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Em Patna, um barqueiro observa o Ganges perto de uma via rápida recém-construída. O rápido desenvolvimento do país fez disparar a procura de plástico e a indústria nacional do plástico é actualmente uma das maiores do mundo.

O Ganges é um rio sagrado da Índia. É também uma importante origem dos resíduos industriais que poluem o oceano. A expedição da National Geographic propôs-se documentar a extensão da poluição de plástico no rio e as suas origens em terra.

Texto: Laura Parker
Fotografias: Sara Hylton

Na última década, depois de o mundo tomar consciência da acumulação de resíduos de plástico nos oceanos, houve esforços numerosos, mas insuficientes, para resolver esta crise. Até 2040, prevê-se que a quantidade de plástico que flui todos os anos para o mar triplicará, elevando-se a 29 milhões de toneladas anuais. Isto significa que existirão, em média, 50 quilogramas de lixo de plástico por cada metro de orla costeira, em todo o mundo.

Ainda não é demasiado tarde para resolver o problema. No entanto, há muito que expirou o prazo para adoptar pequenas medidas. Os resíduos de plástico já existentes nos oceanos são uma ameaça mortal para um vasto leque de vida selvagem, desde o plâncton aos peixes, tartarugas e baleias. Sabe-se menos sobre a forma como os resíduos desembocam no oceano, mas parece evidente que os rios, em especial os rios da Ásia, são artérias importantes.

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Dois rios, o Bhagirathi e o Alaknanda, confluem nos Himalaia Ocidentais, formando o Ganges, na cidade indiana de Devaprayag – “confluência sagrada”, em sânscrito. Calcula-se que a quantidade de resíduos de plástico que escorre do Ganges se eleve a 6.200 toneladas por ano.

Em 2019, a National Geographic Society patrocinou uma expedição de investigação ao Ganges, que corre ao longo do Norte da Índia e do Bangladesh, atravessando uma das maiores e mais densamente povoadas bacias hidrográficas do planeta. Uma equipa, constituída por 40 membros – cientistas, engenheiros e pessoal de apoio – originários da Índia, Bangladesh, Estados Unidos e Reino Unido, percorreu por duas vezes a extensão total do rio, antes e depois das chuvas da monção que engrossam dramaticamente o seu caudal. Recolhendo amostras nas águas do rio, bem como na terra e ar em seu redor, e entrevistando mais de 1.400 habitantes, a equipa procurou perceber onde, como e que tipo de plástico entrava no Ganges para depois desaguar no oceano Índico.

“O problema não pode ser resolvido sem primeiro o identificarmos”, disse Jenna Jambeck, uma das líderes da expedição. Em 2015, foi a sua investigação inovadora, incluindo os seus cálculos de que, em média, são despejadas oito milhões de toneladas nos oceanos todos os anos, que contribuiu para transformar os plásticos marinhos numa preocupação ambiental de grande importância. À semelhança da maioria dos especialistas, Jenna acredita que a solução passa por reduzir e conter os resíduos de plástico em terra, onde a maior parte deles tem origem.

Encontrei-me com ela na cidade indiana de Patna, que se expande ao longo da margem meridional do Ganges, a cerca de 800 quilómetros da foz do rio, no golfo de Bengala. Jenna caminhava devagar, passando por lojas e cafés, de olhos postos no chão. Contava os pedaços de lixo um a um, introduzindo cada “achado” numa aplicação de telemóvel que registava a sua localização.

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O pescador Babu Sahni, de 30 anos, e o seu filho Himanshu Kumar Sahni, de 8, aproximam-se de um banco de areia no rio Punpun, um afluente do Ganges. Na Índia rural, a recolha de lixo é rara. Em contrapartida, são vulgares lixeiras improvisadas como esta. A maior parte dos resíduos de plástico existentes no oceano chega ali vinda de terra e arrastada pela água.

Cidade em crescimento rápido, com mais de dois milhões de habitantes, Patna só dispõe de um serviço municipal de recolha de lixo porta-a-porta desde 2018, e a prática de deitar o lixo para o chão é um problema antigo.

