Peles de burros

Em África e em todo o mundo, o burro contribuí para a subsistência de centenas de milhões de pessoas. Fotografia de Markus Mauthe.

A China importa milhões de peles de burro de África para fabrico de remédios tradicionais. No entanto, as peles podem transportar doenças perigosas. Uma amostra recentemente recolhida no Quénia deu resultados positivos para MRSA.

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No Ocidente, os burros tendem a ser associados a quintas pedagógicas e de lazer, mas pelo mundo fora estes animais resistentes contribuem para o sustento de cerca de 500 milhões de pessoas. Em África, sobretudo, onde os burros são altamente valorizados para o transporte de água e mercadorias, algumas pessoas até os consideram “amigos para toda a vida”.

Há cerca de uma década, porém, a crescente procura por peles de burro na China começou a minar esta ligação vital. As peles são usadas para o fabrico de ejiao, um produto medicinal multissecular cuja popularidade nos tempos modernos aumentou após ter aparecido num drama televisivo chinês. Feito de gelatina extraída de peles de burro, o ejiao é actualmente vendido a mulheres como tónico para a circulação, prometendo aumentar a fertilidade, e para tratamento de tonturas e insónia, entre outras maleitas. Não há evidências científicas que comprovem a sua eficácia.

A biologia dos burros faz com que seja impossível criá-los em massa e a indústria recentemente revigorada de ejiao da China consome entre 2,3 e 4,2 milhões de peles por ano. Algumas provêm de um número cada vez menor de burros existente na China, mas a maioria tem origem em África.

Pele de burros

Jesse Christelis, de 27 anos, proprietário da Donkey Dairy Farm, em Magaliesburg, na África do Sul, convive com os seus animais em Junho de 2022. Alguns africanos que dependem dos seus burros para transporte de água e alimentos podem falar sobre eles de forma afetuosa, considerando-os amigos queridos. Fotografia de Marco Longari, AFP via Getty Images

À medida que foram abrindo matadouros em África para fazer face à crescente procura, os vendedores compraram alguns animais, mas o roubo de burros também começou a aumentar loucamente, minando comunidades e famílias que deles dependiam para o seu sustento. Como resposta a isso, alguns países, incluindo o Quénia a Tanzânia e a Nigéria, proibiram a exportação de peles de burro. No entanto, o comércio continua a ser legal na África do Sul, na Mauritânia, no Egipto, na Etiópia e no Botsuana. A apreensão de quase 3.000 peles de burro na Nigéria no passado mês de junho demonstra que o comércio ilegal ainda persiste.

Agora, novas provas indicam que, além de pôr em perigo modos de sustento, esse comércio arrisca a disseminação de doenças zoonóticas de África para a Ásia. Testes genéticos realizados a peles provenientes de um matadouro no Quénia revelaram amostras positivas de peste equina africana e EMRSA, um grupo de bactérias resistentes aos antibióticos, segundo um relatório publicado hoje pelo Donkey Sanctuary, uma organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido que promove o bem-estar dos burros.

“São as primeiras provas concretas de que as peles de burro podem funcionar como um vector para a deslocação de doenças pelo mundo fora”, diz Simon Pope, director de investigações da organização. Essa conclusão não é necessariamente surpreendente, acrescenta, mas foi importante para mostrar que o comércio de peles representa mais do que um risco hipotético para seres humanos e animais.

Pele de burros

Uma pele aguarda curtição num matadouro, em Baringo, no Quénia, um de alguns países de África que proibiram a exportação de peles de burro. Fotografia de Tony Karumba, AFP Getty Images

“O relatório chama a atenção para uma forma de comércio e movimentação internacional que a maioria das pessoas desconhece”, diz Tony Goldberg, epidemiologista da Universidade de Wisconsin-Madison, que não participou nessa investigação. “Torna-se cada vez mais evidente que a globalização não é apenas um problema para as doenças humanas, mas também para as doenças animais.”

Regulamentos nacionais e internacionais sobre o comércio de animais e dos seus produtos existem em parte, para reduzir o risco de transmissão de doenças. No entanto, devido à ausência de uma cadeia de fornecimento bem definida para os burros e à velocidade com que a indústria se desenvolveu, o comércio de peles de burros decorre com pouca regulamentação ou supervisionamento, diz Eric Fèvre, professor de doenças veterinárias infecciosas no International Livestock Research Institute e na Universidade de Liverpool, cujo laboratório em Nairobi realizou as análises genéticas para o relatório. “Saber que estes produtos estão a deslocar-se pelo mundo sem restrições é preocupante”, afirma.

