A floresta de Loita é o Serengeti escondido, uma região bravia prístina, sagrada para os Masai. Um octogenário, protector da floresta, vê uma paisagem mística cada vez mais ameaçada pela ganância.
Texto: Yvonne Adhiambo Owuor
Participei recentemente numa expedição ao interior do Serengeti. Não fui ao Serengeti que nos habituámos a imaginar, o dos postais com savanas ondulantes cobertas de capim amarelo, pontuadas por acácias. E não fiquei num acampamento com tendas de luxo, nem me juntei ao exército de carrinhas com turistas que se amontoam em redor dos animais mortos pelos leões.
Na verdade, viajei até Loita, parte do vasto ecossistema do Serengeti que não surge nos itinerários comuns. É um Serengeti escondido, de onde se avista uma paisagem luxuriante de montanha que se ergue mais de dois mil metros acima do nível do mar. Situa-se a 250 quilómetros de carro para sudoeste de Nairobi e tem vista para a famosa Reserva Nacional de Masai Mara. No entanto, é um local desconhecido da maioria das pessoas que visita o Quénia.
O meu plano era subir ao coração desta fortaleza verde, até um local conhecido no idioma maa como Entim e Naimina Enkiyio, ou a Floresta da Criança Perdida. São 330 quilómetros quadrados de floresta húmida intacta, um território praticamente escondido à vista de todos. Uma vez ali chegada, esperava conseguir uma audiência com o homem responsável pela supervisão destes domínios.
Em primeiro lugar, tenho de explicar que vivo num mundo longe de Loita: em Nairobi, uma metrópole com cerca de cinco milhões de habitantes. Zumbe e sibila como um dos pólos de inovação tecnológica de África. Aqui localiza-se a sede da delegação africana da ONU, bem como uma infinidade de órgãos de comunicação social internacionais que transmitem atarefadamente as notícias do continente. Suportamos engarrafamentos de perder a cabeça e interrogamo-nos sobre as implicações locais das alterações climáticas. E claro, desde 2020, o flagelo da COVID-19 dominou-nos.
Sentia-me claustrofóbica em Nairobi e a oportunidade de viajar até Loita pareceu-me uma bênção. Na verdade, porém, eu não ia em busca de alívio da cidade, mas sim da oportunidade de sentir o mundo de uma nova perspectiva: uma perspectiva ancestral e intemporal.
O homem que eu esperava ver era um líder mas ai chamado Mokompo ole Simel, também conhecido como o Oloiboni Kitok. Nos séculos decorridos desde que os masai migraram com o seu gado, descendo o vale do Nilo e instalando-se na África Oriental, incluindo na zona a que chamaram Siringet (“o sítio onde a terra se estende para sempre”), são guiados por homens que detêm o título de oloiboni. São provenientes de um clã dotado de excepcionais capacidades temporais e espirituais e instruídos em práticas de cura naturais e sobrenaturais.
O Oloiboni Kitok, de estatuto mais elevado, vive entre mundos como um intermediário, profeta e vidente; intercessor e curandeiro; liturgista e estratego político; guardião das relações entre a humanidade e a natureza. Há mais de 30 anos, Mokompo ole Simel herdou o cargo vitalício de Oloiboni Supremo do pai, tornando-se o 12.º Oloiboni Kitok da linhagem do seu clã.
É difícil descrever o alcance pleno da sua influência. Ele é o chefe espiritual de mais de um milhão de masai residentes no Quénia e na Tanzânia. É procurado para conceder bênçãos ou dar conselhos sobre assuntos mais ou menos importantes – desde o gado perdido por uma família a grandes planos de conservação para Loita. Masai vindos de lugares tão distantes como Samburu, no Norte do Quénia, fazem 300 quilómetros até Loita só para o verem. E não são apenas os masai que procuram os seus conselhos. Políticos de outros países já lhe pediram bênçãos, conselhos e ajuda para conquistar as graças do eleitorado.
No entanto, ele não é um homem fácil de encontrar. Não podemos simplesmente ir de carro até Loita e procurar o caminho até casa do Oloiboni Kitok. Temos de ser apresentados. Foi assim que vim ter com o amigo de um amigo chamado Mores Loolpapit, médico e profissional de saúde pública, um oloiboni não-praticante e, por feliz acaso, sobrinho do Oloiboni Kitok.
E foi assim que, num dia de Maio, ao meio-dia, me sentei sobre um tapete de erva verde e macia, adornado de minúsculas flores roxas e amarelas, debaixo de uma gigantesca árvore. Naquele dia, o vento que soprava de leste trazia pequenas gotas de chuva gelada. Algures por perto, um burro zurrou.