Durante a expedição de 98 dias, Jenna e a sua equipa realizaram 146 destes percursos de documentação do lixo, cada qual com a distância aproximada de um quarteirão, em 18 cidades e aldeias ao longo do rio. Registaram 89.691 pedaços de lixo no chão. Catalogaram igualmente os produtos vendidos nas lojas das redondezas porque precisaremos de saber “o que está a escapar ao sistema” e o que não está, segundo a especialista.

“Queremos eliminar o que acaba no chão, proibindo-o? Queremos um imposto? Queremos outro desfecho?” perguntou. “Ou, se proibirmos os sacos de plástico, será que essa proibição funciona?”

Os três principais artigos de plástico documentados por Jenna Jambeck nas ruas indianas foram película aderente para embrulho de alimentos, pontas de cigarro e “saquetas” de tabaco. Cerca de 40% dos objectos deitados fora tinham marcas internacionais, incluindo marcas de empresas sediadas nos EUA ou no Reino Unido. A sensibilização dessas empresas foi outro dos objectivos definidos por Jenna ao desenvolver esta investigação. “Precisamos que essas pessoas, que se encontram a oito mil quilómetros de distância, aceitem sentar-se à mesa e mostrar abertura quanto à necessidade de mudança”, disse. Tal como as alterações climáticas, os resíduos de plástico são um efeito colateral da nossa dependência relativamente aos hidrocarbonetos e os seus impactes, bem como as soluções para o problema, têm de ser locais e globais.

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O mercado das flores Mullick Ghat, em Kolkata, apresenta-se sobrelotado antes do festival do Durga Puja. Em funcionamento desde a década de 1850, o mercado vende agora flores de plástico e flores naturais. Ambas são por vezes espalhadas no rio como oferendas.

Pelo menos parte do lixo que vi ser documentado por Jenna em Patna acabaria por ir parar a uma valeta sem protecção. Dali, uma grande conduta despejá-lo-ia directamente no rio, encaminhando-o até ao golfo de Bengala.

O Ganges é um dos maiores rios do mundo, venerado por mil milhões de hindus como Mãe Ganga, uma deusa viva com o poder de purificar a alma. As suas águas nascem no glaciar Gangotri, a grande altitude, nos Himalaia Ocidentais, a poucos quilómetros do Tibete, precipitando-se em seguida por desfiladeiros íngremes de montanha até atingirem as planícies férteis da Índia Setentrional. Ali chegado, o rio serpenteia em meandros para leste, atravessando o subcontinente até alcançar o Bangladesh, alargando à medida que vai absorvendo as águas de dez grandes afluentes. Logo depois de confluir com o Bramaputra, o Ganges desagua no golfo de Bengala. É o terceiro maior caudal de água doce que desagua no oceano, em todo o mundo, a seguir ao Amazonas e ao Congo. Assegura o sustento de mais de um quarto da população de 1.400 milhões de pessoas da Índia, da totalidade da população do Nepal e de parte dos habitantes do Bangladesh. O rio é de tal maneira sagrado que a sua água, Ganga jal, tem sido transportada em vasilhas por exércitos conquistadores e por turistas munidos de guias de viagem, que a levam para os seus países. Comerciantes do século XVII acreditavam que se mantinha “mais fresca” em viagens marítimas de longa duração do que a água recolhida noutros lugares.

Infelizmente, há muito que o Ganges é um dos rios mais poluídos do mundo, conspurcado por efluentes poluídos provenientes de centenas de fábricas, algumas das quais datando do período colonial britânico. As fábricas adicionam arsénico, crómio, mercúrio e outros metais às centenas de milhões de litros de resíduos por tratar que continuam a correr pelo rio todos os dias. Os resíduos de plástico são apenas a mais recente injúria. E contudo, apesar disso, e das contagens por vezes mortais de bactérias fecais, a crença na pureza mítica do Ganges subsiste e complica os esforços há muito desenvolvidos no sentido de despoluir o rio. Sudipta Sen, que foi criado em Kolkata (antiga Calcutá) e ensina História da Ásia Austral, demorou 14 anos a escrever o seu livro “Ganges: The Many Pasts of an Indian River”.

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Sita Ram Sahni (sentado), de 70 anos, e o seu sobrinho Vinod Sahni, de 50, posam para a fotografia em frente de casa, na margem norte do Ganges, em Bihar. Há mais de 50 anos que a família Sahni pesca no rio. As redes, outrora fabricadas com algodão, são agora de nylon azul, uma espécie de plástico.

