O aquecimento climático, a seca e o consumo excessivo de água estão a esgotar alguns dos maiores lagos do mundo, ameaçando habitats e culturas.

Texto: Kenneth R. Weiss

As marcas de pneus estendiam-se sobre o leito do lago até ao horizonte.

Seguimo-las, procurando pistas sobre o que aconteceu a Poopó, outrora o segundo maior lago da Bolívia, que se esfumou no ar rarefeito das terras altas dos Andes.

O lago Chade, em África, é uma fracção do que era. O lago Urmia, no Irão, encolheu 80% em 30 anos. Restam as carcaças dos navios encalhados no lodo.

O carro avançava sobre o leito seco do lago, mas encontrávamo-nos mais de 3.650 metros acima do nível do mar. Numerosas aldeias piscatórias que dependeram do lago durante milhares de anos também se esvaziaram. Passámos junto de casas de adobe abandonadas. Lá ao fundo, distinguíamos pequenas embarcações de alumínio que pareciam flutuar sobre a água. Quando nos aproximámos, a miragem desapareceu e avistámos os barcos abandonados sobre o lodo. Saí da viatura. Os meus sapatos estalavam, com um ruído crepitante, sobre a crosta de sal que formara pedras irregulares.

O meu guia, Ramiro Pillco Zolá, avançou ruidosamente pela planície de sal até chegar a uma das embarcações parcialmente enterradas. Recordações da infância, passadas a remar no lago, transportaram-no para o passado, antes de deixar a sua aldeia, San Pedro de Condo, para estudar hidrologia, acabando por concluir um doutoramento em hidrologia e alterações climáticas na Universidade de Lund. “Isto não era pequeno”, contou. “Há três décadas, este lago cobria três mil quilómetros quadrados. Vai ser difícil de recuperar.”

A água desapareceu. Um par de galochas pretas jazia junto da embarcação. Um crânio de peixe embranquecido refulgia sob o sol ofuscante. O vento parou subitamente, envolvendo a cena pós-apocalíptica em silêncio. Se água é vida, isto era a ausência de ambas.

Por todo o planeta, as alterações climáticas estão a aquecer os lagos mais depressa do que os oceanos e a atmosfera. Este calor acelera a evaporação, conspirando com a má gestão humana para intensificar a falta de água, a poluição e a perda de habitat para aves e peixes. No entanto, embora “as impressões digitais das alterações climáticas se encontrem por toda a parte, não assumem o mesmo aspecto em todos os lagos”, explica Catherine O’Reilly, especialista em ecologia aquática da Universidade Estadual de Illinois e co-coordenadora de um censo mundial dos lagos.

No lago Tai, na região oriental da China, os escoamentos da produção agrícola e das águas residuais estimularam surtos de cianobactérias e a água quente permite o seu crescimento. Os organismos ameaçam as reservas de água potável de dois milhões de pessoas. O lago Tanganica, no Leste de África, aqueceu tanto que pôs em risco a captura de peixe que alimenta milhões de pessoas dos quatro países em redor. A água represada por detrás da gigantesca barragem hidroeléctrica de Guri, na Venezuela, atingiu níveis tão criticamente baixos nos últimos anos que o governo teve de cancelar as aulas das crianças num esforço para racionar a electricidade. Até o canal do Panamá, cujas eclusas recentemente alargadas e aprofundadas para acomodar navios de grande porte, ressente-se actualmente da falta de precipitação relacionada com o El Niño. O lago artificial de Gatun é afectado, prejudicando o fornecimento da água para as eclusas, mas também de água potável a grande parte do país.

De todos os desafios enfrentados pelos lagos num mundo em aquecimento, os exemplos mais desoladores encontram-se nas bacias de drenagem fechadas, onde as águas fluem até aos lagos, mas não correm para os rios, nem até ao mar. Estes lagos terminais, ou endorreicos, tendem a ser salgados, de baixa profundidade e hipersensíveis a perturbações. O desaparecimento do mar de Aral, na Ásia Central, é um exemplo desastroso do que pode acontecer a estas massas de água interiores. Neste caso particular, os principais culpados foram os ambiciosos projectos de irrigação soviéticos, responsáveis pelo desvio dos rios que o alimentavam.

