Em 19 de Setembro, nascia um novo vulcão em La Palma. Não foi inesperado. Esta ilha das Canárias tremia há dias e a possibilidade de uma erupção mantinha a comunidade científica em alerta desde 2017.
No dia 19 de Setembro de 2021, um vulcão em Cumbre Vieja entrou em erupção. Desde então, cientistas de todo o mundo têm os olhos postos em La Palma.
Texto: Emma Lira
Após 50 anos de inactividade, La Palma protagoniza um novo episódio vulcânico: o vulcão em Cumbre Vieja ainda não tem nome, mas já tem um lugar na ciência, o que tornou as ilhas Canárias um laboratório vivo para a observação dos batimentos cardíacos da Terra. Alba Martín viu nascer o novo cone vulcânico de La Palma. Não foi a única, mas foi uma das primeiras. A geóloga de 29 anos, do Instituto Vulcanológico das Canárias (INVOLCAN), filmava a encosta da serra Cumbre Vieja em busca de sinais externos da actividade que os investigadores registavam há dias, quando uma nuvem de fumo surgiu da Terra. “Não ouvi qualquer ruído. Havia apenas fumo, como quando se acende um pau de incenso”, conta-me enquanto conduzimos pela zona de exclusão em redor da primeira boca eruptiva. O vídeo tornar-se-ia viral, com o som da sua voz, nervosa, incitando os colegas a abandonarem a área. “Avisa a Cláudia!”, gritava, referindo-se a outro membro da equipa. A pele ainda se arrepia ao recordar o momento.
Isso sucedeu no dia 19 de Setembro de 2021, por volta das 15h10. O movimento do magma, antecipado por vários sinais geológicos durante uma semana, acabava de abrir uma fissura para ascender à superfície na zona conhecida como Cabeza de Vaca, na dorsal do Cumbre Vieja, na região sudoeste da ilha. As entidades responsáveis pela vigilância vulcânica viram assim a concretização da sua previsão com bastante exactidão no tempo e no espaço, após quatro anos de observação intensiva. Era uma erupção anunciada e esperada. Nos dias anteriores, os cientistas tinham detectado um “enxame sísmico”, uma convergência de tremores de terra a cada vez menor profundidade até chegarem a dois quilómetros da superfície. Mediam também a deformação gradual do terreno, uma protuberância que pouco antes da erupção e na estação de medição mais próxima chegou a ter pouco mais de vinte centímetros. Alta sismicidade a pouca profundidade, deformação do solo e emissão de gases são os indicadores principais de que, no interior da Terra, o magma luta para romper a crosta.














“Desde 2000 que podíamos afirmar que as Canárias estavam a movimentar-se”, explica Joan Martí Molist, director da Unidade de Geociências do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), na Catalunha. “O arquipélago entrou numa fase muito mais activa.” A erupção do El Hierro em Outubro de 2011, que durara cerca de cinco meses e culminara na formação de um edifício vulcânico que se ergueu 312 metros acima do leito marinho, a apenas 89 metros da superfície, evidenciou esta realidade: as Canárias estavam a movimentar-se.
Em 2017, as entidades que monitorizavam a actividade vulcânica no arquipélago detectaram sismos a 20 a 30 quilómetros de profundidade. Em La Palma, registaram-se nos últimos quatro anos dez enxames sísmicos. A erupção era uma questão de tempo, mas era necessário determinar quando e onde isso ocorreria. Em La Palma, esperava-se que acontecesse na dorsal do Cumbre Vieja, a área mais activa da ilha. Ao contrário do Teide, que como o Etna ou o Vesúvio é um estratovulcão, no resto do arquipélago o vulcanismo é especial: não se produz por um único centro emissor, mas pela constatação de que a boca eruptiva pode abrir-se praticamente em qualquer ponto. “Não é possível calcular o momento ou lugar exacto onde este tipo de vulcões se manifesta à superfície, mas, nos dias anteriores, já sabíamos para onde apontava a maior deformação”, revela María José Blanco, directora do Instituto Geográfico Nacional das Canárias.