“A verdade é que há dois rios”, resumiu. “Existe a crença de que o rio consegue limpar-se sozinho e que possui propriedades mágicas. Se o rio é capaz de limpar-se sozinho, então por que teremos de preocupar-nos com isso?”

O Ganges reforça essa narrativa durante a monção estival, quando se diz que está “a engrossar”. Em Patna, onde o rio recebe vários grandes afluentes, alargando de forma considerável, a monção transforma-o numa torrente feroz que provoca regularmente cheias em Bihar, o estado maioritariamente rural do qual Patna é a capital.

Certo dia, de manhã cedo, na companhia de outros membros da expedição, atravessei o Ganges para a margem norte, em Patna, e viajei de carro até uma pequena aldeia delimitada por bananeiras e habitada por agricultores e pescadores. Redes de pesca esfiapadas de nylon azul jazem empilhadas. As redes de pesca abandonadas são uma importante fonte de poluição por plástico no rio Ganges, uma poluição que põe em perigo os golfinhos, as tartarugas e as lontras do rio. Viam-se sacos de batatas fritas e outros resíduos espalhados. Não havia um único caixote de lixo à vista.

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As redes de nylon são utilizadas e frequentemente substituídas no Ganges, um dos maiores bancos de pesca continentais do mundo. Quando se perdem ou são deitadas fora no rio, podem emaranhar-se em tartarugas, lontras e golfinhos de rio ameaçados de extinção. Com o passar do tempo, fragmentam-se em microplásticos.

O pescador que eu viera visitar estava a dormir e, por isso, trepei talude acima, ainda coberto com sacos de areia, e sentei-me nos gates (os degraus que descem até ao rio), observando as pessoas nos seus afazeres matinais. Acocoradas no degrau de baixo, cinco mulheres lavavam roupa na água turva. Vários homens chegaram para tomarem banho. Cada um despejou champô de uma saqueta de plástico, antes de a deitar ao rio. Depois de terminarem, os homens fizeram uma oferenda ao Ganga, erguendo as mãos ao ar em forma de concha e devolvendo-lhe a água.

Em Kolkata, encontrei um vendedor de flores chamado Goutam Mukherjee, que me contou ter desistido de vender flores frescas há muitos anos. Estávamos no coração de um dos maiores e mais famosos mercados grossistas de flores da Ásia, onde a sua loja se encontrava rodeada por bancas de grinaldas frescas e outras flores fragrantes. Mukherjee apontou as razões pelas quais as suas flores de plástico, importadas da China, eram melhores do que as flores verdadeiras: custam menos, parecem reais e não murcham. O milagre do plástico chegou à Índia há tão pouco tempo que nem sequer existe no idioma hindi uma palavra para este material e, em alguns lugares, a comida para levar para casa ainda vem embrulhada em folhas de bananeira. Tudo começou na década de 1990 quando o crescimento da indústria dos plásticos coincidiu com a liberalização da economia indiana. Enquanto no mundo ocidental a idade de ouro do plástico abriu caminho à cultura desperdiçadora, na Índia o aparecimento de produtos de consumo a preços baixos simplesmente tornou a vida melhor. Ao permitirem o armazenamento em plástico, recipientes, sacos e película aderente ajudam a manter os alimentos frescos durante mais tempo. Crianças descalças passaram a conseguir sapatos baratos e os tecidos sintéticos proporcionaram mais roupa. As saquetas permitiram que as pessoas pudessem aceder a produtos que anteriormente não tinham dinheiro suficiente para comprar, por serem vendidos em grandes quantidades.

No entanto, ainda antes do final da década, a Índia já se encontrava mergulhada em resíduos plásticos de embalagem, cuja acumulação ultrapassara qualquer capacidade exequível de contenção. Desde então, o problema alastrou para fora das cidades, atingindo zonas rurais e reservas naturais, onde numerosas espécies já foram avistadas a ingerir plástico. No Parque Nacional de Rajaji, uma cidade de peregrinação situada no sopé dos Himalaia, os elefantes comem plástico nas lixeiras. “Há muitos lugares à beira da floresta onde os aldeãos vão deitar fora o lixo e onde os animais selvagens se alimentam”, disse o vigilante da natureza Mohammad Yusuf. “Tenho observado plástico nos excrementos dos elefantes muitas vezes, nos últimos cinco anos.”

