São esquivas e inteligentes. Vigiam os humanos, mas raramente se deixam ver. É na protecção proporcionada pela escuridão da noite que as lontras vivem. E prosperam.
Texto Gonçalo Rosa e Gonçalo Pereira Fotografia Gonçalo Rosa







Numa madrugada de um dia de fim de Outono, uma densa neblina cobria o rio quando Zé da Ludovica chegou de uma noite na faina. Já perto do pequeno ancoradouro, uma cabeça rompeu suavemente o espelho de água, mergulhando por breves segundos e aparecendo uma boa vintena de metros adiante, bem perto do barco. Sem medo, Gisela aguardava pelo peixe que o pescador se habituara a dar-lhe ao romper do dia – um pequeno barbo, um pimpão, uma boga. Desta forma, os pescadores iam, aos poucos, conquistando a lontra que os parecia aceitar como velhos amigos. Gisela retribuía, ficando por ali para gáudio dos que a observavam, enquanto o pescador amarrava o barco com um cabo grosso ao pequeno ancoradouro, arrumava o material de pesca e colocava as capturas num pequeno balde preto.
Desta forma, os pescadores iam, aos poucos, conquistando a lontra que os parecia aceitar como velhos amigos.
Foi assim durante um par de meses quase todas as manhãs nas águas do rio Guadiana que correm sob as muralhas da vila de Mértola. Um dia, Gisela desapareceu. “Parece ter andado pela foz da ribeira de Oeiras, dizem que acompanhada por outra lontra”, conta o Zé que, apesar de, à noite, ter chegado a ir à ponte que atravessa aquela ribeira, fazendo a ligação de Mértola ao Algarve, nunca mais voltou a ver Gisela.
É possível que Gisela fosse uma lontra jovem, que se tivesse separado há pouco tempo da mãe e dos irmãos. É também possível que se tratasse apenas de uma lontra menos tímida do que as outras. Isso explicaria o facto de ser tão afoita, porque raras vezes a lontra (Lutra lutra) é tão destemida. Experiências com humanos, nem sempre tão simpáticas como com aqueles pescadores, tornam esta espécie da família dos mustelídeos (como o texugo, o toirão, a fuinha ou a doninha) particularmente difícil de observar no nosso país.
Por outro lado, boa parte dos carnívoros que ocorrem em Portugal vivem escondidos na escuridão da noite. Alguns, como a raposa, iniciam a sua actividade ao final da tarde, estendendo-a, por vezes, até às primeiras horas da manhã. Outros, como a gineta e a fuinha, são eminentemente nocturnos. E apenas o saca-rabos é um carnívoro diurno. Em grande medida, a escuridão favorece-os enquanto predadores. Os seus sentidos particularmente bem desenvolvidos são a causa e a consequência da sua actividade nocturna: o olfacto e a audição são apuradíssimos em comparação com os humanos, e a visão mostra-se adaptada à pouca luminosidade crepuscular e lunar.
A lontra é uma espécie reservada e discreta e sei-o por experiência própria há mais de vinte anos. No início da década de 1990, em missão no rio Chança (que desenha a fronteira com Espanha, um pouco a sul de Vila Verde de Ficalho até encontrar o rio Guadiana, no Pomarão, já a jusante da vila de Mértola), saí, certa manhã, ainda muito cedo, da minha pequena tenda montada na margem espanhola do rio.
A lontra é uma espécie reservada e discreta e sei-o por experiência própria há mais de vinte anos.
Sentado numa pedra, bem perto da linha de água, reparei num fluxo de bolhas de ar que se formava quase na minha direcção. Quando chegou à minha frente, pude ver que à cabeça daquela corrente de bolhas, que rapidamente se desfaziam ao chegar à superfície, um vulto castanho, fusiforme e de pelagem compacta, percorria o fundo, vasculhando metodicamente entre seixos e pedras.
