Chimanimani

O substrato quartzítico, a altimetria e a precipitação que caracterizam este maciço moçambicano são responsáveis por uma elevada taxa de endemismos. Esta prótea (Protea caffra gazensis) é um bom exemplo.

Há um monte em Moçambique onde a vida seguiu caminhos muito especiais. A ciência começa a conhecer Chimanimani.

Texto: Alexandre Vaz
Fotografias: Jen Guyton

Apesar de a ciência ainda não o ter conseguido demonstrar, sabemos hoje que eles emitem sons fora do espectro da audição dos humanos, que viajam quilómetros e que podem reverberar nos nossos corpos, causando senão paralisia, pelo menos temor e desorientação. Em Chimanimani, pensava-se que os leões tinham desaparecido e de facto não restam agora populações estáveis, mas relatos de rugidos episódicos que ecoam no vale sugerem que a espécie continua esporadicamente a atravessar estas montanhas.

A história de Moçambique e de Portugal está inevitavelmente ligada pelo passado colonial, pela partilha da língua e também pelos negócios e pelos portugueses que vivem em Moçambique e pelos moçambicanos que vivem em Portugal. Quase cinquenta anos depois da independência, há uma geração em Portugal que pouco sabe daquele país, da sua história e beleza arrebatadoras. Moçambique é um país grande, quase dez vezes maior do que Portugal e o seu território e fronteiras contam uma história que reemerge quando menos se espera. Tal como grande parte dos países da África Austral, aqui as fronteiras foram desenhadas a régua e esquadro durante a Conferência de Berlim em 1885. As potências coloniais europeias procuravam então chegar a acordo sobre os limites geográficos das suas colónias. Poucos anos antes, o comércio de escravos tinha sido oficialmente interdito, mas, em seu lugar, a indústria crescente começava a reclamar matérias-primas de que estes territórios eram ricos. Uma das deliberações da Conferência de Berlim requeria que, para que as colónias fossem reconhecidas internacionalmente, teriam de ser ocupadas de facto.

Poucos anos mais tarde, em virtude da escassez de meios humanos e materiais, Portugal foi confrontado com o Ultimato britânico que pôs fim ao velho sonho de ligar a costa Atlântica e do Índico sobre a bandeira real portuguesa. A província de Manica estava no centro dessa disputa e, na última década do século XIX, tiveram aqui lugar várias ofensivas militares comandadas por Cecil Rhodes com vista a assegurar direitos britânicos sobre as reservas de ouro descobertas na região.

A nossa história começa em 1906. Indiferente a estas disputas e aos aproveitamentos mobilizados pela oposição republicana em Portugal, um jovem naturalista britânico, Charles Francis Massy Swynnerton, fez-se ao caminho em direcção às montanhas de Chimanimani. Foi a primeira expedição científica neste território que antecipou a extraordinária biodiversidade local. Swynnerton, depois, tornou-se a grande autoridade mundial na mosca tsé-tsé.

Situado na fronteira com o Zimbabwe, o monte Binga, com os seus 2.436 metros de altitude, é o ponto mais elevado da cordilheira e de Moçambique. Palco de conflitos regulares, que prosseguiram na longa e violenta guerra pela independência e depois na ainda mais longa e sangrenta guerra civil, foi um ponto no mapa que, durante décadas, ninguém associaria a conservação da natureza. Essa situação começou a mudar.

Chimanimani

Com apoio de doadores internacionais, Moçambique tem feito um enorme esforço para recuperar áreas e populações de animais selvagens, contribuindo para o esforço global de preservação da biodiversidade e alavancando o turismo, um sector fundamental para o desenvolvimento do país. Neste caminho, a jóia da coroa tem sido o Parque Nacional da Gorongosa, mas, em 2020, nas palavras do presidente Filipe Nyusi, o então recém-criado Parque Nacional de Chimanimani tinha entrado na moda.

