Um cruzamento entre um leão macho e um tigre fêmea, chamado ligre, fotografado no Taman Safari em Java Ocidental, na Indonésia. Fotografia de Joel Sartore.
Animais híbridos, que resultam da reprodução cruzada entre animais de linhagens diferentes é comum na natureza e pode revelar alguns dos mistérios da evolução.
Texto: Jason Bittel
No Verão de 2020, cientistas na Pensilvânia avistaram algo que ninguém tinha visto antes: um pássaro que parecia um pardal-do norte, mas cantava como um sanhaço-escarlate.
Após uma análise mais detalhada, determinou-se que o animal era um híbrido, a prole de um evento de acasalamento entre duas espécies separadas.
“Quando o vi, só disse: ‘Oh, meu Deus!’”, recorda Bob Mulvihill, ornitólogo do Aviário Nacional em Pittsburgh. Bob Mulvihill capturou a ave e extraiu uma amostra de sangue para estudar os genes do animal híbrido.
Apesar de alguns híbridos de animais serem bem conhecidos, como a ave mula, este caso foi mais invulgar devido às cores diferentes de cada espécie de ave. Os pardais-do-norte são pretos e brancos e têm uma mancha vermelha no peito, ao passo que os sanhaços-escarlates têm cores negras e laranjas brilhantes.
Estas aves não são propriamente parentes, nem sequer familiares próximas. Bob Mulvihill suspeita que estas espécies podem estar separadas por mais de 10 milhões de anos de evolução divergente.
Antes de 2020, não havia registo científico de um cruzamento entre um pardal-do-norte de peito rosa (na imagem vemos uma destas aves fotografada no Zoo Columbus) e um sanhaço-escarlate. Fotografia de Joel Sartore.
Ainda mais estranho é o facto de estas espécies coexistirem em grande parte das suas áreas de distribuição na América do Norte, levando os investigadores a questionar porque é que ainda ninguém tinha visto evidências deste cruzamento.
“Seria este um caso de Romeu e Julieta?” diz Bob em tom de brincadeira.
Na era moderna do sequenciamento de genes e da análise genética, os animais híbridos têm uma nova relevância e podem ajudar a desvendar os mistérios da evolução.
O que são animais híbridos?
Geneticamente, um animal híbrido é o resultado do cruzamento entre linhagens divergentes, diz Erica Larson, bióloga evolutiva da Universidade de Denver.
A maioria dos não-cientistas compreenderia que isto significa o cruzamento entre duas espécies diferentes, mas também pode incluir subespécies ou até populações dentro de uma espécie que são distintas umas das outras com base em determinados traços ou características.
“Podem reproduzir em épocas diferentes do ano, ou podem ter diferenças comportamentais que as tornam menos propensas para acasalar”, diz Erica Larson. “Contudo, se acasalarem, podem gerar híbridos que são completamente saudáveis.”
Um exemplo disto pode ser a doninha-malhada, que os cientistas dividiram recentemente em sete espécies, algumas das quais parecem quase idênticas e vivem nas mesmas áreas, mas acasalam e dão à luz com meses de diferença.
Os cientistas determinaram recentemente que existem sete espécies distintas de doninhas-malhadas nas Américas, como a doninha-malhada-oriental (na imagem). Fotografia de Joel Sartore.
“Outro grande exemplo é o coral”, diz Erica Larson. “Muitos corais libertam os seus gâmetas num momento muito específico. Portanto, todas estas espécies estão fisicamente no mesmo lugar e podem formar um híbrido”, mas perdem a oportunidade porque desovam com horas ou dias de intervalo.
Porém, em cativeiro ou num laboratório, estes tipos de barreiras naturais são menos um obstáculo para uma hibridização bem-sucedida.
Que animais podem hibridizar?
Um dos exemplos mais conhecidos de hibridização é o chamado ligre, um cruzamento entre um leão macho e um tigre fêmea. Os ligres atingiram o estrelato na cultura pop após uma referência no filme de 2004 Napoleon Dynamite – Um Novo Herói, mas provavelmente há poucas pessoas que ouviram falar sobre o tigreão, fruto do acasalamento entre um tigre macho e uma leoa.
Estes cruzamentos são extremamente improváveis na natureza porque as áreas de distribuição de leões e tigres raramente se sobrepõem. O mesmo acontece com o cama, um cruzamento entre um lama e um camelo, animais que vivem em lados opostos do Oceano Atlântico, que foi criado por investigadores.
Os equídeos são particularmente propensos à hibridização. Os burros e cavalos podem reproduzir para criar mulas, enquanto que as zebras e cavalos criam zebroides ou outras combinações.
Um bebé zebroide, o híbrido entre uma zebra macho e uma égua, numa quinta em Cuchery, França, em 2013. Fotografia de Alain Julien, AFP, Getty Images.