Situações semelhantes estão a desenrolar-se em lagos terminais em quase todos os continentes, devido a um misto de consumo excessivo e condições de aridez cada vez mais graves. A comparação de imagens recolhidas por satélite revela os danos chocantes. O lago Chade, em África, encolheu para uma fracção da sua antiga dimensão desde a década de 1960, agravando a escassez de peixe e de água para irrigação. Comunidades deslocadas e refugiados que dependem actualmente do lago exercem uma pressão adicional sobre os recursos. As carências e as tensões no quente e seco Sael instigam os conflitos e as migrações em massa.

Depois do mar Cáspio, o iraniano lago Urmia foi outrora o maior lago de água salgado do Médio Oriente. Nos últimos 30 anos, encolheu cerca de 80%. Os flamingos que se banqueteavam com crustáceos estão agora praticamente desaparecidos. O mesmo se aplica aos pelicanos, garças e patos. Restam cais que não acedem a lado algum, carcaças ferrugentas de navios encalhados no lodo e planícies de sal estéreis. Os ventos que varrem o leito do lago sopram o sal até aos campos agrícolas, tornando o solo gradualmente estéril. Tempestades de poeiras nocivas, carregadas de sal, irritam os olhos, a pele e os pulmões de pessoas a 90 quilómetros de distância, em Tabriz, uma cidade com mais de 1,5 milhões de habitantes. A juntar a isso, nos últimos anos, as encantadoras águas azul-turquesa do Urmia ficaram manchadas de vermelho-sangue devido a bactérias e algas que florescem e mudam de cor quando a salinidade aumenta e a luz do Sol penetra nos baixios. Muitos turistas que afluíam ao local para banhos terapêuticos preferem agora manter-se à distância.

Embora as alterações climáticas tenham intensificado as secas e aumentado as temperaturas quentes de Verão nos arredores do Urmia, acelerando a evaporação, isso é apenas uma parte da história. O Urmia tem milhares de poços ilegais e uma proliferação de represas e projectos de irrigação que desviam a água de afluentes para regar o cultivo de maçã, trigo e girassol. Os peritos temem que o Urmia seja vítima da mesma exploração excessiva de água que eliminou o mar de Aral. As suas vozes parecem ter chegado a Teerão.

 

O presidente iraniano Hassan Rouhani prometeu cerca de quatro mil milhões de euros para reanimar o Urmia, libertando mais água das represas, melhorando a eficiência dos sistemas de irrigação e adoptando culturas que utilizam menos água. E, embora a tensão domine há várias décadas as relações entre os EUA e o Irão, os dois países permitiram a partilha de ideias entre cientistas com vista a repor o Urmia e o Grande Lago Salgado. Nenhum dos países quer que os seus lagos salgados tenham o mesmo destino do Poopó.

A planície de altitude da Bolívia, o Altiplano, encaixa num ponto invulgar onde os Andes se separam em duas cordilheiras independentes. A vegetação rasteira e arbustiva cresce de forma robusta. Os seres humanos que conseguem viver neste local inóspito são igualmente resistentes. Perto da extremidade setentrional do planalto encontra-se o lago Titicaca, a 3.810 metros de altitude, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Na extremidade meridional, fica o branco salar de Uyuni, 3.656 metros acima do nível do mar. O Poopó situa-se entre ambos, na zona de transição entre o lago comercialmente navegável mais alto do mundo e a maior planície de sal do planeta.

Há muito que os cientistas suspeitavam de que o Poopó acabaria um dia por ser asfixiado com sedimentos, secar e transformar-se em mais uma planície de sal como o salar de Uyuni. No entanto, a sua morte não estava prevista para os próximos mil anos, pelo menos, afirma Milton Pérez Lovera, professor de Ciências Naturais na Universidade Técnica de Oruro e membro de uma equipa que monitoriza massas de água nas terras altas da Bolívia.

Lago PoopóCrianças de Llapallapani aprendem a entretecer palha para conseguirem ganhar dinheiro na cidade como adultos, vendendo chapéus, porta-chaves, brincos e artesanato. Os habitantes uru que restam nas aldeias piscatórias esforçam-se por sobreviver, enquanto alimentam esperanças de regresso do seu lago. 

As alterações climáticas, a seca, os desvios de águas a montante para fins agrícolas e a extracção mineira aceleraram o processo, deixando o lago cada vez mais seco e estéril. Milton Pérez Lovera espera que o Poopó possa encher-se parcialmente, talvez ainda este ano, se as condições de La Niña trouxerem mais chuva aos Andes. No entanto, ele e outros cientistas não têm tantas certezas quanto à possibilidade de o lago recuperar a sua função ecológica como principal habitat de Inverno de aves aquáticas, incluindo três espécies de flamingos, uma das quais classificada como vulnerável. Tão-pouco sabem se os bancos de pesca – que durante milénios forneceram alimento às comunidades indígenas – poderão recuperar.