Dois anos antes, em 2018 uma equipa de cientistas liderados pelo entomólogo do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard, Piotr Naskrecki, iniciara um conjunto de expedições à região e as suas descobertas excederam as expectativas mais optimistas. Na verdade, não vinha às escuras: além de Charles Swynnerton, mais de 100 anos antes, na década de 1960 a recém-fundada revista de botânica do Zimbabwe publicara um conjunto de artigos sobre a vegetação da região, dando conta de que, das 859 espécies identificadas acima da cota de 1.200 metros de altitude, 41 eram endémicas. Estes números, baseados sobretudo nas vertentes do lado do Zimbabwe, foram revistos em alta mais recentemente para um total de 977 espécies com 74 endémicas, aproximadamente o dobro de plantas endémicas do Reino Unido.

O maciço quartzítico de Chimanimani, que se eleva acima do planalto Africano Central e integra a Escarpa Oriental, apresenta nas cotas mais elevadas níveis de precipitação muito acima dos da base, criando isolamentos geográficos propícios aos mecanismos de especiação. Estas características por si só justificariam o mais elevado estatuto de conservação, mas naturalmente estas condições não favoreceram só a diversidade de plantas. Apesar de a maioria dos trabalhos anteriores se terem focado na vegetação, havia a expectativa de que a área tivesse também enorme interesse para outros grupos de seres vivos.

Para Paola Bouley, era a primeira visita a Chimanimani. A investigadora instalou-se numa rudimentar tenda junto da margem do rio que mais a montante rasga a rocha numa garganta apertada (chimanimani, no dialecto local). Ao despertar, avistou uma lontra a aproveitar os primeiros raios de sol da manhã numa rocha em pleno rio. São raras na região e era um bom presságio para os dias de trabalho de campo que aí vinham.

Paola estudara os grandes carnívoros da Gorongosa e agora é também especialista em biodiversidade e conservação no Parque Nacional de Chimanimani. Apesar de esta área protegida se enquadrar numa região remota e com poucos acessos rodoviários, há comunidades que habitam nos seus limites e o Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural de Moçambique apoia estas comunidades, através do Projecto MozBio, de forma a promover práticas agrícolas que sejam simultaneamente mais lucrativas e com menor impacte.

A conversão do modelo agrícola, baseada em queimadas e no abate da floresta, na rotatividade de culturas que assegure a fertilidade dos solos por tempo indeterminado e nos incentivos à produção de mel, tem tido enorme sucesso na região. Quando confrontada com os desafios à convivência destas comunidades com animais selvagens em geral e superpredadores em particular, Paola Bouley está optimista. Apesar de Chimanimani ter sido território de leões e de mabecos antes da guerra, é improvável, devido à sua dimensão relativamente reduzida, que estes voltem a estabelecer aqui populações numerosas e estáveis. No entanto, a área afigura-se como um corredor vital de ligação entre diferentes populações no Zimbabwe e Moçambique. “Esta realidade e a presença de leopardos ou hienas no Parque é perfeitamente compatível com um modelo de turismo ou com as práticas agrícolas e pecuárias tradicionais desde que se acautelem regras ancestrais como a recolha dos rebanhos durante a noite nos tradicionais redis feitos com troncos espinhosos”, diz. Paola reforça a necessidade de encontrar nas comunidades aliados dos esforços de conservação.

A relação entre os habitantes da periferia e a natureza selvagem do coração do Parque é desafiante, mas, quando Jen Guyton, que assina as fotografias desta reportagem, lá chegou pela primeira vez, viveu uma experiência arrebatadora. À medida que subia em direcção ao monte Binga, verificou que as florestas se rarefaziam e davam lugar a extensas pastagens montanhosas.

Neste lugar selvagem, isolado e perdido no tempo, onde persistem ricas tradições locais e onde ainda se fala de espíritos ancestrais e rituais sagrados, não é difícil um viajante esquecer-se da história conturbada e violenta do país e da região. “Um guia local falou-me de Nhamabombe, uma montanha sagrada onde o fazedor de chuva ainda vai fazer chuva”. conta.

Jen é exploradora da National Geographic e fez o trabalho de campo do seu doutoramento em Ecologia a algumas horas de distância, no Parque Nacional da Gorongosa. Quando o terminou, decidiu enveredar por uma carreira como fotojornalista. Chimanimani foi um dos seus primeiros trabalhos e será sempre especial para ela. A equipa de cientistas que acompanhou nas campanhas de 2018 e 2019 incluía botânicos, entomólogos, ornitólogos, herpetólogos, especialistas em mamíferos e em conservação. Os trabalhos nestes territórios pouco estudados são nas palavras dela “como caças ao tesouro”.

