Na Zona de Conservação de Vida Selvagem de Lewa, uma equipa captura uma zebra de Grevy (uma espécie ameaçada) para ajudar a constituir uma nova
manada na Zona de Conservação Comunitária de Sera. A Sera foi fundada pelas comunidades samburu locais, com o apoio do Northern Rangelands Trust (NRT), uma organização financiada em grande parte por ONG e governos ocidentais para promover esforços de conservação liderados pelas comunidades.
No Norte do Quénia, a pandemia testou esta ideia.
Texto: Tristan McConnell
Fotografias: David Chancellor
À porta da clínica de Biliqo, um vento quente chicoteia o solo, levantando a poeira.
Arranca pedacinhos de lixo presos nos arbustos espinhosos, faz rodopiar garrafas de plástico deitadas no chão e levanta parte do hijab azul-índigo de Madina Kalo, que se encontra junto da porta de madeira da clínica.
Estamos a meio do ano, a estação seca principal no Norte do Quénia. A terra apresenta-se ressequida pelo sol. A paleta de cores é clara e luminosa, como uma fotografia sobreexposta.
Vestida com a túnica branca de enfermeira e máscara cirúrgica, Madina semicerra os olhos e depois volta a entrar na clínica, apreendendo a frescura do interior. Atende cerca de 30 pessoas por dia, a maioria das quais pastores que se queixam de maleitas rotineiras como infecções respiratórias, malária e diarreia. Quando há casos graves, Madina reencaminha os pacientes para a vila de Isiolo, o que os força a uma viagem a pé de cinco horas através de uma estrada de terra batida.










O lixo e a letargia de Biliqo não inspiram ideias de turismo ou de natureza. Contudo, a vila é uma de 39 comunidades de conservação criadas pelo Northern Rangelands Trust (NRT), uma organização queniana de conservação. A troco da promessa de reforço da protecção do seu ambiente e dos animais selvagens, os habitantes das zonas de conservação recebem serviços e benefícios essenciais, frequentemente financiados pelo dinheiro dos safaris turísticos.
É uma experiência de coexistência em grande escala, baseada na ideia de que os seres humanos e os animais selvagens podem prosperar juntos. Numa área com 44 mil quilómetros quadrados, centenas de milhares de pessoas, milhões de cabeças de gado e populações importantes de animais selvagens convivem lado a lado. Cerca de dois terços dos animais selvagens do Quénia vivem fora de parques e reservas nacionais e muitas zonas de conservação tornaram-se uma parte essencial do ecossistema nacional da conservação.
Quando a pandemia provocou o encerramento das fronteiras e obrigou os aviões a permanecerem em terra, os turistas desapareceram do Norte do Quénia, negando a África uma grande parte dos rendimentos que o turismo de vida selvagem lhe fornece todos os anos: 23,8 mil milhões de euros em 2018. No Quénia, o turismo representava pelo menos 8% do PIB. Temeu-se que as conquistas de conservação das últimas décadas se esfumassem. Grande parte deste trabalho apoia-se no turismo, que financia os vigilantes da natureza, a investigação e os postos de trabalho em zonas onde há pouco emprego, constituindo uma alternativa à caça de animais ou ao abate de árvores.
Christina Shintani. Fontes: Northern Rangelands Trust; Gabinete Nacional de Estatística do Quénia; P. Wang e outros, Hbase Dataset, Nasa Sedac; Iniciativa da ESA para as Alterações Climáticas, Projecto Land Cover 2017; Oxford Covid-19 Government Response Tracker; David Chiawo
Muitos trabalhadores do sector da conservação consideram as zonas comunitárias como exemplos para o futuro da conservação e do desenvolvimento sustentáveis, sob lideranças locais, apesar de o NRT enfrentar críticas de alguns quenianos, segundo os quais a organização é demasiado grande e poderosa. No momento em que o modelo de conservação comunitária ganha contornos mais bem definidos no Norte do Quénia, a pandemia representa o mais importante teste de stress conhecido até à data.