Corria o mês de Março e, um par de semanas depois das chuvas, que naquele ano tinham sido pouco generosas, as águas quase sempre barrentas dos cursos de água do Sul do país estavam especialmente límpidas, deixando adivinhar a vida que habita os fundos.
O vulto, maior do que um gato doméstico, percorreu a trintena de metros que o separavam do local onde o começara a avistar até à curva do rio sem nunca emergir.
O picão, peixe endémico do Sul da Península Ibérica e uma das presas que a lontra procura nos rios e ribeiras do Sul de Portugal.
Não fora o acaso de ali estar, sentado numa pedra, admirando o rio e, provavelmente, nunca teria dado pela presença daquela lontra, tal foi a discrição com que o animal ali passou. Foi a minha primeira observação de uma lontra em ambiente selvagem e a descrição corresponde certamente à de muitos outros observadores de vida selvagem em Portugal, espectadores distantes de uma espécie tímida, que faz a sua vida nos bastidores.
A lontra é referida em fontes documentais e foi representada em produções artísticas antigas. Apesar dessa visibilidade, porém, só na década de 1980 ocorreram as primeiras recolhas regulares de informação científica sobre a espécie em Portugal. Três décadas depois, “este é um dos carnívoros mais bem estudados no país e foi investigado em várias teses de mestrado e doutoramento”, notam os biólogos Nuno Pedroso e Teresa Sales-Luís, do Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
A lontra é referida em fontes documentais e foi representada em produções artísticas antigas.
Na Universidade de Aberdeen, Pedro Beja conduziu o primeiro doutoramento sobre a espécie em Portugal, concentrando-se na população do Sudoeste Alentejano. Cruzando várias metodologias, como inquéritos, busca de indícios directos de presença, capturas e seguimento por rádio, o biólogo determinou que a disponibilidade de água doce (ou seja, a proximidade à foz de rios, ribeiras ou até mesmo pequenos ribeiros nessa região do Alentejo) é o factor mais condicionante da ocupação da lontra no ambiente costeiro. A dependência da água doce explica-se pela necessidade de retirar o sal acumulado no pêlo depois dos mergulhos marinhos em busca de alimento, dado que afecta a capacidade de retenção do calor corporal.
A lontra, porém, não se restringe aos ambientes próximos do mar e ocupa também nichos em ambientes mais humanizados como nas pisciculturas ou nas barragens, temas de outros dois doutoramentos dedicados à espécie em Portugal.
Teresa Sales-Luís investigou a distribuição da lontra na bacia do Sado, verificando que, durante a época seca, existe uma retracção na área de ocupação, o que revela a dependência da lontra das linhas de água com mais resistência à seca.
A bióloga estudou também a predação por parte da lontra nas pisciculturas do estuário do Sado. Sendo a lontra um predador piscícola amplamente distribuído, mas protegido, e as pisciculturas propensas a predação, o potencial de conflito entre a produção e os interesses de conservação é real. Este tema levou à participação de Portugal num projecto europeu, durante o qual a equipa de ecologia coordenada por Margarida Santos-Reis (da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) determinou que o impacte da predação por lontra não é importante a nível da área de estudo, mas varia significativamente entre pisciculturas e pode ser importante para estabelecimentos específicos.
A lontra ocupa habitats como as barragens, especialmente porque são fontes de presas durante o estio no Sul de Portugal.
À partida, uma barragem seria um ambiente inóspito para a espécie, pois constitui um corpo de água largo, profundo e com pouca vetegação ribeirinha nas margens, dificultando a captura de presas e reduzindo as possibilidades de refúgio. No entanto, em zonas mediterrânicas, Margarida Santos-Reis e Nuno Pedroso têm vindo a desenvolver uma linha de investigação que demonstra que, em condições populacionais favoráveis, como aquelas que parecem existir em Portugal, a lontra ocupa habitats como as barragens, especialmente porque são fontes de presas durante o estio no Sul de Portugal.
No entanto, no seu doutoramento, Nuno Pedroso afirma que a maioria dos requisitos ecológicos da lontra, como as condições para reprodução, decrescem quando uma barragem é construída. Adicionalmente a comunidade de presas e a dieta da lontra alteram-se dramaticamente, passando a espécie a alimentar-se de espécies não-nativas.