O destino do Poopó está interligado ao dos uru, um grupo indígena conhecido como “povo da água”. O tamanho e a profundidade do lago têm diminuído, obrigando os pescadores uru a aventurarem-se cada vez mais longe no lago para capturar peixe. Em 2014 e 2015, registaram-se mortes maciças de peixes no lago, cada vez menos profundo, quando as temperaturas da água se elevaram acima dos habituais 15-25ºC. Milhões de carcaças flutuaram à superfície, de barriga para cima. Quando Franz Ascui Zuna, enviado pelo Ministério da Saúde da Bolívia para monitorizar a maior aldeia uru, Llapallapani, registou uma temperatura da água de 38°C, proferiu um diagnóstico: o lago estava “com febre”.

Pouco depois, as aves que tipicamente habitam o lago passavam fome, morriam ou voavam para longe. Num surto de evaporação ocorrido em 2015, o que restava do lago desapareceu quando as águas sobreaquecidas foram varridas pelos ventos do Altiplano. O governo declarou o Poopó como zona de catástrofe, enviando a cada família das aldeias vizinhas alguma massa, arroz, óleo de cozinha e açúcar. Depois as chuvas voltaram a encher parte do lago e os funcionários da administração federal rejubilaram, comemorando e divulgando imagens captadas a partir de um helicóptero no início de 2017. Pouco depois, porém, o presidente da Bolívia, Evo Morales, visitou o lago e confirmou aquilo que os autóctones já sabiam: a camada superficial da água estava a desaparecer rapidamente. Imagens recolhidas por satélite em Outubro de 2017 mostraram o lago novamente quase seco.

Morales procurou eximir o governo de quaisquer culpas na crise, invocando os ciclos naturais de seca e recuperação. Com efeito, o lago já secou e recuperou – a última vez em meados da década de 1990. Contudo, os cientistas argumentam que a situação piorou desde então. E agora a bacia hidrográfica e as comunidades residentes enfrentam uma situação mais delicada.

Na estrada a caminho da aldeia de Puñaca Tinta María, vimos um velhote com botas de borracha e chapéu de palha de abas largas curvar-se, usando uma enxada de cabo curto para misturar barro com água salgada que trouxera de um poço escavado à mão. Todos os dias, desde que o lago secou, Féliz Mauricio trabalha arduamente, vestindo roupas sujas de lama, para fazer tijolos de adobe. “Não temos lago”, diz. “Não temos peixe. Não temos nada.” Féliz, de 77 anos, descende de uma longa linhagem de pescadores nativos. Este respeitado ancião dos uru é conhecido pelo seu talento para construir pequenas balsas de pesca com juncos entrelaçados utilizando uma espécie de juncos gigantes chamados totora, e por preparar mesas de oferendas em cerimónias tradicionais para pedir chuvas e épocas de pesca abundantes.

Pelos seus cálculos, ele, a mulher e a filha são uma das poucas famílias que restam nas casas nas margens daquele que foi outrora o lago Poopó. Um dos filhos mudou-se para criar vacas e ovelhas, outro aceitou um emprego na construção em Cochabamba. Os seus vizinhos de Puñaca Tinta María e outras aldeias também se dispersaram. Alguns foram trabalhar em fábricas de têxteis e vestuário no Chile e na Argentina, outros mudaram-se para cidades e arranjaram empregos à jorna, ou como mineiros, extraindo estanho, chumbo, prata e outros metais. Algumas dezenas encaminharam-se para aquilo que poderá ser o futuro do seu adorado Poopó: o trabalho nas minas de sal do salar de Uyuni.

Na actual situação mundial, o destino dos uru poderá parecer banal. Restam cinco mil membros desta comunidade e menos de mil vivia nos arredores do Poopó antes de o lago secar. No entanto, aqueles que foram obrigados a mudar-se juntaram-se a um movimento global de deslocados por distúrbios ambientais relacionados com o clima. Há uma década, as Nações Unidas avisaram que os povos indígenas seriam os primeiros atingidos pelas alterações climáticas, pois muitos dependiam da generosidade da natureza, como os caçadores e pescadores de subsistência. Estima-se que, em 2016, 23,5 milhões de pessoas tenham abandonado as suas casas devido a catástrofes relacionadas com o clima, segundo o Centro de Monitorização do Deslocamento Interno do Conselho Norueguês para os Refugiados.
O número excedeu 6,9 milhões de deslocados por conflitos e guerras no mesmo ano.

