Texugo

Durante o dia, os texugos mantêm-se nas texugueiras, previsivelmente em descanso. Ao crepúsculo, saem e passam horas intensas, comendo, brincando e procriando. Com armadilhagem fotográfica, descobrimos um mundo restrito.

Durante cinco anos, um fotógrafo acompanhou vários grupos de texugos na Companhia das Lezírias, descobrindo um mundo que poucos conhecem.

Texto: Gonçalo Pereira Rosa
Fotografias: Gonçalo Rosa

O dia está quase no fim. Ao crepúsculo, um animal emerge das profundezas, coça-se, arqueia o tronco e abre a boca de sono, como uma criança acabada de despertar.

Não há vivalma nas imediações. A esta hora, o pinhal gerido pela Companhia das Lezírias, a sociedade de capitais públicos criada na primeira metade do século XIX para gerir os vales férteis e as charnecas entre os rios Tejo e Sorraia, já está vazio. Não há trabalhadores rurais no horizonte e as vacas há muito que se afastaram no pinhal.

O texugo boceja, espreguiça-se uma vez mais e abre a boca num aparente sorriso. Tem a protecção da escuridão e há outros animais prontos a sair da texugueira atrás de si. E, no entanto, este texugo e os grupos mais próximos estão de facto a ser vigiados meticulosamente como se fossem alvos dos serviços de espionagem de uma agência incansável.

De vez em quando, quando o Sol já despontou no horizonte e os texugos retomam a tranquilidade dos refúgios subterrâneos, um vulto humano aproxima-se. Ao fim de cinco anos, os animais já não o estranham. Talvez o associem às idas e vindas regulares. Ou às estacas que foram cravadas há muito no solo arenoso e que, de vez em quando, soltam estalidos sonoros à sua passagem. Por experiência acumulada, sabem que dali não virá ameaça.

Com gestos mecânicos e repetidos, o fotógrafo Gonçalo Rosa revisita os sets de armadilhas fotográficas que instalou nos terrenos da Companhia das Lezírias. Abre a medo as caixas estanques onde não é invulgar uma vespa mais atrevida esconder-se para aproveitar o calor.

Sorri quando vê um pedaço de borracha roído ou outra marca da curiosidade dos seus alvos. Liga máquinas. Troca pilhas. Limpa objectivas. Retira cartões de memória. Raramente perde tempo a visualizar o que cada máquina captou. Essa fase do trabalho pode ser feita a partir de casa, a alguns quilómetros de distância.

“Estas câmaras que uso revolucionaram muito a informação disponível sobre os animais nocturnos”, explica Gonçalo Rosa. “As células têm cada vez mais autonomia e o meu conhecimento também aumentou. Enquanto com os lobos não posso arriscar porque eles só passam na zona onde tenho o set de três em três semanas, os texugos são mais previsíveis. Ao longo de um ano, chego a fazer três mil imagens do animal no enquadramento que escolhi até passar para outra situação.”

Em 1758, quando descreveu o texugo-europeu, o taxinomista Carol Lineu cometeu alguns erros. Assumiu que havia uma única espécie para a Eurásia, ao passo que hoje os estudos recentes consideram que há quatro espécies: o texugo-europeu, com distribuição do Reino Unido à Rússia, o texugo-japonês e mais duas espécies na Ásia Continental.

Lineu também considerou que o texugo vivia entre as fendas de rochas e pedras, o que, não sendo mentira, não abrange toda a diversidade de refúgios de uma espécie resiliente que, em solos mais arenosos, prefere escavar texugueiras, mas também pode viver em grutas. Assumiu que o carnívoro caçava coelhos, um comportamento raro, e que se perdia pelo sabor do mel. Deu-lhe até o nome Ursus meles, o urso-meleiro, embora este comportamento também não seja comum. Num aspecto, porém, pouco mudou desde o século XVIII: sabemos de facto pouco sobre este animal que convive connosco desde sempre.

