Na costa sudoeste portuguesa, o sol de Verão evapora a última água que resta nos charcos temporários. A vida subaquática fica suspensa durante meses e a paisagem transforma-se. Antes do compasso de espera, os charcos foram locais de vida agitada, de animais com design extravagante, muitos e únicos no mundo.

Texto e Fotografia Luís Quinta

 

Quando a água abunda, os charcos temporários albergam dezenas de espécies que não esperaríamos ver. Condicionadas pelos anos de maior ou menor abundância hídrica, espécies como o Triops vicentinus são prodígios de adaptação ambiental.

O calor do Verão seca a paisagem e o que foi um charco temporário mediterrâneo é agora um local de aspecto desolador. Lama ressequida, pó e vegetação rasteira dão uma aparência desconcertante a estes pedaços de terra, escondendo o valor natural dos ecossistemas. Para quem desconhece a dinâmica dos charcos temporários, este local não merece a menor atenção e essa é a sua primeira fragilidade.

Por desinformação ou pressão humana, estes habitats (prioritários segundo o Anexo I da Directiva Habitats) estão em declínio. Apesar dos estatutos de protecção, os charcos continuam a desaparecer, embora os investigadores saibam que a vida latente está enterrada na poeira fina ou na lama mais dura. 

Apesar dos estatutos de protecção, os charcos continuam a desaparecer.

Os ovos (ou, mais precisamente, os cistos) de várias espécies, ou as sementes de muitas plantas, espalhados por toda a área podem resistir incólumes na época seca durante meses. Após esse período de resistência, a água das primeiras chuvas de Outono ou de Inverno permite que minúsculas esferas dêem lugar a larvas em desenvolvimento que se transformam em adultos de branquiópodes de várias formas e feitios.
Em Fevereiro, acompanho duas biólogas da Universidade do Algarve no circuito de amostragem dos vários charcos de referência. Nesta fase de inundação e de águas mais frias, os camarões-fada e as larvas de muitos insectos são ainda abundantes nestes espaços aquáticos. No interior do charco, a investigadora  Margarida Machado faz medições das características físico-químicas e captura alguns animais para amostragem. Em várias tinas brancas, identificam-se as espécies recolhidas. Algumas ostentam configurações bizarras. Há branquiópodes, como os abundantes camarões-fada com cerca de dois centímetros e que nadam de barriga para cima. Outras espécies de insectos mostram-se em agitação permanente. 

Um charco temporário mediterrâneo é caracterizado por várias cinturas de plantas. Estas plantas são capazes de viver em condições de submersão durante alguns meses na fase inundada do charco e depois sobreviverem em condições de secura após a dessecação do charco.

Mais a sul e já no concelho de Vila do Bispo, visitamos outros charcos que revelam criaturas com um design ainda mais extravagante. O prémio de bizarria vai para o Cyzicus grubei, conhecido também por camarão-concha. Este crustáceo endémico da Península Ibérica tem um par de valvas idênticos a um bivalve, mas, ao contrário da amêijoa (cuja concha é de origem calcária), a sua cobertura é constituída por quitina. Talvez não tenha mais de 10mm e até a nadar mostra-se desajeitado.

O prémio de bizarria vai para o Cyzicus grubei, conhecido também por camarão-concha.

A cada arrasto das redes dos camaroeiros, revelam-se mais animais peculiares. Para a tina branca, entra agora um agitado camarão-girino, Triops vicentinus. Este crustáceo de água doce parece deslizar sobre o fundo com os mais de cem apêndices branquiais que possui. Os dois olhos compostos no topo da carapaça dão-lhe um aspecto arcaico. “É um fóssil vivo. Existe há mais de 150 milhões de anos”, diz Margarida Cristo, da Universidade do Algarve. Endémico do Sul de Portugal, vive numa área de distribuição muito reduzida. As suas linhas hidrodinâmicas arredondadas e design retro fazem deste organismo o animal mais elegante dos charcos temporários. 