No dia 13 de Setembro, face à evidência dos sinais de alarme, foi accionado o plano de emergência para risco vulcânico aprovado em 2010 e revisto em 2018 para a gestão de crises sísmicas. No dia 19, o semáforo vulcânico (o sistema de alerta para informar a população) ainda estava na fase amarela quando foram fechados caminhos florestais e áreas de lazer e foram evacuadas as pessoas com mobilidade reduzida das povoações que poderiam ser afectadas. Com o início da erupção, começaram as evacuações em grande escala. Cerca de cinco mil residentes de El Paso, Los Llanos de Aridane, Las Manchas e Tazacorte tiveram pouco tempo para recolher alguns bens e abandonar as suas casas. Iniciava-se assim o último episódio dos movimentos geológicos que tinham começado anos antes e que mantinham cientistas de todo o planeta com os olhos postos em La Palma.
Naquela tarde, porém, nenhum habitante local poderia prever que a incipiente erupção se tornaria a mais longa dos últimos cinco séculos na ilha (a do Tehuya, em 1585, durou 84 dias) interrompendo um velho ciclo ao longo do qual cada erupção durava menos do que a anterior. Em termos de danos, foi a que mais devastação provocou na ilha. “Falamos de erupções históricas para explicar as que ocorreram nos últimos 500 anos, após a chegada dos europeus ao arquipélago”, diz Juan Carlos Carracedo, geólogo e investigador do CSIC. As erupções dos últimos cinco séculos, 17 no total, estão datadas por testemunhos: clérigos, cronistas e, mais tarde, meios de comunicação. Nas ilhas Canárias, porém, tal como nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, elas são fenómenos muito mais antigos. Estiveram na base da formação e crescimento das ilhas ao longo de 70 milhões de anos.
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“O arquipélago das Canárias formou-se a partir de um fluxo vertical de magma que se encontra num ponto fixo do manto, a 2.900 quilómetros de profundidade”, explica Juan Carlos Carracedo. “Ao sair, essa pluma vai criando estruturas que vão ascendendo até aflorarem à superfície e continuam a crescer durante mais algum tempo até iniciarem o seu processo de erosão, afastadas do fluxo de magma devido ao movimento da placa litosférica.”
Carracedo refere-se à teoria do ponto quente, proposta por Tuzo Wilson em 1963, válida para a génese de arquipélagos como o do Hawai e que explicaria que as ilhas se fossem formando como uma corrente. Nas Canárias, porém, esse modelo apresenta incoerências. “Essa hipótese não explica por que motivo continua a existir magmatismo tanto nas ilhas mais ocidentais como em Lanzarote, bem mais oriental, além de outras contradições importantes”, contrapõe Joan Martí Molist.
“Face à teoria do ponto quente ou pluma do manto, surgiu outra proposta que explicava o vulcanismo das Canárias pela tectónica de placas. Actualmente, movemo-nos num modelo unificador, que combina estas duas explicações possíveis: existe esta zona quente, mas, para gerar magma, é necessária actividade tectónica. O vulcanismo nas Canárias passa por pulsos, por episódios, e geologicamente está ligado aos movimentos de fracturas na crosta terrestre que se estendem desde as montanhas do Atlas, em Marrocos.”
Apesar da imprevisibilidade de qualquer fenómeno natural, a erupção actual ajusta-se aos parâmetros esperados. É uma erupção do tipo fissural em que o magma ascende por uma fractura, formando uma estrutura intrusiva em dique. Rompe depois a crosta terrestre, criando uma fissura que gera diferentes bocas, alinhadas entre si. Regista actividade stromboliana que, alternando com episódios explosivos e efusivos, também apresenta emissões de piroclastos e fluxos de lava mais fluidos, típicos da tipologia hawaiana. Apesar da espectacularidade dos danos causados, o índice de explosividade vulcânica (IEV), medido numa escala de 1 a 8, estimou-se que era de 2 pelo seu grau de explosividade e, no dia 22 de Novembro, passou a 3 pelo volume de material piroclástico emitido. A erupção do Eyjafjallajökull na Islândia em 2010, que obrigou ao encerramento do espaço aéreo de metade da Europa, registou 4 na mesma escala.