“Na literatura medieval e da Época Moderna, temos normalmente referências a dois tipos de animais”, diz Gonçalo Rosa. “Aqueles que têm utilidade para o ser humano, por exemplo como alimento ou fonte de pele, e aqueles que são vistos como ameaça para o homem e para os seus bens. Os outros, como o texugo, estão num limbo. Não têm utilidade nem risco. Não existem.”

Talvez tenha sido essa uma das motivações para este trabalho fotográfico pioneiro. Poucas espécies em Portugal têm sido monitorizadas fotograficamente com tanta intensidade como estes grupos de texugos. “Quis saber mais, claro”, explica o fotógrafo. “Quis questionar mitos instalados sobre a sua ecologia e quis desafiar a minha capacidade: conseguiria eu captar comportamentos habituais numa espécie habitualmente nocturna?”

A resposta, traduzida em vídeos e em milhares de fotografias que a seu tempo serão também publicadas em livro, revela nova informação. As câmaras não mentem. Várias sequências de vídeo mostram os animais a conduzir materiais da superfície para a texugueira, como um decorador de interiores à procura da solução com mais feng shui. Outras expõem o texugo a horas mais inesperadas, uma vez que os grupos mostram actividade crepuscular, muito antes de o Sol se pôr no Verão, ao contrário do que os manuais sugerem. Como um paparazzo das revistas de mundanidades, Gonçalo Rosa também captou cópulas entre animais, muito paradas, com o macho semideitado sobre o dorso da fêmea durante 10 ou 20 segundos. “É rápido e parece ser aborrecido”, brinca.

“Há um mundo de informação para conhecer sobre esta espécie”, reconhece o biólogo Luís Miguel Rosalino, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que trabalhou com grupos de texugos no Alentejo. “Apesar de a espécie ter um estatuto de ameaça de ‘pouco preocupante’, o facto de ser exclusivamente nocturna e até por ter uma coloração parda, que mal se distingue da vegetação, torna-a dificilmente avistável.” A própria arquitectura das texugueiras, com algumas dezenas de metros de extensão e três a dez entradas, permite aos animais jogarem ao gato e ao rato com quem os tenta ver. Talvez ao longe zombem dos curiosos que montam guarda a uma entrada quando o animal há muito saiu das profundezas por outra via, com a respectiva prole.

O texugo é oportunista. Come o que encontra, dependendo da época do ano e da região da Península Ibérica que escolheu. “Na Europa do Norte e na Europa Central, os estudos apuraram que até 80% da sua dieta pode ser constituído por minhocas, alimento disponível em terrenos molhados pela chuva”, diz Luís Miguel Rosalino. “Na Península Ibérica, o pouco que sabemos revela maior diversidade alimentar. Come minhocas, mas também segue as estações do ano, comendo amora, bolota, figo ou azeitona, à medida que o ano avança e estes frutos caem no solo.”

Na Companhia das Lezírias, a actividade agrícola e florestal é contínua e a monitorização fotográfica de Gonçalo Rosa também ajuda a compreender que o texugo parece ser resiliente. “Na Companhia das Lezírias, quase diariamente há vacas a pastar nas imediações das texugueiras, bem como maneio florestal e actividade agrícola. Acho que os texugos as toleram. Tenho fotografias de texugos a dois passos de uma vaca, estudando-a, como que fazendo força mental para que o peso do corpo do herbívoro não faça colapsar a sua casa, mas sem qualquer receio”, diz.