Mores demorara oito horas de viagem a conduzir até este lugar, por estradas que trepam gradualmente até à savana montanhosa que serve de entrada a Loita. É aqui, na sua quinta, um conjunto de edifícios de tijolos de adobe com telhados de colmo e currais, que o Oloiboni recebe em audiência. E eu queria pedir autorização para visitar Loita e entrevistá-lo.
Neste dia, eu era uma de duas dezenas de visitantes, incluindo uma delegação de cinco homens vinda da Tanzânia que chegara antes do nascer do Sol. Fomos todos recebidos como peregrinos. Ninguém foi tratado como estranho.
De acordo com a tradição, nenhum convidado deve chegar de mãos a abanar e nós tínhamos trazido alguns artigos domésticos – farinha, especiarias, livros de colorir e canetas – para oferecer às mulheres e aos filhos do Oloiboni. Eu segurava na mão quatro preciosos rebentos de cafezeiro: o meu tributo especial. Esperámos cerca de duas horas.
Por fim, o homem apareceu. Assim que surgiu, começou logo o bulício. Um coro de vozes humanas saudou-o e os emissários ali reunidos avançaram na sua direcção. Um dos seus bezerros preferidos correu para junto dele, as cabras baliam e um quinteto de girafas passeava lá ao fundo.
Este octogenário andava ligeiramente inclinado, gesticulando como um maestro de orquestra sinfónica, dizendo a um pastor para que pastagens poderia conduzir as suas ovelhas, cabras e vacas, despachando um jovem até ao mercado e incumbindo o seu filho Lemaron (primeiro na linha de sucessão) a prestar serviços de cura para acalmar três visitantes nervosos.
O Oloiboni apoiava a sua passada irregular num cajado grosso e entalhado. Um barrete de lã azul-escuro cobria-lhe a cabeça. Vestia um manto masai azul e vermelho chamado olkarasha. À medida que se aproximava, estabelecia contacto visual com aqueles que o aguardavam.
Com rugas profundas no rosto, tinha os olhos castanho-dourados marcados por cataratas. Levantei-me para cumprimentá-lo. Num olhar prolongado, pareceu ler-me, fazendo uma avaliação rápida das minhas virtudes e defeitos íntimos.
A voz do Oloiboni era baixa e áspera: “Estás cá”, disse em maa. “Estou”, respondi. Respeitando o costume masai, curvei a cabeça para que ele pudesse tocar-lhe numa saudação.
Depois alinhei os quatro rebentos de cafezeiro na erva entre mim e o Oloiboni, agora sentado. Eu não falo maa e o Oloiboni não fala suaíli, por isso Mores apresentara-me e dissera que seria o nosso intérprete.
“Fala”, disse o Oloiboni.
Então, contei-lhe uma história sobre como um espírito errante da floresta se tornara o cafezeiro das florestas do antigo Reino de Kaffa. Assumira um papel terapêutico, estimulando conversas que remendavam relações desfeitas. Era também um companheiro e presença litúrgica consumida pelos monges ortodoxos na antiga Abissínia (actual Etiópia) enquanto comungavam com Deus e com os santos.
Enquanto Mores interpretava, o Oloiboni ouvia com muita atenção. Os seus olhos pareceram ficar mais claros. Concluí a minha história: “Por isso, trouxemos-lhe estes para si e para esta floresta, se concordar, para os depositar sob a sua protecção para que o espírito também possa encontrar refúgio aqui.”
Silêncio. Chilreios de aves. Murmúrios de homens. Espera.
Por fim, o Oloiboni brindou-nos com um aceno de cabeça. Com um sorriso nos lábios, virou bruscamente a cabeça. “Lemaron!”, chamou, seguido por uma troca de palavras em maa. Mores traduziu: “O Oloiboni Kitok dá-te as boas-vindas. Abençoa a tua visita. Podes ir onde quiseres. Podes entrar na floresta. Quanto à entrevista, espera pela sua palavra.”
Levantei-me.
“Onde vais, na Floresta de Mokompo?”, perguntou Mores. Eu não pensara em locais específicos. “À queda de água.” “Há muitas”, escolhe uma. “Escolhe uma.”
Na manhã seguinte, fortalecidos pela bênção do Oloiboni, partimos para a queda de água escolhida. Enquanto conduzíamos entre a neblina, pensei na lenda que deu nome à Floresta da Criança Perdida.
Em tempos, uma rapariga masai em busca dos seus bezerros tresmalhados entrou na floresta. Os bezerros voltaram para casa sem ela. Homens jovens andaram à sua procura, mas não a encontraram. A floresta decidira ficar com ela.
