É muito mais do que um simples parque. É o lugar onde, há mais de 140 anos, os seres humanos começaram a negociar um tratado de paz com a natureza selvagem. Essas negociações ainda decorrem, com urgência crescente, em Yellowstone e em todo o planeta, à medida que o mundo humano se expande e o mundo natural regride. Conseguiremos chegar a um acordo?

Texto de David Quammen

Fotografias e pinturas como esta (o Grande Desfiladeiro de Yellowstone) inspiraram o Congresso dos EUA a criar o parque em 1872. Foi uma medida revolucionária. Fotografia Michael Nichols.

No dia 7 de Agosto de 2015, no Parque Nacional de Yellowstone, um vigilante da natureza encontrou o corpo de um homem junto de um trilho pouco distante de um dos maiores hotéis locais. 

O falecido foi identificado como Lance Crosby, de 63 anos, originário do estado de Montana. Trabalhava sazonalmente como enfermeiro numa clínica médica no parque e fora dado como desaparecido pelos seus colegas nessa manhã.

O inquérito subsequente revelou que Lance Crosby andava a caminhar sozinho no dia anterior, sem repelente anti-ursos, quando deparou com uma fêmea de urso-pardo e duas crias. Depois de matá-lo e comê-lo parcialmente (não necessariamente por esta ordem) e depois de deixar que as crias também se alimentassem, a ursa escondeu os seus restos mortais sob uma pilha de terra e folhas de pinheiro, como os ursos-pardos costumam fazer quando pretendem reivindicar uma peça de carne. Uma vez capturada numa armadilha e associada a Crosby através de testes de DNA, a ursa foi sedada, anestesiada e posteriormente abatida, com base na premissa de que um urso-pardo adulto que consumiu carne humana e escondeu um corpo é demasiado perigoso para ser poupado, mesmo que o encontro fatal não tenha ocorrido por sua culpa. “Estamos muito tristes com esta tragédia. Apresentamos os nossos sentimentos à família e aos amigos da vítima”, comentou o superintendente do Parque Dan Wenk, um homem sensato encarregado de uma tarefa difícil: manter Yellowstone seguro para pessoas e animais selvagens em simultâneo.

Sectores de Yellowstone são mais selvagens agora do que foram no último século. Os ursos-pardos estão a disseminar-se. Este, no Parque Nacional de Grand Teton, espanta corvos de uma carcaça de bisonte,que foi retirada da estrada para separar necrófagos e turistas. Fotografia Charlie Hamilton James.

Os ursos-pardos podem, evidentemente, ser perigosos, mas o perigo que representam deve ser contextualizado. A morte de Lance Crosby foi apenas a sétima provocada por um urso no parque nos últimos cem anos. Nos 144 anos decorridos desde a criação de Yellowstone, morreram no parque mais pessoas por afogamento, queimadura em piscinas termais ou suicídio do que devido a ataques de ursos. Morreram quase tantas pessoas vítimas de relâmpagos. Duas pessoas foram mortas por bisontes.

A verdadeira lição inerente à morte de Lance Crosby, e à morte igualmente lamentável do urso que o matou, é um lembrete para quem facilmente se esquece de uma especificidade: o Parque Nacional de Yellowstone é um lugar bravio, imperfeitamente restrito por limites impostos pelos seres humanos. Está repleto de maravilhas da natureza (animais ferozes, desfiladeiros profundos, quedas de água sonoras, águas escaldantes) magníficas de contemplar, mas temíveis de enfrentar.

A maioria dos visitantes de Yellowstone vê o parque do interior dos seus automóveis, observa-o de um miradouro sobre um rio grandioso, caminha sobre passadiços de madeira montados entre as bacias dos géiseres, como se o parque fosse um diorama. Numa frase, o visitante tradicional permanece seguro e seco. No entanto, caso se desvie duzentos metros da estrada e entre num barranco florestado ou numa estepe coberta de artemísia, é melhor ter consigo – como Lance Crosby não tinha – uma lata de pulverizador repelente anti-ursos. É este o paradoxo de Yellowstone e da maioria dos outros parques nacionais criados desde então: natureza contida e sob gestão, animais selvagens obrigados a seguir regras humanas. Paradoxo da natureza cultivada.

Bisontes enfrentam-se no vale Lamar, em Yellowstone, durante a época de acasalamento. Mais de 4.500 bisontes deambulam em liberdade no parque. São descendentes de poucas dezenas de animais protegidos há mais de um século, que salvaram a espécie da extinção. Fotografia Michael Nichols.

