indios da amazónia

Texto de Chip Brown  Fotografias de Martin Schoeller

No passado, esta cultura amazónica travou a construção de uma barragem. Agora, os seus chefes enfrentam nova batalha. O seu modo de vida está de novo em risco.

Sentimo-nos tentados a pensar que voltaríamos atrás no tempo, soltando as amarras que nos prendem ao mundo moderno e abraçando a vida tribal num dos derradeiros bastiões da cultura indígena. Os missionários, exploradores, traficantes de escravos, caçadores de peles, seringueiros ou batedores de terras bravias que se aventuraram no Sudeste da bacia do Amazonas viajavam pelos rios, em penosas jornadas de barco. Nós dispúnhamos de um monomotor Cessna e de boas condições meteorológicas naquela manhã de Setembro, perto do fim da estação seca.

A rota do avião atravessou o fumo dos fogos florestais que lavravam em torno da vila fronteiriça de Tucumã. Depois de hora e meia de voo rumo a sul e oeste, cruzámos o curso lamacento e serpenteante do rio Branco e, de súbito, já não existiam incêndios, estradas, pastagens irregularmente talhadas na floresta nem manadas de vacas brancas. Só se avistava a floresta sem trilhos, envolta em neblina. Lá em baixo, ficava a terra dos kayapó: cinco parcelas contíguas de território oficialmente demarcado que, no seu conjunto, correspondem à dimensão aproximada da Islândia.

A Terra Indígena dos Kayapó é uma das maiores áreas protegidas de floresta virgem tropical de todo o mundo e é controlada por nove mil indígenas que ali habitam. A maioria não sabe ler nem escrever e ainda se dedica a um modo de vida maioritariamente de subsistência em 44 aldeias unidas entre si apenas por rios e por trilhos praticamente invisíveis. A nossa equipa dirigia-se a uma das povoações mais isoladas, a aldeia de Kendjam, palavra que significa “pedra erguida” e cujo nome tem origem numa montanha de cor cinzento-escura que nos surge agora diante dos olhos, arqueando-se cerca de 245 metros acima das árvores da floresta, semelhante a uma baleia cujo dorso se eleva sobre o mar. Além da montanha, a pouca distância, avistavam-se as águas brilhantes do rio Iriri, o maior afluente do Xingu, por sua vez um dos maiores afluentes do Amazonas. Depois de aterrar, guinando, sobre uma pista de terra batida, o Cessna correu no meio de pequenas hortas e casas de colmo, dispostas em círculo em torno de uma praça arenosa.

Ao sairmos, fomos rodeados por uma dúzia de crianças vestindo calções ou mesmo nada, refugiando-se à sombra das asas do avião. Os mais novos traziam as orelhas furadas com pedaços de madeira cónicos e grossos. Os kayapó furam os lóbulos das orelhas dos bebés para simbolicamente expandir a capacidade das crianças para compreender a linguagem e a dimensão social da existência: a frase que usam para chamar “estúpido” é ama kre ket, ou seja, “sem buraco na orelha”.

As crianças mantiveram-nos sob estreita vigilância, enquanto descarregávamos a bagagem, na qual se incluíam alguns presentes para os nossos anfitriões: anzóis, tabaco e dez quilogramas de missangas de alta qualidade fabricadas na República Checa.

Barbara Zimmerman, directora do Projecto Kayapó criado pelo Fundo para a Conservação Internacional do Canadá e pelo Fundo para a Defesa Ambiental sediado nos Estados Unidos, apresentou-nos ao cacique da aldeia, Pukatire, um homem de meia-idade de óculos, calções e havaianas. “Akatemai”, disse ele, cumprimentando-nos com um aperto de mão e acrescentando o inglês rudimentar aprendido durante uma viagem à América do Norte: “Hello! How are you?”