Quando chegámos ao cume onde a nossa caminhada iria começar, havia três anciãos à nossa espera. Estes batedores eram homens majestosos, magros e rijos, vigilantes e taciturnos, excepto o gregário Langutut ole Kuya. A nossa queda de água ficava à distância de uma caminhada de cinco horas.
Passada a terceira travessia de um pântano, os sapatos já estavam cobertos de lama e as pernas das calças encharcadas. Não encontrei maneira de permanecer seca. Havia água por todo o lado. Riachos irrompiam do solo, enquanto outros gaguejavam e evaporavam-se a meio do curso. Água escorria de rochas ou caía num longo fio de altos afloramentos rochosos.
Toda esta água afluía àquilo que parecia um pântano, mas era na verdade um rio sinuoso, o Olasur. Fomos seguindo o seu crescimento à medida que se tornava mais largo e mais fundo. O guia disse-nos que nele viviam peixes, hipopótamos e, preocupantemente, crocodilos. E depois desapareceu na floresta, através de um túnel repleto de vegetação. Enquanto rastejávamos entre os densos matagais, embora não víssemos o rio, os sons da sua corrente guiaram-nos como um farol.
Passado algum tempo, cambaleámos até um local conhecido pelos masai como “sítio das águas escaldantes”, poças quentes borbulhando lentamente, alimentadas por fontes geotermais. Subimos e descemos, deslizando por margens cobertas de cascalho, segurando-nos a lianas para trepar encostas íngremes e descendo trilhos lamacentos aos tropeções para depois nos arrastarmos até ao cimo de mais um monte.
Esgueirámo-nos entre rochedos revestidos de musgo, transpusemos teias de aranha gigantes, tornámo-nos demasiado íntimos de urtigas e formigas vermelhas e aprendemos a passar silenciosamente ao largo dos locais onde os guias adivinhavam a presença de elefantes e búfalos. Consegui, no entanto, pisar os excrementos de ambos.
Langutut reparava em tudo: apontou-nos e comentou a forma das árvores, as texturas das folhas, os padrões dos líquenes nas rochas, a posição de uma árvore caída, a forma como os ramos estavam partidos, os arranhões na casca. Falou sobre as trajectórias de voo de aves e insectos, a intensidade e temperatura do vento, a textura da luz que penetra entre as copas das árvores, o cheiro das coisas, a respiração das plantas, o significado dos silêncios.
À medida que caminhava, passei a concentrar-me apenas naquilo que via à minha frente, reparando na maneira como o solo mudava de castanho-escuro para vermelho-brilhante e depois quase negro, em seguida areia e marga, e, depois cor de laranja e novamente para castanho, escuro e pálido. Comecei a ver padrões nas folhas e sombras.
Encontrámos várias colmeias. “Também lhe chamam floresta do mel”, disse Langutut, reparando na abundância de arbustos com flor. Apontou para um bosque ao qual chamou árvores do berçário.
“As árvores crescem em famílias”, disse. “As árvores mais velhas cuidam e orientam as mais novas. Partilham amizades entre si e com as pessoas.”
Descreveu o poder prático, medicinal e espiritual de algumas árvores. Enquanto caminhávamos, ele mencionou outros espaços sagrados no interior da floresta – grutas que continham riachos puros e arte inscrita nas suas paredes. Falou sobre uma catedral de árvores gigantes onde o Oloiboni conduz as cerimónias mais privadas. Aprendi palavras elementares em maa, como ewang’an (luz) e oloip (sombra). Os meus ouvidos encheram-se de cantos de aves, sussurros do vento, silvos e cliques de insectos e outras criaturas, o ritmo das gotas da chuva batendo nas folhas. O meu nariz encheu-se dos aromas da terra pungente.
Um dos guias reparou num calau a piar e na mudança de timbre do gro-gro-gro de um macaco colobíneo. Eram sinais de chuva. Retomámos os nossos passos lentos.
Por fim, emergimos acima de um vale vertiginoso revestido com penhascos de rocha castanha polvilhada de branco. Borboletas azuis, brancas, verdes e amarelo-claras agitavam-se à nossa volta, assinalando o fim da estação das chuvas. Uma grande ave de rapina descrevia círculos sobre a nossa cabeça. Lá em baixo, avistava-se finalmente a queda de água, com o Olasur a precipitar-se a partir de um túnel rochoso, numa queda de cerca de 180 metros para o abismo existente sob a folhagem. Mais adiante, disse Langutut, juntar-se-ia ao rio Oloibortoto e, entregue ao seu curso natural, desaguaria no lago Natron.