No entanto, a imagem que retemos é a da lava a engolir a área urbana da localidade de Todoque, sepultada sob toneladas de rochas incandescentes escassos sete dias após o início da erupção. Bananeiras arderam e assistimos à angústia de milhares de evacuados que viram de perto o que estavam prestes a perder. Apesar de esta erupção não ser muito diferente das duas anteriores na mesma dorsal (a de San Juan em 1949 e a de Teneguía em 1971), causou agora muito mais danos dada a actual densidade de ocupação dos terrenos atingidos. E também um certo estupor.
“Nas Canárias, os episódios eruptivos são tão distanciados entre si que nos esquecemos que vivemos num território vulcanicamente activo”, comenta Pedro Hernández, responsável pela geoquímica de gases vulcânicos da INVOLCAN.
Stavros Meletlidis, vulcanólogo do IGN e coordenador da rede de alerta em La Palma, define-o muito bem: “O perigo é o mesmo de sempre, já que o Cumbre Vieja regista actividade vulcânica há 125 mil anos, mas é preciso distinguir o perigo do risco. Quando uma sociedade avança e cria infra-estruturas numa área vulcânica, o risco aumenta. A nossa vulnerabilidade é que mudou!”
A erupção em Cumbre Vieja expôs essa vulnerabilidade em tempo real: estradas soterradas, linhas de transmissão cortadas, famílias deslocadas, casas desaparecidas, camiões carregados de equipamentos domésticos... É difícil para os cientistas dissociar essa realidade da estritamente científica que faz da erupção uma oportunidade e da ilha um campo de testes para geólogos, vulcanólogos, sismólogos e geoquímicos. “Um vulcão é um fenómeno destrutivo, mas também eminentemente criador. Sem a sua actividade, a ilha onde estamos não existiria”, diz Pedro Hernández.
La Palma é um enorme edifício vulcânico que emergiu do fundo do oceano há milhões de anos e cujas erupções sucessivas o fizeram aflorar acima da água há cerca de dois milhões de anos. Uma série de grandes vulcões centrais formou o Norte da ilha, mas, há cerca de 400 mil anos, a actividade vulcânica cessou ali e migrou para sul com a formação de uma fissura eruptiva num eixo norte-sul. As emissões de lava por essa fissura formaram a dorsal do Cumbre Vieja, a zona “mais jovem” da ilha, transformada num parque natural que permitia espreitar as antigas crateras que constituíam a “Rota dos vulcões”. Foi aqui que se produziram os episódios vulcânicos mais recentes.
O som do vulcão ouve-se perfeitamente em aldeias como Tajuya, El Paso ou Llanos de Aridane, mas, no interior da zona de exclusão, assemelha-se ao rugido de um monstro. É um som ameaçador e mutante, tão hipnótico como o espectáculo de lava que brota das entranhas da Terra. Acompanho as equipas nas medições que são comunicadas diariamente ao sistema de alarme. Há muitos parâmetros a considerar: sismicidade, emissão de gases, avanço e composição das escoadas, estado das águas subterrâneas. São também recolhidas diariamente amostras de lava e cinzas.
A ermida da Virgem de Fátima ergue-se na aldeia de Las Manchas, no município de El Paso. Foi neste lugar que, em 1949, a escoada lávica do vulcão San Juan mudou repentinamente de rota, salvando assim grande parte da aldeia e da sua igreja. Situada a poucos quilómetros da actual erupção, tornou-se um símbolo de resistência.
Há algo de mágico e primitivo em caminhar sobre uma camada de piroclastos que ontem eram pedaços de lava projectados pela erupção vulcânica. De alguma forma, deixamos pegadas sobre o terreno mais novo da ilha. A condução aqui é uma espécie de rali sobre um deserto cinzento recém-nascido que cobre, com uma cadência implacável, estradas, carros, plantações, casas e pinheiros. A chuva de lapilli tamborila no meu capacete como se fosse granizo minúsculo e negro. “Levem sempre o depósito do limpa-vidros com água; nunca o limpem a seco”, avisam-nos. “Estacionem sempre de frente para a rota de fuga.” A entrada na zona de exclusão tem os seus próprios protocolos: é como entrar numa zona de guerra. Barreiras com protecção policial ou militar, vilas vazias, galinhas a atravessar estradas desertas, casas habitadas até há uma semana e agora vazias e línguas de lava que, em alguns pontos, ultrapassaram trinta metros de altura paralisadas, como animais saciados, depois de terem engolido prédios, veículos e sonhos.