O abandono temporário de uma texugueira é, aliás, frequente. Cada grupo pode controlar três ou quatro texugueiras num regime de rotatividade que tanto pode estar associado a ameaças detectadas junto de uma das “casas” como de infestação de parasitas. “O comportamento mais comum captado pelas armadilhas fotográficas é um texugo a coçar-se”, diz o fotógrafo. “Estão sempre a fazê-lo e suponho que troquem de texugueira quando os infestantes já não permitem continuar a viver ali.” Em casos raros, o texugo pode ser agressivo. Alguns vídeos deste projecto expõem um confronto entre machos, saltando como pugilistas e encostando a cabeça um ao outro. “Podem ser confrontos ferozes”, diz o fotógrafo. “Aliás, muitos animais têm frequentemente feridas no focinho, resultantes certamente de arranhões provocados pelas garras enormes dos rivais.” Numa ocasião única, quando um tractor inadvertidamente passou por cima de uma texugueira, um dos machos irrompeu em fúria do subsolo, como um touro saindo para o redondel, investindo com raiva contra o pneu. “São duros”, ri-se o fotógrafo. “Por isso, os adultos não têm predadores na nossa fauna.”

Em Janeiro de 2021, um residente de hábitos noctívagos do bairro de Alvalade, em Lisboa, esfregou os olhos de surpresa às quatro horas da manhã. À sua frente, numa rua repleta de automóveis, um texugo caminhava para a frente e para trás, certamente perdido na floresta urbana. A filmagem então feita tornou-se viral, mas voltou a expor um problema de conhecimento: sabemos pouco sobre este velho mamífero e, consequentemente, identificamos mal as ameaças que o atormentam.

“É inquestionável que o texugo é resiliente”, diz Luís Miguel Rosalino. “Aliás, os mamíferos que restam na fauna ibérica são precisamente aqueles que eram resilientes e se adaptaram.” Mas há limites e um deles é o da transformação da paisagem. “Há áreas no Alentejo onde existem explorações intensivas de olival e amendoal que mudaram a paisagem. Um animal oportunista como o texugo só encontra ali alimento em escassos meses do ano. São quilómetros e quilómetros de plantações da mesma cultura.”

Na cultura popular, o texugo ocupa um lugar discreto. No “Romance da Raposa”, Aquilino Ribeiro fê-lo egoísta e açambarcador. Em 1860, num artigo de divulgação publicado na revista “Arcchivo Pittoresco”, o naturalista de serviço chamou-lhe “preguiçoso, que passa três quartas partes da vida a dormir e, quando sai, é para buscar de comer”. No Alentejo e na Extremadura espanhola, em períodos de maior carestia, o texugo também foi parar ao prato, em banho de vinho de alho, como consequência da falta de melhor alimento. “Ainda hoje, os mais velhos distinguem o texugo-porco, gordo e bom para comer, do texugo-cão, impróprio para consumo”, conta Luís Miguel Rosalino.

As armadilhas fotográficas de Gonçalo Rosa documentam um animal mais complexo do que se imaginaria, porventura a meio caminho entre os carnívoros de hábitos solitários como a marta, a fuinha ou o lince e os carnívoros de elevada coesão social, como o lobo. “Não tenho dúvidas de que há grupos de texugos e que estes são territoriais”, diz Gonçalo Rosa. “Testemunhei confrontos entre animais pelos limites do território, mas documentei também momentos íntimos entre a progenitora e as crias ou brincadeiras entre juvenis.”

De regresso ao computador, o fotógrafo recupera mais um cartão de memória. Analisa metodicamente as centenas de imagens que o seu set de células infravermelhas passivas capta todas as noites sempre que detecta luz infravermelha associada a uma fonte de calor. Sabe por experiência própria que foi aceite pelos animais e que estes não se assustam com o disparo dos flashes. “Se se assustassem com isso, entrariam em pânico de cada vez que cai um relâmpago durante uma tempestade”, diz. Talvez não o reconheça de imediato, mas, com o tempo, o observador distante tornou-se mais um membro do grupo. “É um animal extraordinário”, disse-me durante uma visita à Companhia das Lezírias no período mais restritivo da pandemia. “Resiliente, solidário, obstinado. É uma pena sabermos tão pouco sobre ele.”

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