Apesar da sua aparência intemporal, Kendjam foi fundada apenas em 1998, quando o cacique Pukatire e os seus seguidores abandonaram a aldeia de Pukanu, junto ao rio Iriri, mais a montante, após um conflito sobre abate de árvores. Os antropólogos chamam “cisão” à maneira frequente de os kayapó resolverem conflitos ou aliviarem a pressão sobre os recursos disponíveis numa determinada zona. A aldeia tem actualmente uma população de 187 habitantes e, não obstante o seu aspecto clássico, existem nela características que confundiriam o espírito dos antepassados de Pukatire: um gerador instalado numa unidade de enfermagem construída pelo Estado, um conjunto de painéis solares rodeado por uma cerca de arame farpado e um dispositivo de comunicação por satélite montado sobre palmeiras truncadas. Algumas famílias possuem televisor na sua casa de colmo e gostam de ver vídeos das suas próprias cerimónias, além de telenovelas brasileiras. Pukatire levou-nos até uma escola com duas salas construída há alguns anos pelo Estado brasileiro. É uma estrutura de betão cor de pistácio, com cobertura forrada a telhas, persianas e a maravilha luxuosa de uma instalação sanitária com descarga de autoclismo, cuja água é fornecida por um poço. Armámos as nossas tendas na varanda.

O calor diurno começou a aumentar e uma paz letárgica desceu sobre a aldeia, interrompida aqui e ali pelo latido dos cães e por galos operáticos ensaiando a alvorada do dia seguinte. Na margem da praça central, ou kapôt,havia mulheres sentadas à sombra das mangueiras e das palmeiras, descascando frutos secos e cozinhando peixe envolto em folhas e enterrado sob brasas. Algumas encaminharam-se para a terra carbonizada por uma queimada onde plantaram as suas hortas, ali cultivando mandioca, banana e batata-doce.

Perto do anoitecer, o calor esmoreceu. Um grupo de jovens guerreiros brigou por causa de uma bola de futebol. Cerca de vinte mulheres com colares de missangas coloridas em volta do pescoço, carregando os seus bebés à anca, reuniram-se no kapôt e começaram a caminhar em roda, em passo marcado, entoando cânticos. Rapazes com fisgas disparavam pedras contra pequenas aves. As famílias desciam pouco a pouco até ao rio Iriri para o seu habitual banho de fim de tarde, mas havia caimões no rio e, por isso, não se demoravam depois do escurecer. Oito graus a sul do equador, o sol cor de laranja avermelhado punha-se rapidamente. Macacos uivadores rugiam sobre o som de toque telefónico das cigarras e aromas da terra revoluteavam no ar da noite.

À primeira vista, Kendjam parece uma espécie de paraíso. E talvez seja. Mas dificilmente se pode afirmar que a história dos kayapó seja um idílio pastoril isento das perseguições e doenças que devastaram praticamente todas as culturas indígenas da América do Norte e do Sul. Em 1900, onze anos após a fundação da República Federativa do Brasil, a população kayapó contaria com cerca de quatro mil indivíduos. À medida que os garimpeiros, os madeireiros, os seringueiros e os fazendeiros se amontoaram junto à fronteira brasileira, as organizações missionárias e organismos governamentais desenvolveram esforços para “pacificar” as culturas indígenas, enleando-as com produtos comerciais como panos, panelas, catanas e machados. O contacto resultava frequentemente no efeito não propositado de introduzir o sarampo e outras doenças para as quais estes indivíduos não se encontravam naturalmente imunes. No final da década de 1970, na sequência da construção da Estrada Transamazónica, a população diminuíra para cerca de 1.300 pessoas.

Embora maltratados, ninguém conseguiu vergá-los. Nas décadas de 1980 e 1990, os kayapó manifestaram-se, conduzidos por uma lendária geração de caciques que mobilizou a sua cultura guerreira para alcançar objectivos políticos. Lideranças como Ropni e Mekaron-Ti organizaram protestos com precisão militar, começaram a exercer pressão política e, como me disse Zimmerman, que trabalha com os kayapó há mais de vinte anos, poderiam mesmo matar se apanhassem alguém a invadir o seu território. Grupos de guerreiros expulsaram fazendeiros e garimpeiros ilegais, dando-lhes por vezes a opção de abandonarem o território índio em duas horas ou serem mortos no próprio local. Os guerreiros assumiram o controlo dos pontos estratégicos de travessia dos rios e patrulharam as fronteiras; fizeram reféns; expulsaram os invasores de volta à cidade, sem roupa.