É complicado. E complicando ainda mais a questão, a palavra “Yellowstone” significa mais do que um parque. É também o epónimo de um grande ecossistema: o maior e mais rico complexo maioritariamente composto por paisagem e vida selvagem dos 48 estados contíguos dos Estados Unidos. O Grande Ecossistema de Yellowstone é uma paisagem que abrange igualmente o Parque Nacional de Grand Teton, sectores de florestas nacionais, refúgios de vida selvagem e outros terrenos públicos e privados, compreendendo no total cerca de nove milhões de hectares. Em redor desta vasta área, encontra-se uma zona de transição, onde é mais provável encontrar gado vacum do que veados, mais provável ver máquinas cerealíferas do que ursos-pardos e mais provável ouvir um labrador preto ladrar do que um lobo uivar. Circundando essa zona-tampão, temos os EUA do século XXI: auto-estradas, cidades, parques de estacionamento, centros comerciais, subúrbios intermináveis, campos de golfe, Starbucks.

Haverá esperança de conseguirmos preservar, no meio da América contemporânea, este vestígio da paisagem primordial do nosso continente, amostra genuína da natureza selvagem – um sítio gloriosamente inóspito, cheio de presas e predadores? Pode tal lugar ser compatibilizado com as exigências dos humanos? Só o tempo e as nossas escolhas poderão dizê-lo. Mas se a resposta for positiva, Yellowstone fará parte da resposta.

O parque situa-se sobre uma região denominada pelos geólogos como planalto de Yellowstone, com uma altitude média de 2.400 metros. Bosques densos de pinheiros, pradarias de erva alta e arbustos de artemísia, bem como uma rede de estradas suavemente ondulantes, cobrem esta grande elevação de terreno aparentemente frio e estático. Mas não se deixe enganar.

Há uma razão geológica dramática para a altura do planalto de Yellowstone. Imediatamente por baixo dele, encontra-se um vasto ponto quente vulcânico, um canal aberto no manto e crosta da Terra. Essa torrente termal compreende duas câmaras de magma com rocha parcialmente fundida, uma assente sobre a outra, empurrando a superfície terrestre como uma enorme pústula.

À volta da protuberância, pairam montanhas mais antigas. No planalto propriamente dito, os geólogos descobriram evidências de três enormes caldeiras, cicatrizes deixadas por três formidáveis explosões ocorridas nos últimos 2,1 milhões de anos. Essas explosões e as forças vulcânicas na sua origem levaram a que o ponto quente de Yellowstone fosse classificado como “supervulcão”. Os vulcões normais costumam ocorrer à margem de placas tectónicas; os supervulcões emergem directamente das placas. E a tocha de Yellowstone, enviando calor em erupções poderosas, é provavelmente a maior existente sob qualquer continente da Terra.

Os seres humanos que aqui chegaram eram antepassados distantes dos sheep eater, bannock e outros povos nativos ainda hoje ligados a este local pelas suas tradições. 

Os seres humanos que aqui chegaram eram antepassados distantes dos sheep eater, bannock e outros povos nativos ainda hoje ligados a este local pelas suas tradições. Deslocaram-se sobre o planalto à medida que o seu nomadismo os conduzia em busca de alimento e peles e de uma vida sazonalmente confortável. Seguiram-se as primeiras vagas da invasão euro-americana. Yellowstone não foi disputado e povoado durante essa invasão, ao contrário de outras regiões do Oeste americano, em parte porque a grande altitude do planalto causava invernos particularmente severos. Alguns homens da montanha e caçadores de peles viram um pouco do local e contaram histórias. Muito mais tarde, porém, entre os anos 1869 e 1871, três expedições diferentes de homens brancos, juntamente com alguns militares, visitaram a região e ficaram impressionadas, sobretudo com os géiseres, o desfiladeiro fluvial profundo e as quedas de água.

Um destes homens, ali chegado em 1870, Walter Trumbull, comentou posteriormente que o planalto parecia promissor como pastagem para ovelhas, mas previu: “Quando as quedas de água de Yellowstone e a bacia de géiseres se tornarem de fácil acesso graças à Northern Pacific Railroad, é provável que nenhuma região seja tão popular como estância de veraneio.” Esta popularidade significava dinheiro nas caixas registadoras das empresas que conseguissem uma fracção do negócio, vendendo bilhetes de comboio ou enchendo hotéis.

Na sua primeira migração para o território de Verão no Sudeste de Yellowstone, crias da manada de veados Cody, com 3 semanas de idade, seguem as progenitoras, subindo uma encosta com 1.400 metros de altitude. Algumas horas antes, atravessaram a nado o caudaloso South Fork do rio Shoshone. Fotografia Joe Riis.