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Os habitantes da bacia do Ganges usam escadas, como a Chandi Ghat em Haridwar, para alcançarem o rio e se imergirem naquilo que consideram ser águas purificadoras. A crença hindu nos poderes curativos do rio atrai milhões de peregrinos ao Ganges todos os anos, mesmo durante a pandemia de COVID-19.

Em quase todos os países que enfrentam dificuldades na gestão dos resíduos de plástico, o problema deve-se sobretudo às embalagens, a maior parte das quais são deitadas fora imediatamente depois do primeiro uso. A nível mundial, elas representam 36% dos quase 438 milhões de toneladas de plástico fabricado todos os anos. O problema da Índia tem menos que ver com o consumo per capita e mais com a inexistência de uma recolha adequada dos resíduos. Nos Estados Unidos, cada pessoa cria em média 130 quilogramas de resíduos de plástico por ano – a maior quantidade em todo o mundo, mais de seis vezes superior à quantidade média de 20 quilogramas por pessoa gerada na Índia. Só que os EUA dispõem de um sistema mais ou menos funcional de recolha e eliminação de resíduos.

Nas cidades da Índia, a recolha do lixo é frequentemente ineficiente e os volumes recolhidos são baixos. A situação é mais desanimadora nas regiões rurais, onde vive cerca de dois terços da população indiana. No estado de Bihar, com uma população de 129 milhões de habitantes, aproximadamente do tamanho do Japão, os resíduos de plástico são queimados ou despejados em locais improvisados, onde vacas e outros animais os ingerem inadvertidamente. Ou então são depositados sobre um banco de areia junto do Ganga para que este o leve para longe.

Heather Koldewey, cientista especializada em água salgada e água doce da Sociedade Zoológica de Londres e co-líder da expedição, diz ter ficado a compreender o poder do caudal do rio de uma nova perspectiva depois de o ter percorrido em toda a sua extensão. Uma grande lixeira municipal visitada pela equipa – não oficial, mas utilizada pelos camiões da cidade – ficava tão próxima da margem do rio que o Ganges devorava uma parte dela em cada monção.

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Swami Shivanand Saraswati, de 75 anos, banha-se no Ganges no seu ashram Matri Sadan, em Haridwar. Ele lidera uma ambiciosa campanha, de longa data, destinada a proteger o rio da extracção mineira, de novas barragens e da poluição. Os resíduos plásticos são apenas um entre muitos poluentes que o conspurcam.

“Assim que chegávamos a uma vila, ou uma aldeia mais pequena, deixava de haver gestão de resíduos…”, disse-me certa manhã enquanto recolhia amostras de água. “A questão é a seguinte: a maior infra-estrutura de gestão de resíduos é o próprio rio. As pessoas depositam os seus resíduos ao longo de canais secos do rio, sabendo que todos serão arrastados para longe.

“Esta situação não é fácil de resolver. Se substituirmos o rio por um sistema de gestão de resíduos que lhe seja equivalente, isso representará custos muito elevados.”

Em vez disso, seria possível simplesmente recolher o lixo do próprio rio? Em 2017, enquanto cresciam a nível mundial as preocupações face ao plástico oceânico, dois estudos chegaram a uma conclusão surpreendente: um pequeno número de rios (um estudo identificou 10, o outro 20) eram responsáveis pela esmagadora maioria daquilo que os rios despejam no oceano. A maior parte dos rios identificados nas duas listas localizava-se na Ásia. O Ganges ocupava um lugar de destaque em ambas. Um estudo mais recente e abrangente, conduzido por alguns dos mesmos cientistas, concluiu que, na realidade, seria preciso limpar mais de mil rios para reduzir em 80% a quantidade de resíduos que flui dos rios para o mar.

No entanto, na Ásia, em África e no continente americano, encontram-se em marcha operações de despoluição fluvial e estas estão a produzir alguns resultados. O avô destes esforços é a Senhora Roda do Lixo, uma barcaça devoradora de lixo de olhos esbugalhados, que desde 2014 recolhe resíduos no Porto Interior de Baltimore. Contudo, o mais ambicioso limpador de rios é Boyan Slat, de 27 anos, fundador da organização sem fins lucrativos Ocean Cleanup, dos Países Baixos.