Não podíamos ficar ali. Tínhamos de fazer o percurso de regresso através da floresta antes que anoitecesse e a neblina escurecesse os pântanos. E, enquanto saíamos da floresta, aprendi outras palavras em maa quando vislumbrámos a maior, mais cheia e mais luminosa das luas. Olapa.
Quando chegámos à hospedaria, o Oloiboni deixara-nos um recado: conversaria comigo de manhã.
Um galo de penas castanhas transportava um gafanhoto no bico enquanto passeava na residência do Oloiboni. Vacas e cabras foram pastar acompanhadas por um jovem guardião. Ainda emocionada com as experiências da floresta, sentei-me sob a árvore colossal e esperei.
Os olhos do Oloiboni iluminaram-se quando me viu. Não posso negar que senti a sua aura. Chamem-lhe carisma em estado puro ou, possivelmente, o efeito de todas as lendas que ouvi, misturadas com as maravilhas da viagem do dia anterior. Ou talvez fosse a alegria de tropeçar num líder com uma aliança inabalável com o mundo natural. Vi uma simetria entre o Oloiboni e a sua árvore, ambos enraizados, antigos e misteriosos, ambos oferecendo sombra e abrigo a quem os procura.
As nossas conversas foram serpenteando como o Olasur. Ele falou sobre a linhagem dos seus antecessores e da sua prole. Descreveu o que significava ser o Oloiboni Kitok: não era uma escolha. Ele nascera nessa posição. Falou sobre a “sua” floresta: é um santuário e uma catedral, um refúgio e fonte de combustível. É o jardim de Deus, “a hospedaria da chuva”. É uma escola, um supermercado, hospital, farmácia e uma casa de repouso. A perfídia humana ameaça-a, com a gula, o orgulho, a luxúria e a inveja, em destaque.
O Oloiboni referiu-se a vagas sucessivas de incursões de forasteiros: agentes governamentais duvidosos, falsos pregadores e construtores ávidos. Falavam todos em termos subtis, mas mortais: vedações, demarcação, escrituras, empréstimos bancários, estradas atravessando a floresta. Aludiu a esquemas intermináveis, sobretudo de grupos internacionais de conservação com bolsos fundos que presumiam dizer às pessoas o que era melhor para Loita.
Falámos sobre a importância da terra. “Se perdermos a terra, perdemos a cultura”, disse o Oloiboni. “Perdemos a cultura, perdemos o lugar. Perdemos o lugar, perdemos a comunidade. Perdemos a cultura, perdemos a paz. Perdemos a comunidade, perdemos o nosso modo de vida. Para sempre.” Sentámo-nos em silêncio. Vi um Atlas idoso, sustentando não só os céus, mas também a sua Terra. Um tecelão trinava insistentemente à distância. O Oloiboni olhou na sua direcção. A tranquilidade instalou-se nele. Eu deveria ter perguntado: O que disse ele? Em vez disso, mudei o tema da conversa para as alterações climáticas.
“Já ouvi falar nisso”, disse.
Já viu as estações mudar aqui? “O frio é mais intenso e mais frequente, isso é verdade.” E a seca?
Ele franziu o sobrolho. “Só uma vez, há cinco anos. Mas isso foi consequência dos nossos desmandos. Construímos vedações. Já emendámos esse erro.”
O tecelão voltou a trinar.
Tem alguma mensagem para uma humanidade confusa por força deste clima em mudança?
Fez uma longa pausa. “O que posso eu dizer?”, respondeu, finalmente, com um sorriso bem-disposto. “Somos convidados temporários nesta casa a que chamamos vida. Nesta casa que é a Terra, não deveríamos já ter aprendido a comportarmo-nos de forma honrada?”
Para os masai, explicou, isto significava aderir ao olmanyara. É um termo difícil de traduzir. Noutra noite, em redor de uma fogueira, Mores descreveu o olmanyara como um sistema de valores que tem mais que ver com conservação do que com custódia. Significa receptividade à natureza e noção da existência em todas as suas formas e tratá-la bem.
Trovões ressoaram ao longe. Estava a chover em Mara, um prelúdio para a retoma das primordiais migrações dos animais.
“Nunca tem medo do futuro?”, perguntei.
“Deveria?”, gracejou. O ancião mudou de tom rapidamente e eu voltei a ser de novo uma aluna na sua presença. “Agora que estiveste na nossa floresta, o que viste?”
“A minha ignorância”, respondi rapidamente. “Pensava que a floresta era só árvores.”
O Oloiboni riu-se. Era um som jovial. Fez que com todos se rissem também. “E que mais viste?”