Em 2019, os cientistas provaram pela primeira vez que os narvais por vezes hibridizam com baleias-beluga, resultando numa narluga. Há também pelo menos 20 relatos de várias espécies de golfinhos e baleias que produzem híbridos tanto na natureza como em cativeiro.
E não são apenas os mamíferos. Há também casos documentados de hibridização entre cascavéis-da-madeira e cascavéis-diamante ocidentais, crocodilos cubanos e americanos, esturjão russo e peixe-remo americano, truta-de-garganta e truta-arco-íris, bem como em vários insetos – formigas, abelhas, vespas e térmites. As plantas são particularmente competentes a hibridizar e acredita-se que o fazem em taxas ainda mais elevadas do que os animais.
Uma das espécies híbridas mais populosas do planeta Terra podem ser os humanos da actualidade, que têm sinais genéticos de hibridização com outros hominídeos antigos, como os neandertais e os Denisova.
Os animais híbridos são raros?
Apesar de os animais híbridos parecerem invulgares, é provável que muitos sejam bastante comuns.
Por exemplo, Bob Mulvihill diz que provavelmente não é uma coincidência que a hibridização esteja bem documentada nas aves, onde se sabe que 10% das mais de 10.000 espécies hibridizam. Talvez isto se deva ao número cada vez maior de observadores de aves que tiram fotografias de espécimes interessantes e depois publicam-nas em fóruns, em páginas de associações de aves ou aplicações para telemóvel como a iNaturalist.
“É inquestionável que a hibridização também é bastante conhecida nas borboletas”, diz Bob Mulvihill. No entanto, ao contrário dos observadores de aves, poucos observadores casuais de borboletas conseguem detectar facilmente os sinais de hibridização nos insetos.
Alguns cientistas também acreditam que determinados híbridos podem vir a tornar-se mais comuns no futuro. Por exemplo, à medida que as alterações climáticas reduzem o gelo do mar Ártico, espera-se que os ursos-polares passem mais tempo em terra, onde podem encontrar os ursos-pardos que se estão a expandir para norte. Se acasalarem, podem criar híbridos conhecidos por ursos-grolar.
Os híbridos de ursos-pardos e ursos-polares – chamados ursos-grolares – podem tornar-se mais comuns à medida que as temperaturas sobem e as áreas de distribuição das espécies se sobrepõem. Fotografia de Philippe Clement, Arterra, Universal Images Group, Getty Images.
Animais híbridos é bom ou mau?
Hibridização nem sempre significa uma condenação genética. Mas também pode não produzir espécies mais fortes.
Por exemplo, os ligres têm propensão para os problemas de saúde, podem sofrer de crescimento acelerado e ter problemas cardíacos.
Para além disso, a espécie parental pode ter diferenças genéticas incompatíveis, como números diferentes de cromossomas. Esta é uma das razões pelas quais os híbridos são muitas vezes estéreis, e uma prole não reprodutora pode limitar o sucesso de um pai na expansão da sua diversidade genética.
“Têm menos uma oportunidade para passar os seus genes a uma geração futura”, diz Erica Larson.
A hibridização pode ser problemática se uma ou ambas as espécies parentais estiverem em perigo de extinção. Isto acontece porque, quando a genética de uma espécie se torna rara, a nova combinação genética de um híbrido pode ameaçar a sua existência, substituindo-a. Este processo chama-se submersão genética, e é a razão pela qual a hibridização com coiotes é uma das muitas ameaças actualmente enfrentadas pelos lobos-vermelhos na região sudeste dos Estados Unidos.
Kamilah, um híbrido entre um camelo macho e uma lhama fêmea, o chamado cama, está perto da mãe no Centro de Reprodução de Camelos, no Dubai, em 2002. Fotografia de Reuters, Alamy.
A hibridização, porém, também pode introduzir genes benéficos, como resistência aos pesticidas, diz Erica Larson. Se os genes ajudarem o híbrido a sobreviver e a reproduzir, esses benefícios podem tornar-se abrangentes numa população. Os cientistas chamam a este processo “introgressão adaptativa”.
“Mas creio que, na maioria das vezes, provavelmente não é uma coisa benéfica ou prejudicial”, diz Erica Larson. “Na maioria das vezes, provavelmente não faz nada.”
Com os avanços feitos nas ferramentas genéticas, os cientistas podem agora observar o genoma de um híbrido e identificar facilmente os genes entrelaçados que podem ter originado noutro lugar. E isto significa que todos os híbridos são uma janela para a forma como a evolução cria novas espécies.
“Quando temos duas espécies cujos genomas passaram por uma evolução independente ao longo de centenas de milhares de anos, depois reunimo-los novamente e misturamos os genomas na forma de um híbrido”, acrescenta Erica Larson, “conseguimos compreender o que funciona e o que não funciona”.