A conservação africana já se encontrava em crise antes do coronavírus. Financiamento insuficiente, má gestão, caça furtiva, destruição de habitat e alterações climáticas são factores incluídos numa longa lista de ameaças causadoras de colapsos da biodiversidade e de um decréscimo acentuado das populações de espécies em risco, como as tartarugas-de-pente, os pangolins, os grifos-africanos ou os elefantes.
Para aqueles de nós que vivem a uma distância romântica e segura dos animais selvagens, eles fazem parte de um património natural global: é bom saber que existem e é maravilhoso vê-los na vida real. Mas o que diremos das pessoas que vivem a seu lado? E se um leopardo matar a sua cabra ou um elefante espezinhar o seu filho? E se não conseguir pagar as suas despesas médicas ou escolares e souber que há mercado para vender peles de leão e presas de elefante? E se a sua família tiver fome e houver uma girafa a uma caçada de distância? O que valem, então, os animais selvagens vivos? E o que valem mortos?
A missão do NRT é aumentar o valor dos animais para as pessoas que partilham a paisagem com eles e interligar os seus futuros. Com base em ideais de propriedade comunitária da terra e de autogovernação, cada zona de conservação é uma entidade jurídica distinta, sendo gerida por um conselho eleito de líderes comunitários.
Algumas zonas de conservação estão mais perto de satisfazer esses ideais do que outras. Os conselhos precisam de gerir os desejos frequentemente concorrenciais dos diversos membros da comunidade, por vezes distantes entre si, incluindo pastores nómadas que nem sempre estão presentes nas negociações sobre o planeamento do território. Por vezes, esse sentimento de exclusão coincide com divisionismos étnicos, exacerbando os conflitos. Zonas de conservação com conselhos mais representativos e activos conseguem assegurar maior participação e benefícios para a comunidade, enquanto outras se esforçam por cumprir os princípios de governação básicos.
Abrindo caminho entre as cabras, uma mulher recolhe água num furo aberto pelo NRT na Zona de Conservação de Biliqo Bulesa. Os poços e sistemas de irrigação são serviços que os conselhos locais das zonas de conservação financiam com as taxas que os turistas pagam, mas também podem cobrir custos operacionais das zonas de conservação. O NRT obtém donativos do estrangeiro e de governos locais.
O NRT não é proprietário de terras e funciona como organização de cúpula, desempenhando tarefas de administração, angariação de fundos, formação de agentes de segurança e planeamento estratégico. Se a autogovernação tiver alicerces robustos, as instituições acabarão por se tornar mais fortes e mais responsabilizáveis.
Os doadores estrangeiros, que garantem 90% do financiamento do NRT, suplementado pelas receitas turísticas, outros rendimentos comerciais e alguns fundos disponibilizados pelos governos locais, ajudaram o NRT a gerir melhor a pandemia do que a maioria dos parques e reservas de vida selvagem dependentes do turismo. No entanto, os doadores também transformaram o NRT num alvo para aqueles que olham o dinheiro e a influência estrangeiros como formas de imperialismo. “É uma ONG internacional, embora actue como ONG local”, resume Achiba Gargule, investigador de problemas comunitários, que cresceu numa comunidade pastoril do Norte do Quénia.
Independentemente desses pormenores, o NRT está a construir um grande ecossistema interligado que depende menos dos altos e baixos do turismo, tem fontes de rendimento mais diversificadas e acaba por ser mais resistente face aos choques globais.
Antigamente, a clínica de Madina era constituída por dois edifícios dilapidados e uma maca velha, mas agora tem uma nova maternidade com dez camas, um edifício com consultórios médicos e, dentro em breve, terá alojamento para o pessoal e um laboratório. A clínica é propriedade do Ministério da Saúde do Quénia, paga por governos europeus e foi construída pelo NRT, numa tentativa pragmática de suscitar a adesão das pessoas à sua agenda de conservação. É um equilíbrio de interesses do qual Madina é participante informada.
“A saúde é o mais importante para cada comunidade”, diz, enquanto regista os pacientes do dia. “Não podemos falar com pessoas que não estão bem. Temos de começar pela saúde das pessoas antes de começarmos a falar de conservação.”