Na sua luta pelo controlo do território, os caciques aprenderam a língua portuguesa e mobilizaram organizações conservacionistas e celebridades  como o cantor Sting, que viajou ao lado do cacique Ropni (também conhecido como Raoni). Em 1988, os kayapó contribuíram para que os direitos dos indígenas fossem inscritos na nova Constituição Brasileira, assegurando o reconhecimento jurídico do seu território. Em 1989, manifestaram-se contra a concretização do projecto da barragem de Kararaô, no rio Xingu, que teria inundado parcelas do seu território. O plano original, prevendo a construção de seis barragens na bacia hidrográfica, foi abandonado depois de grandes manifestações em que os grupos conservacionistas se aliaram aos kayapó, naquela que hoje é conhecida como Reunião de Altamira. “Durante a manifestação de Altamira, em 1989, os chefes adaptaram de maneira brilhante a sua tradição guerreira ao espectáculo mediático do século XX”, diz o antropólogo Stephan Schwartzman, do Fundo de Defesa Ambiental. “Alteraram os termos do debate.”

A população kayapó encontra-se actualmente em crescimento rápido. Das espingardas aos barcos motorizados de alumínio e às páginas do Facebook, têm dado provas de uma aptidão nata para adoptar as tecnologias e práticas da sociedade materialista dentro das suas fronteiras, sem comprometer o essencial da sua cultura. Com a ajuda de Terence Turner, distinto antropólogo da Universidade de Cornell, aderiram ao uso de câmaras de vídeo para gravar os seus cerimoniais e danças e para registar interacções com funcionários da administração pública. Para desalento de alguns conservacionistas, vários caciques de aldeias celebraram acordos com empresas de mineração de ouro na década de 1980 e, durante a década de 1990, venderam concessões de abate madeireiro de mogno. Haveriam de arrepender--se dessas parcerias, entretanto terminadas.

E sobretudo os kayapó aprenderam a organizar-se e a pôr de lado as suas relações por vezes divisionistas, de forma a cultivarem a unidade de objectivos partilhados. Por consequência, são talvez o mais rico e poderoso dos cerca de 240 povos indígenas que ainda restam no Brasil. Os cerimoniais, os sistemas de parentesco, o idioma gê, os seus conhecimentos da floresta e a noção de que os seres humanos e o mundo natural formam uma unidade contínua mantêm-se intactos. E, possivelmente o mais importante de tudo, têm a sua terra. “Os kayapó não entram no século XXI como um povo derrotado. Não estão a degradar-se”, disse Barbara Zimmerman. “Não perderam a noção de quem são.”

Pelo menos, por agora. O ensino da cultura e das cerimónias rituais não se compara ao apelo hipnótico que os smartphones e a comodidade dos alimentos comprados em lojas exercem sobre as novas gerações. Essa será a razão pela qual pode ser importante a posse de conhecimentos sobre o fabrico de veneno para as pontas das setas ou sobre o atordoamento dos peixes com a trepadeira timbó-de-peixe, que os priva de oxigénio. O interesse pelo vestuário tradicional, pelo artesanato das missangas e pelas práticas dos antepassados ainda permanece forte em Kendjam, mas não é uniforme. E mesmo que o fosse, as ameaças provenientes do exterior são impressionantes.

“O Estado brasileiro está a tentar aprovar legislação onde se determine não ser necessário consultar os povos indígenas quanto ao uso dos seus rios para produção de electricidade ou garimpo ou mesmo quando for preciso reconfigurar as fronteiras das suas terras”, afirmou Adriano “Pingo” Jerozolimski, administrador de uma organização kayapó sem fins lucrativos que representa cerca de 22 aldeias. Em Junho do ano passado, na aldeia de Kokraimoro, quatro centenas de caciques kayapó declararam opor-se a um conjunto de decretos, portarias e propostas de alteração legislativa e constitucional que eliminariam a sua capacidade de controlo sobre a terra e os impediriam, bem como a qualquer outro grupo indígena, de aumentar o seu território. Estas medidas são geralmente consideradas como peças de uma campanha para permitir que os interesses dos garimpeiros, madeireiros e proprietários agrícolas consigam contornar os direitos dos indígenas, hoje incomodamente salvaguardados pela Constituição Brasileira. Entre muitas componentes deste combate político, a mais dura é o esforço destinado a travar um empreendimento que os kayapó pensavam ter derrotado há mais de duas décadas: o projecto Kararaô está de volta, desta feita com um novo nome – o complexo hidroeléctrico Belo Monte.

No nosso segundo dia em Kendjam, descemos o rio Iriri na companhia de dois atiradores kayapó: Okêt, de 25 anos, pai de três filhas e quatro filhos, e Meikâre, de 38 anos, pai de dois rapazes e cinco raparigas. Meikâre ostentava braceletes de missangas e uma pena azul comprida atada a uma bandelete. Partimos em dois barcos a motor que permitem viajar em águas pouco profundas durante a estação seca.

