Munido de uma fita métrica e de um bloco de notas, Enric Ballesteros procede ao levantamento dos organismos vivos que habitam um recife saudável nas ilhas. Aquando da sua primeira visita, em 2009, Enric Sala e a sua equipa encontraram estes recifes num estado prístino, com grande profusão de espécies, muitas das quais raras.
Devastados por um episódio de sobreaquecimento em 2016, os recifes de coral protegidos em redor das ilhas Espórades conseguiram recuperar admiravelmente.
Texto e fotografias: Enric Sala
O episódio mais encorajador de renascimento de corais a que o planeta alguma vez assistiu foi agora revelado.
Para compreender como tudo aconteceu, temos de recuar a Abril de 2009. Foi nessa altura que reuni uma equipa de jovens e apaixonados biólogos marinhos para integrarem a nossa primeira expedição às longínquas e desabitadas Espórades Equatoriais, um arquipélago que pertence a Kiribati, na região central do Pacífico. Estas cinco ilhas são os cumes de antigos vulcões que se ergueram acima da superfície do mar há 85 a 70 milhões de anos, formando uma cordilheira submarina que atravessa o equador. Pretendíamos proceder aos primeiros levantamentos da vida marinha em redor das ilhas. Não sabíamos praticamente nada sobre este arquipélago. Levámos mais tempo a lá chegar, de avião e de barco, do que os astronautas do programa Apollo demoraram a chegar à Lua. Nos mapas do oceano, as águas em torno das ilhas eram apenas um azul indistinto. Não fazíamos ideia do que iríamos encontrar abaixo da superfície.
Mais tarde, descobrimos o paraíso: recifes sem vestígios de intervenção humana, com uma próspera floresta de corais povoada por grandes peixes. Os tubarões e outros predadores de topo eram de tal maneira abundantes que a sua biomassa total ultrapassava a das respectivas presas. Em cada mergulho, podíamos observar espécies ameaçadas de extinção. As Espórades modificaram a nossa percepção dos recifes de coral. Alguns cientistas, como eu, não faziam a menor ideia da aparência de um recife intacto.













A abundância de peixe em torno destas ilhas era facilmente explicável: devido ao seu isolamento, cerca de 3.200 quilómetros a sul do Hawai, não havia aqui pescarias. Mas seriam os recifes capazes de resistir também ao aquecimento global?
Em 1997-98, um intenso episódio de El Niño, um evento climático cíclico de aquecimento, provocara a morte maciça de corais em todo o Pacífico. No entanto, em 2009, os corais das Espórades encontravam-se em tão boa forma que acreditámos que seriam capazes de resistir a pressões maiores do aquecimento dos oceanos desde que fossem protegidos de outras agressões humanas.
Informado das nossas conclusões, o governo de Kiribati anunciou planos para proteger as águas territoriais em redor das ilhas numa área definida a 22 quilómetros de distância, proibindo a pesca e outras actividades extractivas. No projecto Mares Prístinos que fundei, rejubilámos. Julgámos que estes recifes ficariam a salvo para sempre. Foi então que ocorreu uma calamidade. Em 2015 e 2016, ocorreu o episódio mais forte de El Niño alguma vez registado no Pacífico. Os corais morrem quando a temperatura do oceano ultrapassa determinado limiar durante um período de tempo excessivo: os cientistas medem a exposição do recife a um perigo destes em graus-semana de aquecimento (DHW, em inglês). Durante o episódio de El Niño de 1997-98, as Espórades suportaram quatro DHW. O evento de 2015-2016 empurrou a contagem de DHW para 15. O salto foi inesperado, surpreendendo mesmo aqueles que tinham plena consciência dos riscos do aquecimento dos oceanos.
Ao longo da zona setentrional da Grande Barreira de Coral, onde os recifes são monitorizados em tempo real, descobrimos que dois terços dos corais tinham morrido. Mas o que sucedera aos recifes das Espórades? Fiquei ansioso por saber, mas tive de esperar porque poucos visitam aquelas paragens e a monitorização foi suspensa.
Em Agosto de 2017, surgiu uma oportunidade incrível. Ted Waitt, membro do conselho de administração do Projecto Mares Prístinos, terminou uma expedição à Polinésia Francesa e disponibilizou-nos o seu navio de investigação durante duas semanas.