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Esta lixeira em Patna serve de exemplo a um problema generalizado na bacia hidrográfica do Ganges: a inexistência de uma recolha de lixo adequada espalhou o plástico por zonas onde as chuvas de monção o arrastam para o rio, juntamente com outros resíduos.

Boyan tornou-se famoso quando ainda era adolescente e anunciou aos meios de comunicação um plano grandioso para limpar a Grande ilha de Lixo do Pacífico, um aglomerado de detritos marinhos avulsos que rodopiam pelo Pacífico Norte. Com a sua campanha, angariou cerca de 27 milhões de euros e lançou o seu engenho: uma manga flutuante, com 600 metros de comprimento, em forma de U, que limpa os resíduos da superfície da água.

Vários cientistas marinhos disseram-lhe que a ideia era péssima, pois teria de fazer o dispositivo funcionar para sempre, a custos insustentáveis, enquanto houvesse plástico despejado no Pacífico. Disseram-lhe também que seria praticamente impossível remover os microplásticos, por serem minúsculos e estarem espalhados por toda a coluna de água.

Boyan, porém, foi persistente e o seu dispositivo ainda funciona, recolhendo sobretudo redes de pesca abandonadas. Até os críticos o elogiam por isso. Entretanto, o activista virou a sua atenção para os rios. Deve-se à sua organização o financiamento do novo estudo que veio mostrar quantos rios eram fontes importantes de poluição por plásticos. Em 2019, ele apresentou uma barcaça alimentada a energia solar e anunciou que limparia os mil piores rios do mundo no prazo de cinco anos. A pandemia atrasou os trabalhos: até agora, os “Interceptores” de Boyan Slat estão a funcionar na Indonésia, Malásia, Vietname e República Dominicana. Juntamente com o dispositivo do Pacífico, a organização já recolheu mais de mil toneladas de lixo.

Embora Boyan Slat tenha enfrentado o desafio do Pacífico, até ele considera que a limpeza do plástico da superfície dos grandes rios continentais, incluindo o Ganges, seria a abordagem errada. “É demasiado largo e o lixo é difuso”, afirmou. A melhor estratégia seria atacar afluentes mais pequenos, “ir às cidades do delta (Dacca e Kolkata) e instalar os dispositivos nos pequenos rios destas cidades”.

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Uma mulher em Rishikesh faz a triagem dos resíduos de plástico à mão, dando especial atenção aos tipos mais valiosos: as garrafas de tereftalato de polietileno, ou PET, que pode ser prontamente reciclado para o fabrico de vestuário, por exemplo. Graças aos recolectores de lixo, a Índia apresenta uma taxa de reciclagem de plásticos muito superior à dos Estados Unidos, mas boa parte do lixo de plástico não tem qualquer valor.

Depois de regressar da Índia, fiz uma visita a John Kellett, inventor da Senhora Roda do Lixo, na sua marina numa enseada a sul de Baltimore. Estava a concluir os trabalhos da sua quarta roda do lixo, que mais tarde seria instalada num rio perto do estádio de futebol americano dos Baltimore Ravens, na baixa da cidade. As quatro rodas já recolheram 1,6 milhões de quilogramas de lixo, mudando radicalmente o aspecto do porto. Em contrapartida, John mostrou-se céptico relativamente aos esforços desenvolvidos a nível mundial.

“É bom que haja interesse, mas isto é só uma peça do quebra-cabeças”, disse. “Não acredito que alguma vez consigamos limpar os oceanos abordando um rio de cada vez. Este esforço tem de ser acompanhado por alterações das políticas públicas e também por alterações comportamentais.”

A recolha de resíduos na Índia seria ainda mais disfuncional se não fosse o “sector informal”: o exército de operadores independentes que recolhem os resíduos de plástico para vendê-los para reciclagem e os recolectores de lixo, que o apanham nas lixeiras ou nas ruas.

Estes trabalhadores são uma das razões pelas quais não se vêem muitas garrafas de plástico nas ruas: as garrafas são os produtos recicláveis de maior valor. Os resíduos de plástico constituem cerca de metade dos rendimentos dos recolectores de lixo e as garrafas de tereftalato de polietileno (PET) representam metade dos plásticos recolhidos, disse Bharati Chaturvedi, director da Chintan, uma organização sem fins lucrativos que dá apoio aos recolectores de lixo.