Os técnicos monitorizam a temperatura da escoada de lava com câmaras térmicas. Por fora, já está solidificado; por dentro, ainda atinge 700°C. Algumas árvores apanhadas pela escoada ardem espontaneamente diante dos meus olhos. Observo o panorama entre a emoção de sentir o poder da natureza e a desolação que se abate sobre a ilha. Alguns bombeiros fotografam o vidro derretido de um veículo. Os seus rostos reflectem o peso da tragédia humana que enfrentam. “É difícil ter de mandar alguém sair de casa e dizer-lhe que tem 15 minutos para decidir que pedaço de vida quer levar consigo”, diz um deles, com a voz dura e os olhos húmidos. “Alguns apegam-se a coisas inimagináveis. Eu sugiro que levem lembranças. Num incêndio, é possível voltar para uma casa em ruínas, mas aqui, as pessoas que partem sabem que talvez nunca mais voltem a pôr os pés na sua casa.”
Não há possibilidade de dizer adeus. Isso é o mais difícil. “No sábado, um dia antes da erupção, estava a almoçar na casa de um amigo”, conta Stavros Meletlidis. “No domingo, essa casa já não existia.”
Este grego de 54 anos, nascido em Salónica, está onde quer estar. O mundo dos vulcões atraiu-o a partir das páginas da National Geographic, cujas reportagens alimentaram a sua vocação desde criança. Ele diz que, tal como sucedeu consigo, talvez este vulcão permita que surjam, junto daquele magma a quilómetros de profundidade, algumas vocações soterradas. As suas vocações são os vulcões “e ajudar as pessoas que vivem aqui”, diz.
Stavros chegou à ilha uma semana antes da erupção, quando constatou que o fenómeno estava a aumentar de cadência. No entanto, quando fala de seres humanos e não de medições ou dados técnicos, prefere sublinhar o que define como um “sucesso retumbante” na gestão da emergência. “O vulcão estava a 400 metros das casas habitadas mais próximas e não houve vítimas a lamentar”, afirma, destacando o que considera ser o papel dos cientistas nesta crise sísmica: “A ciência deve estar sempre ao serviço da sociedade.”
Neste sentido, as imagens de satélite do Programa Copérnico da União Europeia, que monitoriza a erupção a partir do espaço, e os voos de drones operados por instituições científicas, têm ajudado, permitindo acompanhar a evolução das escoadas, projectar evacuações e também monitorizar o outro lado do vulcão – o das perdas materiais que, como um conta-gotas, fazem aumentar os números da catástrofe diariamente. Até ao fecho da edição, 1.182 hectares tinham sido cobertos por lava e mais de 6.000 por cinzas. Havia 73 quilómetros de estradas intransitáveis, 3.039 edifícios afectados, 1.628 dos quais destruídos, 369 hectares de lavoura destruídos e, dos sete mil evacuados, 555 estavam alojados em hotéis. Algumas famílias perderam casas e negócios e outras viram as suas bananeiras, o esforço de uma vida e o motor económico do Sul da ilha, desaparecer sob toneladas de rocha incandescente.
A população de Las Palmas aguenta, resiliente, quase por natureza. Vê-se essa rijeza continuamente. Nas senhoras com óculos de mergulho e máscaras que saem para varrer as cinzas da varanda todas as manhãs embora o vento as volte a pousar durante a noite. Nas conversas de alguns dos evacuados que ainda vêm todas as manhãs tomar um café em El Chiringuito, perto do município de El Paso, talvez o único terraço de Espanha com vista para um vulcão. Nos abraços apertados, como antes da pandemia. Nas saudações de quem viu a sua casa desaparecer em poucas horas: “Como estás? Bem, como todos.” Quando regresso da zona de exclusão depois de observar, a apenas dois quilómetros de distância, o movimento da escoada norte, fico surpresa ao ver que ainda há espaço para risos. A vida continua. Transtornada, mas continua. As rotinas continuam, tentando ancorar as pessoas aos actos quotidianos. As crianças vão à escola, excepto se a qualidade do ar forçar o confinamento da população. Alguns habitantes podem aceder à área de exclusão num horário específico para continuar a retirar bens das suas casas, regar as plantações ou cuidar dos seus animais. Sempre que os encontram, é claro. A explosão do vulcão pôs cães e gatos em fuga, assustou cabras e espantou galinhas. Os animais que os donos não puderam levar com eles são tratados nos campos de jogos do pavilhão desportivo de Los Llanos de Aridane pela sociedade protectora dos animais Benawara. Outros regressam aos poucos e vagueiam confusos numa paisagem que já não reconhecem. Os cientistas, a Guarda Civil e a polícia fornecem água e comida, enquanto relatam a sua situação.