As comunidades pastoris são uma componente essencial das paisagens áridas do Norte do Quénia. Ferozmente independentes e armadas, deslocam-se com o gado em busca de pasto. A rivalidade pelos escassos recursos é intensa e pode tornar-se violenta. Uma manada crescente é um símbolo de sucesso e um escudo protector contra a catástrofe. No entanto, à semelhança dos animais selvagens, o gado precisa de espaço para deambular, erva para comer, água para beber, o que significa que gado e conservação concorrem frequentemente entre si. O desafio é portanto encontrar uma forma de ambos prosperarem.
“Aqui, no Norte, as vedações nunca protegerão os animais”, diz Tom Lalampaa, um samburu conservacionista e director-geral do NRT. “Temos de de garantir que as pessoas se transformem nessa vedação.”
Macacos-de-cara-preta fazem investidas simuladas contra a porta e as janelas, enquanto conversamos. “Se as pessoas cuidarem dos animais selvagens da mesma forma que cuidam do seu gado, então teremos uma vitória.”
Um elefante capturado numa armadilha debate-se na lama, na Zona de Conservação de Nannapa. Pastores alertaram o director da zona de conservação para o sofrimento do animal e veterinários e vigilantes da natureza iniciaram o salvamento. Utilizando um tractor, cordas e as mãos, libertaram o animal exausto.
É também uma tarefa em evolução constante. Os conselhos de conservação são incentivados a reservar parte das suas terras exclusivamente aos animais selvagens. O resto é gerido por planos desenvolvidos por comissões de conservação das pastagens e aprovados pelos conselhos comunitários para o seu uso pelos animais domésticos e pelos animais selvagens. As directrizes reguladoras de quando, onde e quantos animais podem pastar, contudo, podem causar controvérsia, sobretudo entre aqueles que se sentem excluídos da tomada de decisões e consideram qualquer restrição como ameaça potencial à sua existência.
Hassan Roba, especialista em zonas secas do Fundo Christensen, que dá apoio aos povos nativos e às suas paisagens, defende que estes planos de pastoreio comprometem a flexibilidade de deslocação segundo as chuvas e, frequentemente, reservam à vida selvagem terras que também são as melhores pastagens para o gado. “São formas muito idealistas de pensar na maneira como a terra é gerida”, afirma. “No entanto, mesmo na prática, tem sido dada prioridade aos animais selvagens. Os animais de criação são apenas um extra.”
Sem segurança para as pessoas e para os animais selvagens, nada funciona. “A paz é tudo”, diz Pauline Lolngojine, mãe solteira de 11 filhos, líder comunitária, pacificadora e antiga presidente do conselho de administração da Sera, uma zona de conservação de 340 mil hectares do NRT. Conversamos sob os beirais ondulados de uma igreja pentecostal construída com madeira, em Archers Post, uma vila junto do limite sudoeste de Sera. Quando Pauline era pequena, o Norte do Quénia era mais selvagem, distante da autoridade central de Nairobi e armado até aos dentes. O gado era constantemente roubado e os assaltos na estrada comuns.
“Combatíamos uns contra os outros: os samburu, os rendille e os borana. Porém, a zona de conservação começou a unir essas comunidades”, diz. A Sera formou-se em 2001, promovendo a cooperação e criando um objectivo partilhado com uma vantagem partilhada: melhorar a gestão das terras e aumentar os rendimentos. “Vimos que era bom conservar para podermos ganhar dinheiro através dos animais selvagens”, diz.
O investimento de longo prazo na construção da paz significa que, em tempos difíceis, como uma pandemia ou uma seca, há uma estrutura que dilui as tensões e mantém a estabilidade. A colaboração e o dinheiro ajudam, mas a segurança também requer a aplicação da lei, que assume a forma das patrulhas e unidades móveis de vigilantes do NRT. As unidades móveis foram criadas para proteger os elefantes e os rinocerontes, mas o duplo papel dos vigilantes da natureza como reservistas de policiamento torna-os parte integrante de uma arquitectura de segurança regional com falta de pessoal e de financiamento. Com capacidade para combater a criminalidade não relacionada com animais selvagens, como os roubos de gado e os assaltos nas estradas, as unidades móveis ajudaram a preencher uma lacuna da segurança.