O único anfíbio exclusivo de Portugal é esta nova espécie, o sapinho-de-verrugas-verdes-lusitânico (Pelodytes atlanticus). 

Nestas águas doces de pouca profundidade, a luz chega até ao fundo e viabiliza inúmeros vertebrados. Na caixa de plástico, nadam girinos de sapos-de-unha-negra e larvas de salamandras-de-costelas-salientes e sapinhos-de-verrugas-verdes-lusitânicos. A silhueta destas espécies na fase inicial das suas vidas é distinta do perfil que assumem em adultos. Olhos treinados procuram os pormenores que separam cada família. “Estes aqui são tritões-marmoreados-pigmeus”, aponta Margarida Machado para um corpo fusiforme com brânquias a sair da cabeça que parecem penas. Reparo nos dedos finíssimos do anfíbio.
Especialista em anfíbios, o biólogo Luís Sousa sublinha a importância dos charcos permanentes “que albergam quase todas as espécies de anfíbios de Portugal” e dos charcos temporários, diz. Em Março deste ano, uma equipa de investigadores espanhóis, recorrendo à genética, descreveu uma nova espécie de sapinho-de-verrugas-verdes para o território português. “O sapinho-de-verrugas-verdes-lusitanico (Pelodytes atlanticus) apresenta-se como o único anfíbio exclusivamente português.”

Camarão-concha (Cyzicus grubei) com as suas conchas de quitina. 

Para conhecer a actual dinâmica de populações, indivíduos e conectividade entre charcos, foram marcados cerca de duzentos anfíbios de três núcleos, nomeadamente sapinhos-de-verrugas-verdes-lusitânicos, relas-meridionais, rãs-verdes, sapos-de-unha-negra e rãs-de-focinho-pontiagudo. No próximo ciclo de água, no final do ano, as recapturas poderão dar novas pistas sobre as movimentações destas espécies.

Nestes charcos temporários, o reino das plantas é igualmente variado e único.

Até final de 2017, um projecto co-financiado pela União Europeia, o LIFE Charcos, coordenado pela Liga para a Protecção da Natureza e com a Universidade de Évora, a Universidade do Algarve, a Câmara Municipal de Odemira e a Associação de Beneficiários do Mira como parceiros, monitoriza e sensibiliza os intervenientes e a população para a importância destes cenários naturais e as medidas de conservação necessárias para a sua sustentabilidade.
Nestes charcos temporários, o reino das plantas é igualmente variado e único. Segundo Carla Pinto Cruz, da Universidade de Évora, “já foram descritas 248 espécies de plantas. A presença do cardo-das-lagoas (Eryngium corniculatum) é uma das referências de maior importância para caracterizar um charco temporário mediterrâneo.”

Larva de um tritão-marmoreado-pigmeu na sua fase aquática.

As primeiras plantas a entrar em floração são as das espécies mais aquáticas cujo desenvolvimento se dá na época em que o charco tem mais água. No início da Primavera, podemos observar as plantas aquáticas flutuantes, com as folhas e flores à superfície. Sucedem-se as plantas anfíbias, que começam o seu desenvolvimento vegetativo ainda submersas e florescem apenas quando a água começa a desaparecer, persistindo até à chegada da fase seca. A evolução da vegetação, em função da água superficial disponível, cria duas ou três cinturas de flores, de diferentes cores e formas.

Um charco temporário está em constante metamorfose.

Um charco temporário está em constante metamorfose: de mês para mês há novas formas de vida e novos desafios para os seus habitantes. No entanto, o verdadeiro teste à resiliência destes cenários naturais de grande fragilidade ecológica será a sua capacidade de resistência às alterações cada vez mais rápidas e profundas. Mais do que enfrentar a alternância de condições extremas de encharcamento ou secura, será o homem a maior adversidade deste habitat? 

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