A maioria destas comunidades deslocadas mantém-se nos seus países. Se atravessarem uma fronteira, não possuem requisitos para pedir protecção como refugiados à ONU porque não estão a fugir de violência ou perseguições. “Vivemos a época de maiores migrações forçadas desde a Segunda Guerra Mundial”, diz William Lacy Swing, director-geral da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas. “Desta vez, porém, além da guerra, o clima é um dos grandes responsáveis. Temos de apoiar as comunidades afectadas pelas alterações climáticas para que possam migrar com dignidade.”

«Vivemos na época da maior migração forçada desde a Segunda Guerra Mundial. Temos de apoiar as comunidades assoladas pelas alterações climáticas para que estas possam migrar com dignidade.» William Lacy Swing, director-geral da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas

“Pára!”, gritou Ramiro Pillco Zolá no interior do nosso veículo fustigado pelo vento. “Volta para trás.” Estávamos a atravessar uma extensão arenosa plana nas terras altas, acima de Poopó. Sem nos apercebermos, tínhamos atravessado uma pequena ponte sobre um canal de irrigação. O canal estava vazio, bem como o adjacente rio Desaguadero, à excepção de uma pequena poça que encontrámos. Mais de 65% da água do Poopó vem do rio Desaguadero, que serpenteia em meandros ao longo de trezentos quilómetros através das terras altas bolivianas desde a sua fonte principal, o lago Titicaca. Centenas de canais de irrigação e outros projectos de desvio da água foram construídos ao longo do rio para iniciativas de extracção mineira e cultivo. Explorações agrícolas e cidades também desviam água do rio Mauri, um grande afluente deste na Bolívia e no Peru.

 

Outros 22 riachos e rios mais pequenos e sazonais também desaguam no Poopó provenientes das montanhas em redor. Quase todos são retidos para operações agrícolas e mineiras, como a mina de estanho na vila de Huanuni. A uma hora de distância de automóvel, uma barragem construída em 1961 no rio Tacahua contém uma camada espessa de sedimentos coberta de uma fina película de água. “Temos cinco barragens como esta”, disse Ramiro, enquanto atravessávamos o seu vertedouro seco, olhando para o leito da albufeira, lá no fundo. “Não faz sentido construir barragens em zonas semiáridas. Elas limitam-se a travar a água a montante, provocando evaporação.”

Num ano típico, a região do lago Poopó regista cerca de 38 centímetros de pluviosidade entre Novembro e Março, seguidos de sete meses secos. No entanto, a época das chuvas está cada vez mais curta. O Altiplano sofreu secas repetidas devidas aos episódios de El Niño e os cientistas crêem que estas sejam mais frequentes num clima mais quente. O El Niño de 2015-16 foi acompanhado pela seca mais dramática e pelas temperaturas mais altas alguma vez registadas nas terras altas da Bolívia, afirma Milton Pérez Lovera. O Altiplano tende a reter o calor entre as cordilheiras montanhosas e as temperaturas médias aumentaram 0,9ºC numa única década, acelerando a perda de água devido à evaporação.

O aumento das temperaturas atmosféricas nos Andes nos últimos 40 anos desencadeou um recuo acelerado dos seus glaciares, derretendo metade do gelo que circunda a bacia Titicaca-Poopó.

Quando os glaciares começam a derreter pela primeira vez, fornecem um fluxo de água adicional, explica Dirk Hoffmann, investigador alemão sediado em La Paz. “No entanto, já atingimos provavelmente o expoente máximo da água na maioria das bacias hidrográficas glaciárias”, diz. Isto significa que a água do degelo dos glaciares diminuirá agora na região até desaparecer.

Entretanto, a procura de água aumentou também entre a população da Bolívia, que cresceu 42% desde meados da década de 1990. No ano passado, o governo escavou um canal num braço do rio Desaguadero para acelerar o fluxo da água até ao Poopó. Também forneceu carrinhos de mão, picaretas e alguns alimentos para sustento de trabalhadores uru desesperados enquanto estes construíam um dique de barro com meio metro de altura no leito do lago, na esperança de concentrar a água numa secção pequena, fazendo-a, deste modo, durar mais tempo. Para hidrologistas como Ramiro, estes esforços parecem inúteis. Soluções mais realistas implicariam a demolição de represas, a adopção de sistemas de irrigação mais eficientes e a redução dos volumes de água desviada dos rios. Contudo, há pouca vontade política de prejudicar os agricultores a montante e escasso financiamento para projectos hidráulicos na Bolívia.

