora.”
As morsas são imprevisíveis quando nadam em grupo. Paul Nicklen fotografou este macho na costa da Gronelândia, seguindo os conselhos do especialista Göran Ehlmé: encontrou uma enseada abrigada e seguiu uma morsa de cada vez.
Se o conseguir, nascerá uma cria de 45 quilogramas quinze meses depois. Nos dois anos seguintes, a cria será carregada ao colo pela sua mãe extremosa, transportada às cavalitas e engordada. Se tudo correr bem, poderá viver 40 anos.
Antigamente, essa esperança de vida era menos provável. Os vikings do século IX abatiam grupos de morsas pela sua gordura e pele. Os europeus medievais esculpiam jogos de xadrez a partir dos dentes. Entre os séculos XVI e XX, baleeiros comerciais caçaram abundantemente este animal, reduzindo drasticamente a sua distribuição que, em tempos, se estendeu até à Nova Escócia.
No slideshow: As morsas perseguem presas até 90 metros de profundidade, em mergulhos de seis minutos. Para captar estas imagens raras, Paul Nicklen e Göran Ehlmé mergulharam num fiorde da Gronelândia. Ali, encontraram machos levantando nuvens de sedimentos e utilizando as vibrissas para encontrar amêijoas escondidas. Para afastar o lodo, algumas sopram jactos de água, enquanto outras abanam a barbatana . “As morsas podem alimentar-se durante 48 horas consecutivas”, diz Göran. “Sobem e descem, como máquinas.”





Actualmente, a sua caça é praticada sobretudo pelos inuit, que dependem das morsas como fonte de alimento, vestuário, ferramentas, utensílios de marfim e combustível. É impossível dizer quantas poderão ter outrora nadado no Atlântico — talvez centenas de milhares. Hoje, existirão 20 a 25 mil. Mas mesmo com levantamentos aéreos e monitorização por satélite, os números são ilusórios.
A perda de gelo marinho aparenta ser um grande desafio. As morsas preferem as plataformas de gelo para se alimentarem, parirem e emergirem do mar. Forçadas a ficar em terra, são vulneráveis a ataques de ursos-polares. Observações oficiosas sugerem que algumas populações já estão a ser afectadas.
Um grupo de machos descansa no arquipélago de Svalbard.
Erik Born concorda que existem motivos de preocupação, mas também propõe uma hipótese mais risonha. As zonas onde as morsas se alimentam de amêijoas “estavam antigamente cobertas de gelo e as morsas não conseguiam chegar-lhes”, afirma. “Agora, podem alimentar-se durante mais tempo. O recuo do gelo poderá trazer benefícios.”
Na bacia de Foxe, no Canadá, uma fêmea conhece a sua nova cria, utilizando mais os bigodes e o focinho do que a visão, que é deficiente. A cria será amamentada durante dois anos.
Poderá chegar o momento em que outros problemas afectarão o mundo da morsa: a caça furtiva e excessiva, os navios de grande escala e a exploração petrolífera encabeçam a lista.
Por ora, porém, a morsa pode continuar a degustar as suas amêijoas salgadas em sossego, no seu magnífico isolamento.
As morsas mantêm-se junto do gelo que se forma sazonalmente. Vivem em subgrupos com pouco contacto entre si. Ao contrário das suas primas do Pacífico, não efectuam longas migrações anuais. Gráfico: Jerome N. Cookson; Fontes Internacionais de Cartografia: Erik W. Born, Instituto de Recursos Naturais da Gronelândia; Centro Nacional de Dados da Neve e do Gelo; Serviço do Gelo Canadiano, Environment Canada.