Armados com carabinas, deslocam-se em grupos de 12 pessoas por veículo, reabastecendo-se em movimento e dormindo sob as estrelas. Ganham, no mínimo, 290 euros por mês, mais do dobro do salário normal de um vigilante. Cada unidade é constituída por membros de três a quatro tribos diferentes e a sua natureza multiétnica permite que as equipas se desloquem a qualquer lugar e falem com qualquer pessoa.
Com dois metros de altura, Losas Lenamunyi é um homem magro, de cabeça rapada e sorriso desdentado. O comandante cresceu a criar gado junto do bairro de lata da estrada de Sereolipi, onde pessoas de etnia samburu eram frequentemente tratadas com animosidade e desconfiança pelos vizinhos borana, gabra e rendille. Actualmente, partilham todos um Land Cruiser. “Trago no carro todas as tribos”, diz.
Losas não frequentou a escola e diz nunca ter pensado muito nos animais selvagens. Tornou-se vigilante da natureza pelo dinheiro. “Não havia oportunidades de conseguir um trabalho qualquer”, diz. Como vigilante da natureza, “os meus filhos têm comida suficiente”.
A procura de emprego tornou-se clara numa sessão de recrutamento de vigilantes realizada na Melako Conservancy. Para três postos de trabalho disponíveis, apareceram 200 candidatos. Reuniram-se na margem sul do rio, vestindo sarongs e calçando sandálias, com facas de 30 centímetros de comprimento presas nos cintos e bastões de caminhada na mão. “São as pessoas com formação que conseguem os empregos”, diz Andrew Dokhole, presidente da Melako. “É por isso que escolhemos os vigilantes entre os habitantes locais”. E acrescenta: “É a sua única oportunidade.”
Um vigilante da natureza do Serviço de Vida Selvagem do Quénia carrega a pele seca de um leão morto devido a causas naturais, até um local de armazenamento. O serviço empresta-o para cerimónias culturais, como iniciações à idade adulta, permitindo a continuidade das tradições sem necessidade de matar mais leões. Apesar disso, à medida que o número de animais selvagens recupera nas zonas de conservação e as populações humanas crescem, o conflito entre ambas tem aumentado.
Com mais de 1.300 pessoas contratadas como vigilantes da natureza, administradores e outros cargos das zonas de conservação do NRT, a organização é um dos maiores empregadores do Norte. A organização está envolvida em tantos assuntos que Matt Brown, da Nature Conservancy, e membro do conselho de administração do NRT, diz: “Enquanto ONG detida pela comunidade, o NRT está a fazer, essencialmente, o trabalho do governo local.” Não é um papel que o NRT queira desempenhar de forma permanente, diz, e é uma caracterização daquilo que causa desconforto a Tom Lalampaa. Todas as vozes críticas partilham a mesma convicção: o NRT é um projecto neocolonial que mina a soberania queniana e usurpa as responsabilidades do governo.
“O NRT deveria ser liderado pela comunidade e pertencer à comunidade”, diz Achiba Gargule. “Mas o que estamos a ver é que está ligado a organizações de conservação muito grandes e muito importantes em todo o mundo.”
Numa tentativa de contrariar essas críticas, o NRT tornou a sua direcção executiva e o seu conselho de administração responsabilizáveis perante um conselho de anciãos, composto pelo presidente de cada zona de conservação. Há questões sobre o poder efectivo desse conselho, mas o NRT insiste que a sua existência e proeminência são importantes.
Segundo Tom Lalampaa, o NRT não procura substituir o governo, mas acrescenta que “o Norte do Quénia tem sofrido algumas carências e as zonas de conservação do NRT ajudaram a supri-las”.