Numa quinta a norte da escoada, sentado à beira de um tanque de rega, um homem observa a inundação de lava que avança lentamente. “Vim ver enquanto ‘ele’ engole as minhas bananeiras”, diz em tom resignado, mas sem rancor. O olhar perde-se no avanço da massa de rocha em movimento rumo ao mar. “Veja como a lava vai enchendo as depressões, vai aplanando tudo”, diz, quase esperançoso. “Quando terminar, isto vai ser só colocar um pouco de terra e semear novamente.”
A toponímia não engana. “Os Llanos de Aridane são planos precisamente porque erupções de há cerca de 6.000 anos preencheram depressões e aplanaram irregularidades, transformando esta terra em solo fértil adequado para as plantações que agora ficaram soterradas pela lava”, diz Juan Carlos Carracedo. Fuencaliente, Caños de Fuego, Llano Negro: os topónimos lembram erupções passadas, até mesmo os aborígenes. Tacande, a área povoada mais próxima do vulcão, provém do termo tacan-dey, que na língua amazigh falada na ilha antes da conquista castelhana, significa “rocha queimada”.
Há 50 anos... o Teneguía - o vulcão amigável. É a memória que os habitantes de La Palma guardam do Teneguía, a última erupção subaérea registada nas Canárias, em 26 de Outubro de 1971. Durou 24 dias, não causou danos materiais e tornou-se um espectáculo a que assistiam os ilhéus a partir das colinas circundantes. Por comparação, o novo vulcão tornou-se um “monstro” que destruiu propriedades e projectos.
“Não há nenhum vulcão amigável perto de um núcleo populacional”, sentencia o vulcanólogo Stavros Meletledis. Juan Carlos Carracedo sabe bem disso. Ele próprio quase morreu devido à inalação de gases que custaram a vida às duas únicas vítimas fatais daquela erupção. “Naquela altura, ninguém pensava nisso”, lembra o geólogo. Nem mesmo os cientistas, aparentemente. Na verdade, não havia meios de antecipar ou monitorizar as erupções, pelo que o episódio do Teneguía é digno de um guião da Netflix. “Foi a CIA que avisou. Eles tinham 80 milhas do Atlântico semeadas de hidrofones para detectar submarinos russos e ouviram um sinal muito estranho”, explica Carracedo. Provavelmente, foi um enxame sísmico. Os norte-americanos notificaram a sua embaixada em Espanha e esta avisou o governo espanhol. O vulcão já tinha entrado em erupção quando a equipa científica chegou à ilha, sem equipamento de protecção ou instrumentos de medição.
A erupção do Teneguía foi a segunda que La Palma viveu no século XX. Das 17 erupções que ocorreram no arquipélago nos últimos 500 anos, sete tiveram lugar nesta ilha — todas na metade sul. Imagem: Museu Nacional de Ciências Naturais, CSIC
Talvez por isso os habitantes de La Palma, apesar da dor e da incerteza, resistem com essa estoicidade tão insular. Aqui há uma certa memória vulcânica. “A última erupção em Tenerife foi há mais de 100 anos”, diz Carmen Romero, geógrafa da Universidade de La Laguna, especialista em vulcanismo histórico e geomorfologia vulcânica e uma das responsáveis pelo plano de acção para o risco vulcânico das Canárias. “Em La Palma, porém, há pessoas com mais de 70 anos que já viram três erupções. E a história, que contaram aos filhos e netos, foi preservada quase como uma tradição oral.”