A lontra, pode dizer-se , é uma espécie tímida, esquiva e que faz a sua vida nos bastidores.
As lontras são geralmente animais solitários e territoriais. Noutro doutoramento efectuado sobre a lontra no Alentejo, Lorenzo Quaglietalla obteve dados de tamanho de territórios e ritmos da espécie, confirmando a actividade predominantemente nocturna da espécie e as diferenças entre o tamanho dos territórios dos machos e das fêmeas. Comprovou igualmente que as áreas vitais da espécie sofrem alterações da época húmida para a seca, pois os indivíduos concentram-se onde há água e alargam as suas áreas territoriais quando os rios estão mais cheios.
Para marcarem o território, as lontras dejectam em locais proeminentes, como pedras, troncos de árvores caídas ou pequenos diques.
Para marcarem o território, as lontras dejectam em locais proeminentes, como pedras, troncos de árvores caídas ou pequenos diques. Estas marcas, como as pegadas que deixam nas areias ou lodos das margens, são as observações indirectas de lontra que permitem confirmar a existência da espécie em determinado local. Segundo Anabela Trindade, que coordenou o único levantamento nacional sobre a distribuição da lontra em Portugal, promovido pelo então Instituto da Conservação da Natureza em 1995, “a dificuldade de observar lontras directamente é tal em contraponto à detecção dos seus vestígios indirectos, que foi desde logo decidido que os trabalhos de campo teriam de se centrar na procura de dejectos e pegadas”.
O censo detectou a espécie em praticamente todo o território continental (não existem lontras na Madeira e nos Açores), com excepção de áreas com forte ocupação humana ou cursos de água poluídos.
Como resultado, o censo detectou a espécie em praticamente todo o território continental (não existem lontras na Madeira e nos Açores), com excepção de áreas com forte ocupação humana ou cursos de água poluídos. Segundo Anabela Trindade, é provável que vinte anos depois, a situação da espécie seja mais favorável, em consequência de intervenções que melhoraram a qualidade da água de cursos de água outrora poluídos e da crescente preocupação ambiental.
A lontra tem a particularidade de ser o único carnívoro português com hábitos marcadamente aquáticos, tendo desenvolvido um órgão que a apetrecha de um sentido peculiar. As vibrissas são um órgão sensitivo no focinho que permite detectar pequenas vibrações sob a água, provocadas pelos movimentos das suas potenciais presas, especialmente úteis em águas com visibilidade reduzida ou durante a noite. Percorrem rios e ribeiros, visitam charcas, pauis, açudes e albufeiras de barragens. Na costa sudoeste de Portugal, vivem mesmo na orla costeira, procurando as presas no mar. Ao longo do seu território, percorrem longas distâncias em busca de peixes, lagostins ou anfíbios.
“Raras vezes vi duas lontras juntas. Quase sempre aparecem sozinhas”, lembra o Zé da Ludovica, que quase todos os dias passa horas no rio. E a explicação é simples. As lontras são animais solitários e territoriais. Não toleram a presença de rivais no seu território, não hesitando em expulsar os intrusos com agressividade. Assim, macho e fêmea juntam-se apenas durante o curto período de acasalamento. Após as cópulas, separam-se. Quando as crias nascem, ficam a cargo da mãe até ao primeiro ano de idade.
Ao contrário do que acontece em quase toda a Europa, onde a lontra é mais vulnerável, em Portugal a espécie foi classifcada como “pouco preocupante”, embora as observações se mantenham restritas a um reduzido número de privilegiados que partilham o seu meio aquático, como o Zé da Ludovica. É comum até uma lontra vir às redes e acabar por levar partes de alguns peixes capturados, mas o Zé é compreensivo. “Acontece”, explica o pescador de Mértola. “Se o faz, é porque não conseguiu apanhar nada e anda com fome… e não é por isso que fico mais pobre.”