Uma comissão peruana-boliviana que gere em conjunto o Titicaca construiu comportas concebidas para libertar mais água no rio Desaguadero nos anos secos. No entanto, à medida que a procura de água aumenta a montante, no Peru, estas comportas podem tornar-se inúteis num futuro não muito distante. Mark Bush, um paleoecologista do Instituto de Tecnologia da Florida, acredita que não será necessária uma grande redução no nível da água do lago Titicaca para o rio parar simplesmente de correr: isso já aconteceu três vezes antes, nas profundezas do tempo.

“O Altiplano é extremamente sensível à evaporação”, diz o especialista. Embora advirta que os modelos climáticos não representam a realidade andina particularmente bem, Mark prevê que a região possa em breve chegar a um ponto de ruptura. “Em meados deste século, poderemos ter, pelo menos, 1ºC de aquecimento e poderemos aproximar-nos do limiar que pode causar a evaporação do lago Titicaca ou uma redução substancial do seu volume”, prevê.

A sul do Poopó, nas terras altas, a margem do lago dá lugar a uma paisagem ainda mais árida, com rochas talhadas pelo vento e manadas de lamas, alpacas, ovelhas e algumas vicunhas selvagens. No início da Primavera, grande parte do solo permanece exposto após a colheita da quinoa que alimenta o apetite insaciável da Europa e dos EUA por este cereal rico em proteína.

Lago PoopóSeco e coberto por uma crosta de sal, o leito do lago boliviano estende-se até ao horizonte. As embarcações estão abandonadas, os peixes e as aves aquáticas desapareceram. Os pescadores que dependiam do lago mudam-se para outras paragens. É uma diáspora nascida da seca.

O sentido de oportunidade é péssimo. Antes do plantio das culturas, os ventos provenientes do deserto de Atacama, no Chile, fustigam os campos vazios, transportando duas vezes mais toneladas de sedimentos para o lago do que acontecia antes de as ervas e os arbustos nativos serem arrancados para a produção de quinoa. Como resultado, o lago, que costumava ter 3,5 metros de profundidade, está a encher-se de areia e poeira mais depressa do que se previra.

Para lá das terras altas, a superfície do salar de Uyuni (com crostas de forma poligonal) apresentava-se dividida apenas por estradas e montes de sal extraídos e enviados para as fábricas de sal das proximidades. Será este o futuro do Poopó? Paulino Flores, antigo líder da comunidade uru, espera que tal não se concretize, mas, na dúvida, está a preparar-se para a eventualidade. Paulino e a família mudaram-se para a cidade vizinha de Colchani e arranjaram trabalho nas fábricas de sal.

Paulino domina todos os aspectos da produção: extrai o sal do solo com picareta e pá, transporta-o até à fábrica, remove as impurezas, tritura-o e ensaca-o. Esfrega as mãos calejadas e manchadas enquanto fala, semicerrando os olhos sob o barrete andino de malha ao virar-se para o Sol.

Paulino já pensou em instalar uma fábrica de sal nas margens do Poopó, trabalhando com o grupo não-governamental Centro de Ecologia e do Poo Andino. O director-executivo do grupo, Gilberto Pauwels, explica que os seus colegas estão a avaliar todas as possibilidades para ajudar os uru a desenvolverem outras formas de subsistência, preservarem as suas comunidades e manterem viva a sua cultura. Puñaca Tinta María é apenas uma das aldeias quase abandonadas, situadas junto de um lago seco que deixou os pescadores e caçadores de subsistência sem saberem o que fazer para alimentar as suas famílias.
É um padrão que se repete em todo o mundo.

Paulino sonha com a recuperação do lago e com o regresso dos peixes e das aves aquáticas. Recorda com nostalgia a sua antiga vida, a maneira como cresceu a caçar e a pescar com o pai e outros parentes. Os uru acreditam que são descendentes do primeiro povo a instalar-se no Altiplano há 3.700 anos. Um estudo genético realizado em 2013 sugere que talvez tenham razão, revelando uma ascendência específica, provavelmente derivada de linhagens andinas ancestrais. Este povo independente, que viveu em tempos em ilhas de juncos flutuantes, durou mais do que o império inca e sobreviveu à conquista espanhola. Agora, porém, os uru do Poopó enfrentam o desaparecimento do seu amado lago. “Se não houver lago, não há povo uru”, resume Paulino. “Ele dá-nos comida e futuro.” 

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