Durante mais de um século, os governos sediados em Nairobi trataram o Norte com desprezo. Os colonos britânicos pouco interesse tinham pela região, considerando que não valia a pena apropriarem-se da terra árida para ali instalarem explorações agrícolas e ganadeiras. Em 1963, a independência trouxe uma nova elite dirigente, dominada por quenianos do Sul, que também olhavam com sobranceria os habitantes do Norte, por entenderem que o seu modo de vida de pastores itinerantes os tornava difíceis de governar.
Esta negligência deixou um vazio que o NRT ajudou a preencher, prestando serviços essenciais a troco da conservação. “O essencial nisto é influenciar as pessoas”, diz Ian Craig, um dos fundadores do NRT e seu director de conservação. “Como posso influenciá-lo e levá-lo a pensar de forma compatível com a nossa?”
É uma estratégia abertamente transaccional.
Aos 68 anos, Ian é a força motriz geradora de confiança e também um alvo de críticas por ser um proprietário de terras branco com ascendência colonial.
Deu-me boleia no seu Piper Super Cub monomotor amarelo para conversarmos.
“É um país grande”, diz Craig entre estalidos, através do equipamento de auscultadores. Elevamo-nos sobre o vale do Rifte, sobrevoando uma paisagem dura composta por lagos formados por actividade tectónica, escarpas aguçadas e afloramentos vulcânicos. Enquanto nuvens de tempestade semelhantes a bigornas se formam sobre o altíssimo lado oriental do vale e raios denteados explodem no céu, Ian vai abanando a aeronave de dois lugares para a direita e para a esquerda.
O NRT nasceu da Lewa Wildlife Conservancy, uma reserva de vida selvagem privada com 25 mil hectares, outrora um rancho ganadeiro fundado pelo avô de Ian em 1922. Quando este o herdou, cerca de 50 anos mais tarde, continuou a ser um magnífico pedaço de pradaria e floresta, com colinas suaves e vales profundos, mas teve dificuldades para subsistir como rancho. “Vivíamos constantemente em situação de seca. Não conseguíamos ganhar dinheiro. Era uma catástrofe”, diz.
Em meados da década de 1980, os conservacionistas convenceram-no a erguer vedações em volta de dois mil hectares de terra, criando um santuário vedado para rinocerontes-negros, gravemente ameaçados pelos caçadores furtivos que os matavam para lhes removerem os cornos. Vivia-se então em África o apogeu da caça furtiva ao elefante para obtenção do seu marfim. Abatiam-se todos os anos dezenas de milhares de animais. Com os rinocerontes abrigados no seu quintal e os elefantes chacinados nas redondezas, Ian percebeu com clareza que a Lewa não sobreviveria em isolamento. As populações humanas cresciam, o número de cabeças de gado aumentava, as espécies de animais selvagens diminuíam e as paisagens degradavam-se. Se o problema eram as pessoas, então a solução teria de passar por elas.
Em 1995, ano em que a família transferiu o resto do seu rancho para Lewa, Ian convenceu os maasai laikipiak, donos de um “rancho de grupo” (uma estrutura queniana de propriedade da terra na qual os moradores partilham a posse das terras de pasto), a mudarem de perspectiva.
A comunidade local concordou em reservar parte das suas terras à protecção dos animais selvagens, pondo em prática planos de pastoreio nas terras restantes, atraída pela promessa das receitas provenientes do turismo de safaris. Durante algum tempo, o modelo funcionou.
A norte de Lewa, os 8.900 hectares de escarpas rochosas e vales florestados de Il Ngwesi estendem-se desde o planalto de Laikipia até às planícies ao longo do rio Ndare. Um novo estabelecimento hoteleiro ecológico abriu no ano seguinte.
À medida que a zona-tampão em redor de Lewa crescia, aumentavam também as ambições de Ian Craig. Pouco depois, foi a vez de Namunyak, abrangendo os picos graníticos e as cristas afiadas da cordilheira de Mathews, uma espinha dorsal com 80 quilómetros de comprimento de ilhas florestadas que emergem entre as nuvens, centenas de metros acima da savana. Seguiram-se mais zonas de conservação.