Estes cientistas, cada um com uma especialidade diferente, são soltos na paisagem para desvendar o maior número possível de espécies. Os especialistas em mamíferos, montam armadilhas fotográficas para grandes mamíferos como antílopes, pequenas armadilhas para micromamíferos como roedores e montam redes para morcegos. Os ornitólogos confiam sobretudo no binóculo, nos ouvidos e numa memória invejável para o canto das aves. Os entomólogos agitam as suas redes de borboletas nas pastagens durante o dia e, pela noite dentro, esperam que a sua potente luz branca atraia uma nuvem de insectos, confiando que algo interessante e surpreendente surja. Por comparação os botânicos têm aparentemente uma vida mais fácil, deambulando pela encosta da montanha, enquanto inspeccionam e recolhem belas flores e plantas para os seus herbários.

Em nítido contraste, os herpetólogos não param um segundo. Arremessam elásticos para atordoar temporariamente os lagartos, mergulham na água até aos joelhos atrás de sapos ágeis ou fazem malabarismos com um gancho de cobra e um saco, esforçando-se para não serem mordidos por uma serpente venenosa cuja mordedura seria fatal a tantas horas de distância do socorro médico mais próximo.

No meio desta azáfama, há inevitavelmente pequenos confortos que ficam para trás, confessa Jen Guyton. Sensivelmente a meio da expedição de duas semanas, a equipa mudou o acampamento de Nhabawa, no fundo do vale, para o rio Nyahedzi, a 1.220 metros de altitude. “Quando chegámos ao acampamento superior, percebemos que nos tínhamos esquecido de trazer os talheres do acampamento-base”, confessa com frustração. Entre catorze pessoas, havia apenas uma colher. No entanto, como eram um conjunto de cientistas, decidiram que voltar atrás estava fora de causa. A resposta teria de ser encontrada nas suas competências para resolver problemas criativamente.

Enquanto os mais impacientes mexiam o café com finos galhos de madeira e usavam latas de feijão como canecas, aproveitando as tampas das latas de atum dobradas em forma de colher, a ornitóloga Callie Gesmundo construiu uma colher com um pedaço de pau e um pouco de papel de alumínio e o herpetólogo Mark Rödel decidiu simplesmente usar biscoitos como instrumentos de manuseio. “Os mais refinados entre nós esperavam pacientemente pela sua vez com a única colher verdadeira”, confessa Jen, com uma gargalhada. Apesar dos desafios, a cada refeição, este acampamento a uma altitude mais elevada situava-se muito mais perto do monte Binga onde todos esperavam fazer descobertas importantes.

Foi efectivamente aqui, após um jejum que se prolongava desde a década de 1970, que voltou a ser avistado em Moçambique um bokmakierie, uma ave próxima dos picanços, que tem aqui uma população isolada das congéneres da África do Sul e da Namíbia e cuja filogenia carece de estudo mais aprofundado. A ornitóloga Callie Gesmundo confessou que “a observação destas aves impressionantes pulando pelas encostas íngremes e repletas de pedras do monte Binga foi uma experiência surreal que até hoje poucos puderam testemunhar”. Além desta espécie, os cientistas identificaram mais 260 espécies de aves, 67 de répteis e anfíbios, 43 de mamíferos, 582 de insectos e 475 de plantas algumas das quais novas para a ciência e que engrossaram a já longa lista de 76 espécies endémicas identificadas.

Apesar destes tesouros naturais, o Parque Nacional de Chimanimani não está isento de ameaças. A desflorestação e as alterações climáticas colocam esta área protegida sob ameaça, mas há sinais de esperança de que, em conjunto, os cientistas e as comunidades locais consigam encontrar soluções. Num passeio recente com um chefe local, Paola Bouley detectou pinturas rupestres em que figuram os mabecos que já vaguearam por estas montanhas. As comunidades tradicionais têm uma relação muito profunda com eles e com os leões. “São animais espirituais para as comunidades e, embora sejam raros, os seus rugidos ainda aqui ecoam”, remata Paola como uma nota de esperança para Chimanimani, para o país e talvez até para a humanidade e o planeta.

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