Em África, os burros percorrem frequentemente centenas de quilómetros até aos matadouros, atravessando fronteiras entre países nacionais, independentemente de essas instalações estarem ou não licenciadas. Quando os burros chegam, os controlos veterinários e de biossegurança costumam ser insuficientes para impedir que animais doentes ou feridos sejam abatidos, diz Faith Burden, especialista em doenças infecciosas e directora executiva de operações equinas no Donkey Sanctuary. “O facto de a pele ser a parte mais valiosa da carcaça faz com que haja poucos incentivos para um negociante rejeitar burros doentes feridos ou infectados, uma vez que tal não afecta visualmente o produto a comercializar.”

Um negócio muito arriscado

Em Maio de 2020, mesmo antes de o Quénia encerrar os seus matadouros de burros, o santuário comprou 108 peles ao Star Brilliant Donkey Export Abattoir, em Naivasha, e pediu a Fèvre e aos seus colegas para fazerem testes independentes às peles. Eles deveriam procurar evidências de nove doenças endémicas da região, incluindo antrax, raiva, mormo e gripe equina.

Pele de burros

No Sudão, uma mãe e o seu filho deslocam-se num burro carregado de erva. A procura anual da China por milhões de peles de burro afecta uma linha vital existente em África, sobretudo nas zonas rurais. Fotografia de Markus Mauthe.

Testes realizados a três peles foram positivos para peste equina africana, uma doença especialmente mortífera para os cavalos. Outras 88 peles revelaram-se positivas para Staphylococcus aureus, uma bactéria causadora de doenças comum entre os seres humanos. Metade dessas amostras deram resultados positivos para MRSA, um grupo de estafilococos geneticamente diferentes que desenvolveram resistência aos antibióticos e podem causar problemas difíceis de tratar como infecções dermatológicas e pneumonia. Das 44 amostras de MRSA confirmadas, três pertenciam a uma estirpe altamente virulenta capaz de produzir uma toxina devoradora de carne chamada leucocidina de Panton-Valentine.

Dada a natureza do comércio de burros, estas descobertas “não são minimamente surpreendentes”, diz Ibrahim Ado Shehu, epidemiologista veterinário na Nigéria e representante regional na África Ocidental na Commonwealth Veterinary Association, que não participou na investigação. “O comércio de burros é todo ele um negócio muito arriscado”.

Shehu acrescenta que existe uma forte possibilidade de o comércio poder estar envolvido noutras doenças não detectadas no pequeno conjunto de amostras analisadas para o novo relatório. Num estudo de 2019 sobre o comércio de burros no noroeste da Nigéria, por exemplo, Shehu identificou bactérias que causam as doenças brucelose e leptospirose presentes em burros vivos à espera de serem abatidos para comercialização das suas peles.

Os burros levados para matadouros poderão contagiar outros animais que encontrarem pelo caminho. Em 2019, por exemplo, um surto de gripe equina na Nigéria, junto à fronteira com o Níger, infectou mais de 3.000 cavalos e burros, matando 270 animais. Os especialistas não confirmaram a origem do surto, mas crêem que teve origem no na movimentação ilegal de burros vindos de um país vizinho, segundo a Organização Mundial para a Saúde Animal.

Com base nas novas descobertas do Donkey Santuary, Faith Burden pede que se trave o comércio legal de peles e se reprima o comércio ilegal até a indústria poder ser submetida a “uma revisão completa das origens, do transporte, do abate, do processamento e do envio” para assim aumentar a segurança. Idealmente, porém, ela e os seus colegas prefeririam que a indústria de ejiao parasse de utilizar peles de burro, substituindo-as por colagénio derivado de burro cultivado em laboratório. Até à data, contudo, os responsáveis pela indústria têm resistido a estas sugestões, diz Pope.

Pele de burros

Peles de burro secas ao sol num matadouro licenciado em Baringo, no Quénia, em 2017. A China importa peles para fabrico de um produto popular de medicina tradicional chinesa, mas essas peles podem transmitir doenças como a febre equina e a MRSA. Fotografia de Tony Karumba, SFP via Getty Images

Pope espera educar os consumidores de ejiao sobre a desconexão entre os populares anúncios chineses, que mostram “burros a brincarem em planaltos verdes com riachos cristalinos”, nas suas palavras, e a realidade sombria dos matadouros africanos.

“Eles estão a comprar ejiao como um produto para a saúde, mas a verdade é que não existe qualquer tipo de controlo sobre ele”, afirma. “Não acredito que os consumidores o comprassem se soubessem como está verdadeiramente a ser produzido.”

The National Geographic Society apoia a Wildlife Watch, o nosso projecto de reportagens de investigação dedicado a crimes e exploração de vida selvagem. Descubra mais sobre a missão sem fins lucrativos da National Geographic Society em natgeo.com/impact.

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