O sector informal é em grande parte responsável pela elevada taxa de reciclagem da Índia, estimada em 60%. No entanto, os materiais não recicláveis não rendem qualquer dinheiro e, por isso, os sacos, as películas de embrulho de alimentos, as saquetas e outros produtos não são apanhados. Em vez disso, juncam as ruas indianas e vão parar ao Ganges.

Em Outubro passado, o primeiro-ministro Narendra Modi lançou a segunda fase da sua campanha “Índia Limpa”. Na primeira fase, o país já instalara 90 milhões de casas de banho, numa tentativa de pôr fim à defecação ao ar livre, que continua a ser comum na Índia. Um dos objectivos da segunda fase é tornar as cidades limpas: sem lixo. O governo de Modi está a construir unidades de transformação de resíduos em energia, ou seja, incineradoras que geram electricidade. O governo anunciou igualmente a proibição a nível nacional do fabrico e consumo de plásticos de utilização única. Esta proibição, que se prevê que venha a vigorar a partir de Julho, abrangerá sacos de compras de plástico fino, recipientes de espuma, talheres, copos, pratos, palhinhas, pauzinhos de chupa-chupas e de gelados, certas películas e outros plásticos descartáveis.

Na Índia, contudo, o fosso entre a legislação nacional ambiciosa e a sua aplicação a nível local e estadual é por vezes colossal. Os regulamentos federais em vigor sobre resíduos são “maravilhosos, tudo aquilo que alguma vez poderíamos desejar”, afirmou Robin Jeffrey, co-autor, juntamente com Assa Doron, de “Waste of a Nation”, um estudo sobre o lixo na Índia. “Só que ninguém no país alguma vez seria capaz de aproximar-se do seu cumprimento.” Há mais de 35 anos que a Índia tenta limitar as descargas de esgotos e de resíduos fabris para o Ganges – até agora com pouco sucesso. A pandemia retardou as medidas do governo para apoiar projectos de limpeza. Também provocou um enorme aumento dos resíduos de plástico no país, à semelhança do sucedido a nível mundial, uma vez que as pessoas em confinamento passaram a encomendar mais comida para casa e a solicitar mais entregas ao domicílio.

“A sociedade civil da pós-pandemia dá mais valor ao plástico e ao papel que este desempenhou na salvação da humanidade”, afirmou Deepak Ballani, director-geral da Associação dos Fabricantes de Plástico da Índia. “Ao mesmo tempo, a consciência do impacte ambiental do lixo deitado fora multiplicou-se várias vezes.” Tal como a indústria do plástico noutros lugares, o grupo de Deepak Ballani favorece a reciclagem e opõe-se às proibições, defendendo que estas eliminam postos de trabalho e que o problema não reside nos plásticos de utilização única em si, mas na maneira como as pessoas os eliminam.

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A partir de 2016, o governo indiano desenvolveu novos regulamentos para obrigar os produtores de embalagens em plástico a assumir novas responsabilidades pelo custo da recolha e reciclagem dos seus produtos descartáveis. Outros regulamentos semelhantes, conhecidos como responsabilidade alargada do produtor, ou RAP, contribuíram para reduzir os resíduos de plástico na União Europeia desde meados da década de 1990. Nos EUA, a indústria do plástico opôs-se à aprovação de legislação a nível nacional.

Entretanto, a quantidade de resíduos de plástico que aflui ao oceano continua a aumentar. A previsão de que quase triplicará até 2040, a manter-se o figurino habitual, encontra-se definida num relatório elaborado pela Pew Charitable Trusts e pela Systemiq, uma empresa ambiental e de investimento sediada em Londres. O relatório conclui que, na melhor das hipóteses, a totalidade das proibições locais sobre sacos, regulamentos sobre garrafas e compromissos relativos a reciclagem, assumidos a nível local, dos quais ouvimos falar, apenas permitirão reduzir uns escassos pontos percentuais no figurino habitual: para se resolver o problema dos resíduos de plástico, será necessário aplicar todas estas soluções. Mas também será preciso que os governos redefinam radicalmente os incentivos económicos concedidos à indústria do plástico. Principalmente, se não queremos que os resíduos de plástico presentes no oceano dupliquem ou tripliquem, então temos de impedir que a produção de plástico duplique em terra – que é aquilo que a indústria tenciona fazer, se for autorizada a seguir o figurino habitual.