Após a experiência do Teneguía em 1971, na última erupção subaérea das Canárias, o arquipélago viveu uma trégua até Outubro de 2011. Então, El Hierro sofreu a sua própria crise vulcânica. Os sinais prévios eram os mesmos: enxame sísmico e deformação do terreno, mas eram mais difíceis de medir por se tratar de uma erupção submarina. “Em El Hierro, aprendemos um pouco, sobretudo a gerir uma emergência”, admite María José Blanco. Enquanto durou a actividade vulcânica, a cidade vizinha de La Restinga foi evacuada em diferentes ocasiões.
Carmen Romero também esteve lá há dez anos e pensou então que El Hierro seria o auge da sua vida profissional. Agora, a erupção de Cumbre Vieja proporcionou esta surpresa quando está quase a aposentar-se. “Para mim, foi como reencontrar um velho conhecido. Vejo nesta erupção tudo o que estudei nos vulcões históricos das ilhas durante 40 anos. Fui reconhecendo as características, o carácter fissural, como funciona a fractura com diferentes crateras. Antes, quando estudávamos um vulcão, só tínhamos a foto estática, mas agora podemos acompanhar tudo passo a passo.”
O envolvimento científico, somado ao imediatismo da retransmissão de dados e imagens, permite uma observação poliédrica em tempo real em La Palma, algo completamente novo neste tipo de estudos. “Em 2011, em El Hierro, não existiam estes meios de comunicação”, acrescenta. “Na verdade, a percepção da emergência vulcânica como algo mensurável e administrável é algo muito novo. Só em 1824 ocorreu a primeira evacuação orquestrada pelas autoridades nas Canárias. Foi em Lanzarote. Até esse momento, o vulcão situava-se no terreno do incontrolável e do religioso.”
À data de fecho de esta reportagem, decorridos quase três meses desde que a Terra se abriu no Cumbre Vieja, a erupção gerou 12 escoadas e 22 centros de emissão. “As bocas superiores são aquelas que desgaseificam o sistema, e as inferiores, aquelas que emitem grandes quantidades de lava”, ressalta Carracedo.
Na sua descida caprichosa ladeira abaixo rumo ao mar, algumas escoadas introduzem-se em algares vulcânicos gerados pela passagem de lava fluida em correntes anteriores, o que torna difícil determinar o seu avanço e velocidade. Algumas diminuem a velocidade, outras param, mas as que não o fazem devoram como animais famintos tudo o que encontram no seu caminho. Só o oceano as detém, solidificando-as, o que abre novas áreas de investigação sobre o seu impacte no meio marinho.
O navio de investigação Ramón Margalef, do Instituto Espanhol de Oceanografia, estava lá no dia 29 de Setembro, quando a primeira corrente atingiu o mar na praia Nueva após percorrer dez quilómetros de distância, no meio de grande expectativa mediática e confinamento preventivo dos moradores de Tazacorte face à previsível emissão de uma nuvem de gases tóxicos. No dia 13 de Novembro, uma segunda corrente chegou à praia dos Guirres.
Posteriormente, mais duas chegaram ao Atlântico. A actividade marítima foi interrompida na zona e foi criada uma área de exclusão em redor deste delta de lava, ou fajã, como é denominada nos Açores, na Madeira e nas Canárias. Estas línguas rochosas alteram radicalmente a paisagem costeira e obrigam a redesenhar os mapas. São mais de 50 hectares de terra nova, recém-nascida, que se junta à criada pela erupção de 1949. Aqui e agora, a ilha cresce, em directo, diante dos nossos olhos.
Técnicos da Unidade Militar de Emergências (UME) passeiam os seus trajes espaciais perto das escoadas de lava, auxiliando os cientistas na recolha de amostras. Com 233 elementos destacados na ilha, a UME é uma presença constante na zona de exclusão, ajudando os habitantes, observando o avanço da lava e garantindo que os processos técnicos são realizados em condições de segurança.