Ao chegarmos a um troço amplo, semelhante a uma baía, Okêt encaminhou o barco para um espaço aberto na margem ocidental do Iriri e desligou o motor. Subimos a terra. Okêt e Meikâre esgueiraram-se floresta adentro com graciosidade, Meikâre de arco e flechas sobre os ombros, Okêt levando uma espingarda. Após cinco minutos em que rastejei e me contorci para passar por entre fetos espinhosos e ramos de árvore, parando constantemente para me desprender das trepadeiras e para me assegurar que não havia surucutingas peçonhentas à espreita debaixo de cada monte de folhas, não tinha ideia de onde ficava leste ou oeste. Não sabia em que direcção se encontrava o rio e não tinha esperança de regressar sozinho ao barco.

Começámos a seguir o rasto de um animal. Meikâre apontou para os excrementos de um caititu, um pequeno porco selvagem, e, de seguida, mesmo junto ao trilho, para uma zona espezinhada onde o caititu dormira. Ele e Okêt começaram a correr à minha frente. Quinze minutos mais tarde, ecoou um tiro, seguido de mais dois.

Quando os alcancei, o caititu jazia sobre uma cama de folhas. Meikâre entreteceu uma liana retirada de um pedaço de casca de árvore e atou as patas do animal. Cortou outro pedaço com a forma de um cinto e amarrou os membros anteriores aos posteriores. Pôs o fardo ao ombro.

Os kayapó que tínhamos deixado para trás ficaram ocupados a pescar. Primeiro, taparam os buracos de fuga de um ninho de ralos descoberto num banco de areia, escavando-o depois e capturando um monte de ralos, posteriormente usados como isco para pescar piranhas. Cortaram as piranhas aos pedaços sobre o remo de uma canoa de mogno e serviram-se deles como isco para tucunarés e piabanhas. Acenderam uma fogueira de paus com isqueiros e cozinharam o almoço em espetos recém-talhados.

A meio da tarde, partimos na direcção de Kendjam, subindo contra as águas fracas da corrente. Meikâre reclinou-se à proa, de costas apoiadas num remo de mogno, pés levantados no ar, mãos entrelaçadas atrás da cabeça, contemplando as águas como um indivíduo que regressa a casa de comboio após um longo dia de trabalho.

Nessa noite, o cacique Pukatire visitou o nosso acampamento, empunhando uma lanterna. 
“Os únicos objectos da cultura branca de que precisamos são chinelos, lanternas e óculos”, disse. Era um homem com um bom sentido de humor relativamente a si mesmo: ninguém adivinharia que dois dos seus filhos tinham morrido de malária, pouco depois da fundação de Kendjam.

 

 

O recenseamento da aldeia regista o nascimento de Pukatire em 1953, apontando os nomes da mulher, da filha, de 38 anos, e dos seus três netos. Diz-nos ter nascido perto da vila de Novo Progresso, a oeste de Kendjam, na época anterior ao contacto. Quando a sua aldeia foi atacada pelos kayapó da aldeia de Baú, a mãe e a irmã mais nova foram mortas: Pukatire e o irmão foram levados para Baú. Pukatire tinha 6 ou 7 anos nesse tempo e só reencontrou o pai aos 12 ou 13. “Ficámos felizes. Chorámos”, contou.

Pukatire aprendeu alguns fundamentos da língua portuguesa com os missionários e foi recrutado para colaborar com o programa de pacificação do Departamento de Protecção do Índio, precursor da Fundação Nacional do Índio, ou FUNAI, o organismo governamental que actualmente representa os interesses do povo indígena do Brasil. “Antes do contacto, combatíamo-nos uns aos outros até à morte e vivíamos com medo”, disse. “Hoje, a situação está sem dúvida muito melhor porque as pessoas não andam a bater na cabeça umas das outras com bastões.”