Não pude seguir viagem por compromissos já assumidos, mas o meu colega Stuart Sandin, do Instituto Scripps de Oceanografia, mostrou-se disponível. Ele e a sua equipa tinham integrado a nossa expedição de 2009, tendo regressado às Espórades em 2013. Estavam idealmente posicionados para repetirem os levantamentos dos corais, um ano após o evento de aquecimento.
Clique na imagem para ver detalhes.
O panorama que encontraram foi exactamente o que temíamos. Assim que retomou o contacto por Internet, Stuart contou que metade dos corais tinham morrido. O meu coração encolheu-se. No entanto, à medida que me fornecia mais pormenores, as notícias aterradoras transformavam-se em perguntas e, por fim, em possibilidades.
A maior parte dos corais mortos pertencia ao género Pocillopora: apenas uma colónia fora encontrada viva. Embora o género Acropora também tivesse sofrido um duro embate, nenhum outro sofrera tanto: todos tinham sobrevivido a 15 DHW. Isso significava que, pelo menos nas Espórades, todos aqueles corais eram resistentes a aquecimentos acentuados. A pergunta seguinte foi: conseguiriam os Pocillopora e os Acropora recuperar? Revelar-se-iam resistentes?
Em muitas regiões das Caraíbas, quando os corais morrem, os seus esqueletos são rapidamente revestidos por algas castanhas. Porém, nas fotografias captadas por Stuart nas Espórades, os esqueletos dos corais apresentam-se cobertos por algas coralinas incrustantes, que formam uma crosta calcária cor-de-rosa. Quando os corais se reproduzem, as suas larvas deslocam-se à deriva durante dias ou semanas até se depositarem no fundo do mar e formarem uma nova colónia coralífera. Que substrato preferem para se instalarem? Algas coralinas incrustantes. Os corais não crescem em algas castanhas.
Assim sendo, estavam reunidas as condições para que os corais recuperassem nas Espórades. Mas iriam recuperar? Só havia uma maneira de saber. Precisávamos de dar tempo aos recifes e regressar à região para inspeccioná-los.
Por fim, regressámos no ano passado, atrasados por dois anos de pandemia. Após dois dias de navegação para norte de Taiti, o nosso navio, chegou a Flint, a primeira das três ilhas que iríamos visitar. O antigo grupo estava de volta, 12 anos mais velhos, mas com o mesmo entusiasmo. Eu queria saborear aquele momento, como uma refeição extraordinária que se come devagar. Mas também queria aquilo tudo de uma vez só. Vestimos os fatos de mergulho, saltámos para o insuflável e voámos até ao recife.
Em 2009, ia cheio de entusiasmo e adrenalina. Agora sentia-me aterrado. Seria o recife um fantasma? Pus a máscara e mergulhei.
Quando as bolhas desapareceram, não acreditei no que vi. Teria mesmo acontecido algo a este recife? O fundo apresentava-se revestido de corais vivos e esplendorosos, até 30 metros de profundidade. Celebrei, trepei para o insuflável e abracei o meu amigo Manu San Félix, director de fotografia do Projecto Mares Prístinos. Colocámos os tubos de snorkeling e saltámos para a água. Estávamos de volta ao paraíso!
Nas três semanas que passámos a mergulhar nas três ilhas mais a sul das Espórades (Flint, Vostok e atol Caroline), constatámos uma recuperação espectacular dos corais por toda a parte. Os recifes apresentavam-se de novo exuberantes, mas tinham mudado. Aqui e além, os corais Pocillopora mortos em 2015-2016 estavam a recuperar lentamente, crescendo por vezes em cima dos vestígios anteriores, tal como as árvores crescem a partir dos tocos em florestas cortadas. No entanto, a maior parte do espaço aberto pelos corais mortos fora preenchido por outras espécies.
A área da ilha Vostok situada acima da linha de água é tão minúscula que caberia 14 vezes no espaço do Central Park da cidade de Nova Iorque. O recife de coral prolonga-se para o exterior, em redor da ilha, criando uma plataforma pouco profunda do lado de sotavento – que pode ser vista nas fotografias captadas por satélite. Em 2009, essa plataforma estava povoada por corais Pocillopora. Pensámos que iríamos encontrá-la agora maioritariamente revestida com esqueletos de coral, por sua vez cobertos por algas coralinas incrustantes cor-de-rosa.