A Pew e a Systemiq não são, de todo, as únicas vozes a defender esta abordagem. Em Dezembro de 2021, a Academia Nacional das Ciências, Engenharia e Medicina recomendou o desenvolvimento, pelos EUA, de uma estratégia nacional destinada a reduzir os resíduos de plástico: essa estratégia deveria prever a imposição de um limite máximo à produção de plástico virgem. Esse limite ajudaria também a gerir a crise climática: a indústria do plástico representa cerca de 6% do consumo mundial de petróleo. As duas crises estão interligadas. E a sugestão de que a solução para ambas exige deixar o petróleo no subsolo, outrora considerada radical, passou, entretanto, a fazer parte das conversas quotidianas.

Os apelos à acção tornaram-se igualmente mais urgentes e generalizados na Índia. Brajesh Kumar Dubey, professor de Engenharia Ambiental no Instituto Indiano de Tecnologia Kharagpur, declarou-me ter ficado surpreendido, enquanto viajava pela bacia hidrográfica do Ganges no âmbito da expedição da National Geographic, por ter encontrado tantas “pequenas ilhas de pessoas” a desenvolver esforços para sensibilizar o público para as questões ambientais. No entanto, a verdade é que o seu país mudou muito e desenvolveu-se de maneira muito acelerada nos últimos 30 anos. “Se alguém conseguir unir todas estas ilhas, conseguirá alcançar melhores resultados e resolver este problema de uma maneira muito melhor. Os comportamentos irão mudar”, disse. “Sou um grande optimista.”

Contrariamente aos esforços para combater as alterações climáticas, a limpeza do lixo de plástico numa bacia hidrográfica geraria benefícios imediatos e visíveis para os habitantes dessa região. No entanto, à semelhança do combate contra as alterações climáticas, esta luta pode, por vezes, parecer o trabalho de Sísifo, embora seja essencial se quisermos evitar que o planeta mude de forma irremediável.

Perto do final da minha estada na Índia, desloquei-me à ilha de Sagar, na extremidade ocidental do delta do rio Ganges. Sagar situa-se no golfo de Bengala, na foz de um afluente do Ganges chamado Hooghly, 120 quilómetros a jusante de Kolkata. Para os hindus, esta embocadura do rio tem um significado espiritual especial. Anualmente em Janeiro, milhares de peregrinos viajam até à ilha para se banharem nas águas onde a Mãe Ganga se encontra com o mar.

Na ponta sudoeste da ilha, perto de um farol construído pelos britânicos para guiar os navios até à foz do rio e daí até Kolkata, a praia não tinha lixo quando a visitei: o Ganga tinha feito bem a sua limpeza monçónica.

Enquanto caminhava, passando por alguns peregrinos fora de época, um punhado de vacas tresmalhadas e um préstito fúnebre espalhando cinzas sobre a água, pensei em todas as dádivas depositadas pelo Ganga em Sagar nos tempos que correm.

Segundo medições feitas pela equipa de Heather Koldewey, além de levar para longe o lixo visível, as chuvas da monção arrastam consigo três mil milhões de microfibras por dia, até ao canal principal do rio que desagua no golfo de Bengala. Ali chegadas, juntam-se ao remoinho crescente de minúsculos fragmentos de plástico que se acumulam nos oceanos, cujos efeitos nocivos sobre a vida marinha só agora começam a ser compreendidos.

Uma das experiências da expedição, chamada Mensagem na Garrafa, consistiu em lançar uma frota de 25 garrafas equipadas com detectores electrónicos, a fim de permitir entender melhor a maneira como o plástico se comporta nos rios e nas suas embocaduras. Três garrafas foram lançadas na foz no Bangladesh. No mar, o plástico desloca-se com facilidade e realiza viagens de centenas de quilómetros no espaço de poucas semanas. Pouco depois da minha visita a Sagar, as três garrafas passaram pelo local onde eu me encontrara. Iam a navegar pela Corrente Costeira da Índia Oriental, com destino incerto.

Sara Hylton

A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou a reportagem da exploradora Sara Hylton ao longo do rio Ganges. Ilustração de Joe Mckendry

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