Pukatire também exprimiu um lamento que ouvi vezes sem conta: “Estou preocupado com os nossos jovens, que imitam os brancos, cortando o cabelo e pondo nas orelhas brincos estúpidos como os que vemos na cidade. Nenhum dos nossos jovens sabe fazer veneno para flecha. Em Brasília, diz-se frequentemente que os kayapó vão perder a sua cultura e que o melhor seria acabar já com ela. Os anciãos precisam de erguer a voz e dizer aos jovens: ‘Não podem usar as coisas do branco. Deixem os brancos ter a sua cultura, nós temos a nossa.’ Se começamos a copiar os brancos em demasia, eles deixarão de ter medo de nós e virão tirar-nos tudo o que temos. Mas enquanto mantivermos as nossas tradições, seremos diferentes, e enquanto formos diferentes, eles terão um bocadinho de medo de nós.”

Era tarde. Pukatire levantou-se e disse boa noite. O dia seguinte seria importante. O chefe kayapó Mekaron-Ti e o grande Ropni, que, décadas antes viajara pelo mundo inteiro para defender a floresta, vinham visitar Kendjam para retomar a batalha contra a barragem que teimava em não morrer.

Após quatro décadas de planos, os mais antigos dos quais datados da época da ditadura militar brasileira, aos quais se somaram estudos, protestos, planos revistos, decisões judiciais, revogações judiciais, bloqueios, apelos internacionais e processos judiciais, começou finalmente em 2011 a construção do projecto Belo Monte, avaliado em mais de dez mil milhões de euros. Este complexo de canais, albufeiras, diques e duas barragens localiza-se aproximadamente quinhentos quilómetros a norte de Kendjam, no Xingu, na região onde o rio descreve uma gigantesca curva chamada Volta Grande. O projecto, com uma capacidade máxima de produção de 11.233 megawatts e com arranque previsto para 2015, dividiu o país. Os seus defensores apoiam--no como forma de fornecer energia eléctrica, ao passo que os ambientalistas o condenaram como catástrofe social, ambiental e financeira.

Em 2005, o Congresso Brasileiro aprovou o relançamento da barragem, fundamentando essa aprovação no facto de a sua energia ser essencial para o país em crescimento rápido. Os kayapó e outros grupos indígenas afectadas pelos planos reuniram-se em Altamira em 2008. Um engenheiro de projecto ao serviço da Eletrobrás, a empresa electroprodutora estatal, foi agredido e sofreu uma “laceração profunda e sangrenta no ombro”, segundo as notícias. Alegando que os estudos de impacte ambiental do projecto eram defeituosos e que os povos indígenas da região não tinham sido adequadamente consultados, o Gabinete da Procuradoria Federal da República Brasileira interpôs várias acções judiciais destinadas a travar o complexo, lançando a discórdia entre os diversos organismos do Estado envolvidos. Os processos subiram ao Supremo Tribunal de Justiça do país, mas as sentenças foram adiadas e a construção do projecto Belo Monte foi autorizada a prosseguir.

Um complexo destes, mesmo que constituído apenas por duas barragens, terá um enorme impacte na bacia do Xingu, devido às estradas e ao fluxo de trabalhadores e migrantes, calculado em 100 mil pessoas. As barragens irão submergir uma área equivalente a pouco menos do que a área da ilha de São Miguel, nos Açores. Segundo as previsões oficiais, 20 mil pessoas serão deslocadas. Segundo previsões independentes, esse número poderá ser duas vezes maior. As barragens vão gerar metano a partir da vegetação submersa em quantidades que rivalizam com as emissões de gases com efeito de estufa produzidas pelas centrais electroprodutoras alimentadas a carvão. O desvio de cerca de 80% do caudal ao longo de um troço de 100 quilómetros do Xingu irá secar zonas dependentes das cheias sazonais do rio, habitadas por espécies em risco de extinção.

“A questão essencial, agora, é o que virá a seguir”, afirma Stephan Schwartzman. “O Estado disse apenas que o projecto Belo Monte será construído, mas a proposta original previa a construção de mais cinco barragens e levantam--se questões sobre se Belo Monte chega por si só para garantir a eficácia de custos ou se, mais tarde, o Estado voltará à carga dizendo que é preciso construir as outras barragens.”

 

Na manhã da chegada dos grandes caciques a Kendjam, duas dezenas de mulheres kayapó, de peito descoberto e vestidas com roupa interior preta e cordões de missangas, realizaram aquilo que parecia ser um ensaio de indumentária, entoando cânticos e marchando em redor do kapôt. Perto das quatro horas da tarde, o som de um avião atraiu a multidão para a pista de aterragem.