Gnus deslocam-se pelas savanas queimadas da Reserva de Caça de Masai Mara, que depende do turismo para financiar as suas operações de conservação. Quando a pandemia suspendeu as viagens, muitos funcionários locais perderam o emprego e alguns foram obrigados a actividades ilegais como a caça furtiva. Menos dependentes do turismo, as zonas de conservação comunitárias do NRT revelaram-se mais resilientes.
A sua influência cresceu, em âmbito e escala, até que, em 2004, com financiamento da USAID, Ian Craig contribuiu para a criação do NRT. Pretendia ligar entre si e conservar paisagens enormes, interligadas por corredores de migração de animais selvagens, onde as comunidades humanas e o seu gado pudessem coexistir com a vida selvagem.
“A narrativa da conservação não é um parque nacional dos animais”, afirma. “Este modelo tem que ver com conectividade”, acrescenta, referindo-se ao mosaico de parques nacionais públicos, reservas privadas e terras comunitárias no Norte do Quénia. “Estas bolsas de terra são grandes, mas não são suficientemente grandes… Para os animais selvagens conseguirem sobreviver, respirar e crescer, precisam daquelas comunidades.”
Por sua vez, as comunidades beneficiam com o turismo. Em cada zona de conservação, os turistas pagam uma taxa de conservação que é dividida numa proporção de 60/40 entre os programas comunitários da zona de conservação e as suas operações.
Os programas financiam propinas escolares, projectos hídricos e despesas médicas e a percentagem destinada às operações paga os vigilantes da natureza, os veículos e o equipamento. As taxas variam, mas os turistas estrangeiros pagam habitualmente até 80 euros por dia, enquanto os habitantes quenianos podem pagar um quinto desse valor.
Em nenhum outro sítio do norte se encontra uma concretização mais lucrativa do potencial turístico do que em Sarara Camp, um hotel ecológico na zona sul de Namunyak. Quando o acampamento foi construído, em 1997, “não havia paz, nem para os humanos nem para os animais selvagens”, lembra o guia de safaris e motorista Daniel Lenaipa, que cresceu ali. A segurança viabilizou o regresso dos elefantes, leopardos, mabecos e outros animais, bem como a vinda de turistas. Em 2019, os visitantes de Sarara pagaram cerca de 288 mil euros em taxas, custeando assim o orçamento de toda a zona sul de Namunyak, o equivalente a quase um quarto do rendimento turístico de todas as zonas de conservação do NRT nesse ano.
Surgiu então o coronavírus. “Nos últimos 10 ou 15 anos, temos obtido receitas destinadas à comunidade e, pela primeira vez, talvez não houvesse nada para lhes dar dessas receitas por provirem apenas dos turistas”, diz Moses Lenaipa, antigo membro do conselho de Namunyak e actual director do orfanato para elefantes Reteti, no centro de Namunyak.
Encontro-me com o director de Namunyak, Tom Letiwa, em Reteti, numa manhã escaldante, enquanto olho os bebés elefantes num recinto vedado perto de nós alimentados à mão com biberões de leite de cabra fortificado, adquirido a mulheres autóctones. “Este ano, as receitas serão muito baixas”, disse. A rápida reacção do Quénia para abrandar a propagação da doença, encerrando escolas, tornando obrigatório o uso de máscaras faciais, decretando o recolhimento obrigatório a nível nacional e impondo restrições ao tráfego transfronteiriço, sugeriu a todos os quenianos que as repercussões da pandemia seriam graves. Os habitantes de Namunyak viram que não havia turistas e perceberam que não haveria dinheiro, diz Tom.
O NRT fez cortes salariais nas sedes e pressionou os doadores no sentido de continuarem a pagar aos vigilantes da natureza e de manterem intactos os orçamentos operacionais das zonas de conservação. Também houve uma injecção de financiamento público. As autoridades distritais criaram um fundo anual de 904 mil euros para ajudar as nove zonas de conservação do distrito de Samburu e o governo nacional contribuiu com 1,8 milhões de euros para pagar os ordenados dos vigilantes do NRT, no âmbito do seu plano de estímulo face à COVID-19.