Perante as correntes de lava, técnicos e cientistas afadigam-se com as vigas de madeira usadas como suporte nas plantações de banana para “pescar” as amostras que deslizam nos rios de lava. Tudo é diferente: o rugido das bocas eruptivas, o tremor do solo, o fumo que se solta da rocha. E o calor. Um calor que seca os lábios e queima os olhos como se alguém tivesse aberto a porta de um forno gigante. Alba, a geóloga, arrefece a amostra de lava recém-extraída num balde de água e esta sibila e expele vapor antes de perder a sua incandescência e solidificar por completo. Agora é apenas mais uma rocha que, nas mãos dos petrólogos, produzirá informações valiosas sobre os minerais que compõem o magma. Nós já a vimos em movimento, em chamas, imparável. Enquanto nos afastamos nos carros, a corrente, atrás de nós, continua a avançar, sem se deter.
O Vulcão em Cumbre Vieja ainda não tem nome e isso não é invulgar. O vulcão subaquático junto à ilha de El Hierro demorou cinco anos a ser baptizado com o nome de Tagoro. A proximidade emocional também não ajuda a integrá-lo. Os habitantes de La Palma referem-se a ele com certo ressentimento. Apesar da beleza indiscutível que cada vez mais as pessoas vêm observar a partir do miradouro do Time ou da igreja de Tajuya, ninguém lhe perdoa os estragos e a destruição, como um cachorro malcomportado. Ou O Monstro, como alguns lhe chamam. Ou O Bicho. Seguindo uma tradição de nomes indígenas, o Instituto Vulcanológico das Canárias propõe o Tajogayte. É o local onde se produziu a fissura e por onde a lava começou a sair. Em amazigh, significa “montanha rachada”. Mais uma vez, a toponímia não engana. “Daqui a algum tempo talvez dêmos graças a este vulcão”, profetiza Stavros Meletlidis. A nível da ciência aplicada e da vigilância, iremos melhorar e isso ajudará a salvar vidas. E a parte mais emocional acabará por cicatrizar.” Carracedo concorda. “Tornará o solo mais fértil, melhorará as colheitas e atrairá o turismo, mas levará tempo.” Por enquanto, só nos resta estudar, aprender, procurar respostas. “Uma das facetas que devemos ter em conta num território vulcânico com população é investir na ciência e na vigilância vulcânica”, enfatiza Carmen Romero. “Não podemos deter um fenómeno geológico, mas podemos obter informação que ajude a antecipar a resposta.”
Os cientistas observam, medem, tomam notas e constroem uma base de dados que pode antecipar futuras crises vulcânicas, talvez novamente em La Palma, talvez na ilha de Tenerife, também especialmente monitorizada, dada a sua actividade sísmica e a densidade populacional ali concentrada.
Quase três meses após o seu nascimento, o vulcão de Cumbre Vieja continua a protagonizar programas de informação que nos dão a conhecer a magnitude da emergência, mas os números não representam apenas danos. Servem também para medir a onda de solidariedade que a ilha do Atlântico despertou. O cabildo de La Palma recebeu mais de 8,5 milhões de euros de donativos de particulares. Paradoxalmente, a ajuda pública, embora aprovada e anunciada, ainda não chegou.
É difícil prever o fim de um fenómeno geológico. A natureza tem ritmos próprios e Cumbre Vieja já o demonstrou amplamente. O vulcão começa a dar sinais de fadiga: os terramotos são espaçados, a deformação do terreno estabilizou e as emissões de dióxido de enxofre, um dos indicadores que revelam a quantidade de “combustível” que resta ao vulcão, continuam em linha descendente. Mantêm-se vários centros de emissão activos na zona sudeste do cone principal e a lava continua a fluir.
No momento em que escrevemos, a lava já não tem provocado destruição, pois as correntes lávicas já correm pelos trajectos das velhas escoadas e por tubos lávicos, modelando uma paisagem onírica. É como se a ilha aproveitasse toda aquela energia, todo aquele material retirado do interior da Terra, para crescer, derramando-se no mar, como um organismo vivo.
Quem sabe se quando esta revista lhe chegar às mãos, os noticiários já não terminem com correntes incandescentes ou ameaçadoras colunas explosivas. Talvez nessa altura o novo vulcão tenha dado o seu último suspiro. Ou talvez não. Mas, seguindo o seu próprio mecanismo geológico, Cumbre Vieja continuará a bater, mostrando, com a sua pulsação, que o arquipélago está vivo.