Ropni e Mekaron-Ti desembarcaram acompanhados de um terceiro cacique do Sul, de seu nome Yte-i. Ropni é um dos cinco anciãos kayapó que ainda usam o disco no lábio — uma rodela de mogno do tamanho de uma pequena panqueca que alarga o lábio inferior. Empunhava um bastão de guerra de madeira, moldado com a forma de uma espada medieval. Enquanto permanecia de pé, junto ao avião, uma mulher aproximou-se, segurou-lhe a mão e começou a soluçar. Ropni mostrou-se imperturbável. Depois, começou a soluçar também. O pranto angustiado não se devia a uma catástrofe recém-sucedida, mas tratava-se de uma forma de os kayapó fazerem o luto ritual pelos amigos comuns falecidos.

Nessa noite, na casa dos homens, Ropni dirigiu-se aos aldeãos de Kendjam. Rasgava o ar com as mãos e batia com o bastão no solo: “Eu não gosto que os kayapó imitem a cultura branca. Eu não gosto de garimpeiros de ouro. Eu não gosto de madeireiros. Eu não gosto da barragem!”

Um dos objectivos da sua vinda a Kendjam era apurar se os caciques da região oriental do território aceitavam dinheiro da Eletrobrás. Caixotes contendo motores de 25 cavalos para barco novinhos em folha estavam empilhados no alpendre da sede da Associação da Floresta Protegida. A aldeia de Ropni e outras aldeias do Sul tinham recusado terminantemente qualquer verba da Eletrobrás, pois esse dinheiro era uma tentativa de amaciar a oposição dos indígenas ao projecto Belo Monte. O consórcio construtor da barragem investia em poços, hospitais e estradas, pagando a uma dezena de aldeias um subsídio mensal de cerca de 11 mil euros para alimentação e aquisição de produtos, descrito por Stephan Schwartzman como “dinheiro para comprar o silêncio”.

Os primeiros encontros dos kayapó com o papel-moeda brasileiro levaram a que cunhassem a sua eloquente palavra para dinheiro: pe-o caprin, ou “folhas tristes”. As folhas tristes tornaram-se um elemento crescentemente presente na vida dos kayapó, em especial nas aldeias adjacentes à fronteira brasileira. Na aldeia de Turedjam, perto de Tucumã, a poluição causada pelas queimadas e pela criação de gado vacum destruíra os pesqueiros e não era invulgar ver os kayapó a comprar sabão e frango congelado no supermercado.

Durante três noites, Pukatire trouxe Ropni, Mekaron-Ti e Yte-i ao nosso acampamento. Sentavam-se na varanda da escola, acendendo os seus cachimbos, bebendo café e contando histórias, enquanto morcegos-vampiros esvoaçavam através do halo fraco de uma lâmpada fluorescente. “Antigamente, os homens eram homens”, disse Ropni. “Eram criados para serem guerreiros. Não tinham medo de morrer. Não tinham medo de apoiar as suas palavras com actos. Combatiam com arco e flechas contra as espingardas. Muitos índios morreram, mas muitos brancos também. Foi isso que me formou: a tradição guerreira. Nunca tive medo de defender o que acreditava. Nunca me senti humilhado à frente dos brancos. Eles precisam de respeitar-nos, mas nós também. Ainda penso que a tradição guerreira está viva. Os kayapó voltarão a lutar se forem ameaçados, mas eu aconselhei o meu povo a não procurar combates.”

Seis meses mais tarde, 26 chefes kayapó do Leste reuniram-se em Tucumã e assinaram uma carta onde se recusavam a receber mais dinheiro do consórcio construtor da barragem: “Nós, o povo Mebengôkre, decidimos que não queremos um único cêntimo do vosso dinheiro sujo. Não aceitamos Belo Monte nem qualquer outra barragem no Xingu. O nosso rio não tem preço, o peixe que comemos não tem preço e a felicidade dos nossos netos não tem preço. Nunca vamos parar de lutar… O Xingu é o nosso lar e vocês não são bem-vindos aqui.”

 

Não se sabe como mas as notícias espalharam--se. O cara-pálida sem orelhas furadas ia subir a montanha de Kendjam. Eram 2h30 da tarde e, mesmo antes de chegar a meio da pista de aterragem, o nosso grupo de caminhantes já levava atrás de si uma longa fila de miúdos, mais ou menos uns 15, um rancho de rapazes e raparigas adolescentes e pré-adolescentes de rosto pintado, levando água dentro de garrafas velhas de refrigerante, e até um rapazinho enérgico que não poderia ter mais de 4 anos: descalço e sem supervisão de pai ou mãe para assegurar que não se perdesse, nem fosse devorado por um jaguar, envenenado pela mordedura de uma surucutinga, ou picado pelos espinhos existentes em praticamente todas as plantas.