Quando mergulhámos em Vostok, julguei que o meu cérebro tinha feito curto-circuito. O recife apresentava-se revestido por corais azul-claros que se assemelhavam a rosas gigantes – um jardim formado por Montipora aequituberculata, que se estendia a perder de vista.
Quando observámos mais de perto, descobrimos os Pocillopora mortos, incrustados com algas coralinas, debaixo dos novos corais. Como era possível que os Montipora tivessem coberto todo o recife? Como teriam os Pocillopora mortos dado lugar a rosas prolíferas em apenas cinco anos? Ninguém estivera lá para ver, mas dispúnhamos de uma pista: as colónias de Montipora tinham aproximadamente o mesmo tamanho. Isso sugeria que os corais de outros locais em redor de Vostok tinham-se reproduzido sexualmente e libertado milhões de ovos, que rapidamente formaram uma nuvem maciça de larvas sobre a plataforma do recife. Uma chuva de larvas de Montipora poderia ter caído, instalando-se sobre a crosta cor-de-rosa num só dia – uma única ocorrência que alteraria a paisagem marinha nos anos vindouros. No atol Caroline, a biomassa de peixe multiplicara-se. Várias espécies tinham crescido sobre os corais mortos, nomeadamente os ramificados Acropora. Havia apenas uma notícia triste: as amêijoas-gigantes que antes formavam superfícies multicores em algumas regiões da lagoa estavam mortas. Em 2009, tínhamos contado mais de 35 destes bivalves por metro quadrado nessas zonas; em 2021, três horas de mergulho sobre os recifes da lagoa revelaram a presença de cinco amêijoas vivas. É provável que a temperatura da água do mar em 2015-2016 tivesse sido muito mais elevada dentro da lagoa do que no recife exterior, em redor do atol. Isso criou uma sopa de amêijoas mortal, da qual a espécie poderá nunca recuperar. Apesar de tudo, sentimo-nos impressionados com a recuperação dos corais. Nenhum membro da nossa equipa científica vira algo assim na vida. Segundo cálculos do nosso perito em corais, Eric Brown, na lagoa do Milénio existiam, em média, cerca de 17 a 21 milhões de colónias de coral por quilómetro quadrado. Vimo-nos obrigados a refazer o cálculo várias vezes antes de acreditarmos nele. Serviu para lembrar-nos que os recifes de coral desempenham a tarefa da sua recuperação melhor do que quaisquer intervenções humanas – desde que existam à sua volta corais vivos em quantidade suficiente para repovoar os recifes.
O que aprendemos com esta recuperação? Os corais que conseguiram suportar o episódio de El Niño de 2015-2016 tornaram os recifes mais resilientes. As Espórades estão situadas num dos pontos quentes do aquecimento no oceano Pacífico e os corais deste local parecem adaptados ao calor.
Para que os corais novos consigam crescer sobre os mortos, porém, os esqueletos precisam de encontrar-se revestidos com algas coralinas incrustantes cor-de-rosa em vez de algas carnudas. Que factores criaram estas condições ideais nas Espórades? Pensamos que uma das razões é a extraordinária abundância de peixes herbívoros, como os enormes peixes-papagaio e cardumes de centenas de peixes-cirurgião. Estes animais que pastam, as zebras e os antílopes do recife, engolem cada pedacinho minúsculo de alga suculenta que se atreve a crescer sobre os corais mortos. As algas coralinas incrustantes sobrevivem a este processo de pastagem por possuírem um esqueleto calcário.
Essa observação reforça a conclusão de 2009: a protecção total face à pesca é necessária para um recife recuperar. A protecção total promove a resiliência. Os recifes de coral abrigam mais biodiversidade do que qualquer outro ecossistema oceânico, proporcionam segurança alimentar a milhões de pessoas e protegem as nossas orlas costeiras de tempestades tropicais devastadoras. Se quisermos preservá-los, precisamos de lhes dar espaço. No momento em que o planeta tenta chegar a acordo sobre a forma de reduzir a poluição por carbono, podemos ganhar algum tempo, protegendo os recifes e fomentando a sua força. A diferença entre um recife morto e um superrecife reside no impacte da nossa preocupação.
A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso planeta, financia o explorador residente Enric Sala e o Projecto Mares Prístinos desde 2008. Ilustração de Joe Mckendry