Ao contrário do que sucedeu em zonas protegidas mais dependentes do turismo, como na Reserva de Caça de Masai Mara, na região ocidental do Quénia, e nos parques nacionais, no Norte do Quénia não se registou, desde o princípio da pandemia, qualquer aumento significativo da caça ilegal, nem das intrusões humanas nas terras, para as utilizarem como pasto, para plantarem culturas agrícolas, nem para efeitos de construção.
Isso não ficou a dever-se apenas ao facto de o financiamento de emergência ter ajudado os vigilantes da natureza a manterem as suas patrulhas. O sucesso da conservação comunitária proporcionou outras vantagens além dos euros turísticos: ajudou a impedir o desespero económico que obrigou algumas pessoas a recorrerem a essas actividades. Apesar disso, as zonas de conservação do NRT viram crescer a criminalidade não-ambiental, incluindo roubos de gado e assaltos nas estradas. Poderão ter gerido a pandemia melhor do que outros, mas sentiram seguramente as consequências da perda de emprego e do encerramento dos mercados de gado.
Entretanto, algumas populações ameaçadas, como as do elefante, do órix, da girafa-reticulada e da zebra de Grevy, mantêm-se estáveis ou em crescimento nas zonas de conservação do NRT. A caça furtiva ao elefante diminuiu e os animais deambulam cada vez mais longe e com mais liberdade. No entanto, esta liberdade também provocou um aumento do abate retaliatório de elefantes, que agora têm mais probabilidades de pisar culturas ou até de matar pessoas.
Enquanto isso, o problema da pastagem excessiva não desapareceu por completo, mas a existência de planos de pastoreio apoiados pelo conselho de administração de uma zona de conservação deu alguma autoridade aos líderes locais para aplicarem uma política que pretende promover o bem maior em detrimento dos interesses próprios de curto prazo.
Críticos como Achiba Gargule argumentam que a liderança do NRT pressiona os conselhos comunitários a concretizarem os seus objectivos de conservação, quer estes sejam ou não benéficos para todos. “O NRT é tão poderoso que consegue influenciar tudo com as zonas de conservação”, diz. “Mas até que ponto a voz [da comunidade] é ouvida?”
Ian Craig reconhece que a vantagem do NRT é exercer influência sobre as comunidades para proteger os animais selvagens. É aí que as contrapartidas entram em cena: será que a vantagem de atrair um hotel ecológico compensa o isolamento de terra e pasto para os animais selvagens? Valerá a pena seguir um plano restritivo do pastoreio em troca de uma escola e uma clínica? Que parte dos recursos naturais estará uma comunidade disposta a prescindir e o que ganha em troca?
Num mundo de incerteza, o desenvolvimento de fontes de financiamento novas e fiáveis é essencial. “A COVID-19 gera risco em todo o lado, mas também é uma oportunidade de reiniciar e melhorar a agenda da conservação”, diz Giles Davies, fundador da Conservation Capital. Este grupo de investimento financia projectos que ajudam a proteger paisagens em todo o mundo, incluindo na terra natal do fundador, o Quénia, onde trabalhou com o NRT. “Precisamos que a conservação mude, deixando de pensar em termos de sobrevivência e passando a pensar em termos de prosperidade.”
A gestão do NRT e das 39 zonas de conservação custou 5,7 milhões de euros em 2020, “uma ninharia” na opinião de Ian Craig, dados os objectivos do NRT. “São trocos, em termos reais, tendo em conta o impacte no número de vidas que temos sob a nossa alçada.”
Essas vidas incluem as mães, filhos e homens idosos que formam fila ao sol, à porta da nova clínica de Madina Kalo, em Biliqo. Incluem os pastores para os quais o risco de roubo foi reduzido graças a Losas Lenamunyi e aos vigilantes da natureza seus colegas. Incluem os jovens de Melako que sonham trabalhar como vigilantes da natureza. E incluem Daniel Lenaipa, de Namunyak, que sabe que, à medida que a pandemia abrandar, os turistas regressarão porque a segurança é fiável, os animais selvagens prosperam e a paisagem está protegida.