Durante algum tempo, caminhámos em fila indiana, até as crianças nos ultrapassarem a correr, pondo-se em roda de uns arbustos altos: puxaram ramos para o chão e arrancaram as vagens do fruto da inga selvagem.

Passados 45 minutos, o trilho começou a subir. A rocha cinzenta da montanha espreitava lá no alto: fachadas verticais, sem fissuras nem fendas à vista. Do Norte, do Sul e do Oeste, as paredes eram quase impossíveis de escalar, mas a extremidade leste descia floresta adentro. Enquanto trepávamos a encosta, os adolescentes riam-se e tagarelavam, saltando por cima dos troncos e balouçando-se nas lianas. Um trilho estreito ziguezagueava montanha acima e passava sobre uma fenda onde era preciso içarmo-nos com as mãos suadas para cima de um grande pedregulho.

Uma longa rampa conduzia ao cume abobadado. Todos os miúdos estavam sentados sobre o cume, tendo por pano de fundo um céu azul clarinho. Fui atrás deles, ofegante. Lagartos castanho-acinzentados espalhavam-se por todo o lado. E as crianças faziam o mesmo, desafiando temerárias o vazio onde a rocha caía 150 ou 180 metros a pique, talvez mais. Sem corrimãos de protecção. Sem avisos de prevenção. Sem supervisão de adultos. O rapazinho de 4 anos dançava à beira do abismo, rindo-se e exultando como se vivesse o dia mais maravilhoso do ano.

Quando todos começámos a descer, ele correu à frente, e dei comigo a pensar na noite seguinte à partida dos grandes caciques, quando recebemos a visita de um dos nossos guias, Djyti, e eu lhe fiz uma pergunta decisiva. “É possível ser kayapó e não viver na floresta?” Djyti reflectiu um pouco e, de seguida, sacudiu a cabeça e disse que não. Então, como se ponderasse uma coisa completamente impensável, acrescentou: “Continuaria a ser kayapó, mas não teria a sua cultura.”

No passado, alguns antropólogos transformaram a pureza cultural num fetiche, tremendo diante da introdução da tecnologia moderna. Mas as culturas evoluem de forma oportunista, tal como as espécies. Basta lembrar que os índios das grandes planícies da América do Norte capturaram os seus simbólicos cavalos aos espanhóis. As culturas tradicionais fortes dão preferência a si mesmas, realizando as adaptações que entendem necessárias para garantir o seu futuro. Pode-se questionar se um homem vestido com um toucado de penas de papagaio e uma bainha envolvendo o pénis terá, ou não, mais valor do que outro homem com uma T-shirt do Batman e calções de ginástica. Mas quem será capaz de ignorar os conhecimentos que possui das plantas e animais da floresta ou os valores preponderantes da água limpa e do ar não poluído e o tesouro genético e cultural da própria diversidade?

Uma das supremas ironias da Amazónia é que os forasteiros supostamente civilizados, que passaram cinco séculos a evangelizar, a explorar e a exterminar os povos aborígenes, se voltem agora para esses habitantes primitivos e lhes peçam para salvar ecossistemas reconhecidos como fundamentais para a saúde do planeta a fim de defender regiões essenciais de terra não construída dos apetites insaciáveis do mundo desenvolvido.

O meu amigo de 4 anos, do qual nunca cheguei a saber o nome, percorreu a correr todo o itinerário de regresso a casa, enquanto eu caminhava cambaleante até pôr o pé sobre o piso seguro da pista de aterragem. Talvez a mãe o tivesse plantado em frente de um televisor a assistir ao vídeo de uma cerimónia kayapó ou a uma telenovela brasileira. E talvez o dia não fosse para ele tão fabuloso como isso, nada de memoravelmente diferente de qualquer outro dia. Mesmo assim, pareceu-me difícil imaginar que possa existir vida mais perfeita para um miúdo da idade dele do que ser um kayapó livre e desembaraçado, sentindo-se em casa na floresta. Possa ele correr assim durante muito tempo.

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