 A expedição seguinte, em 1871, foi liderada por Ferdinand V. Hayden, director do Serviço Geológico dos Territórios dos EUA. Este grupo incluía o fotógrafo William Henry Jackson e o pintor Thomas Moran, artistas cujas imagens ajudaram subsequentemente a população da Costa Leste (e, mais crucialmente, a população do Congresso) a ver e imaginar Yellowstone. Foi então que um agente da Northern Pacific sugeriu que os legisladores protegessem a “Grande Bacia dos Géiseres” como parque público. Ferdinand pegou nessa ideia e, juntamente com Nathaniel e outros funcionários da ferroviária, exerceram pressões políticas nesse sentido, conforme delineado numa proposta de lei abrangendo não só as bacias de géiseres, mas também o Grande Desfiladeiro de Yellowstone, as fontes termais Mammoth, o lago Yellowstone, o vale Lamar e outros sectores, compreendendo, no seu conjunto, um rectângulo com quase um milhão de hectares.

No dia 1 de Março de 1872, Ulysses S. Grant, presidente norte-americano, assinou a proposta e fez de Yellowstone o primeiro parque nacional do mundo. Como era comum nessa época, a lei ignorava quaisquer reivindicações dos grupos nativos. Mencionava especificamente um “parque público ou local de lazer para benefício e prazer das pessoas”, querendo implicitamente dizer pessoas não-nativas. Dentro deste parque, era proibida a “destruição desenfreada de peixes e animais de caça”, assim como a exploração comercial dos animais caçados. As fronteiras do parque eram rectilíneas, embora a ecologia não seja. O paradoxo ficara emoldurado.

 Inicialmente, o parque era uma ideia órfã sem qualquer finalidade clara, funcionários ou orçamento. O Congresso pareceu perder o interesse assim que a tinta da assinatura de Grant secou. 

 

O Old Faithful projecta um jacto de vapor e água quente a 56 metros de altura a cada 60 ou 110 minutos. No Verão, o parque de estacionamento das redondezas enche-se e esvazia-se ao mesmo ritmo. “Um dos grandes receios de todos os superintendentes de Yellowstone é que o Old Faithful deixe de jorrar enquanto são superintendentes”, brinca Dan Wenk. Fotografia Michael Nichols.

 Seguiu-se o caos. Caçadores comerciais exerceram descaradamente a sua actividade no local, matando veados, bisontes, carneiros e outros ungulados em quantidades industriais. Segundo um relato, os irmãos Bottler mataram cerca de dois mil veados junto das fontes termais Mammoth no início de 1875, retirando por norma apenas a língua e a pele de cada animal e deixando as carcaças a apodrecer ou entregues aos necrófagos. Esse relato não conta quantos ursos-pardos os Bottler mataram em cima dessas carcaças, por comodidade ou com fins lucrativos, mas a carne de veado seria seguramente um chamariz perigoso para os ursos. Uma pele de veado valia entre seis e oito dólares, uma soma considerável para a época, e um homem poderia matar 25 a 50 veados por dia. Havia hastes espalhadas pelas encostas. 

Os turistas iam e vinham de carroça, sem qualquer supervisão, em pequeno número, mas com um impacte relativamente grande. Alguns vandalizavam cones de géiser, gravando os seus nomes na paisagem, matando um cisne-trombeteiro ou outro animal selvagem por mero capricho.

 

 Em 1886, num gesto de desespero, o governo enviou as suas Forças Armadas para proteger Yellowstone durante um período que viria a durar três décadas, até o Serviço Nacional de Parques ser fundado em 1916, há exactamente 100 anos.


As populações de ungulados diminuíram. Em 1886, num gesto de desespero, o governo enviou as suas Forças Armadas para proteger Yellowstone durante um período que viria a durar três décadas, até o Serviço Nacional de Parques ser fundado em 1916, há exactamente 100 anos.

Contudo, já na época contemporânea, os predadores foram implacavelmente perseguidos em Yellowstone, em virtude de políticas públicas mal concebidas. A ideia de que o parque deveria proteger a vida selvagem além dos géiseres e dos desfiladeiros foi posterior e inicialmente aplicada apenas às criaturas “boas”, os animais de caça cobiçados pelos caçadores, as trutas desejadas pelos pescadores, os herbívoros benignos que os visitantes podiam admirar confortavelmente, como veados, antilocapras e alces, bisontes e carneiros. A perseguição movida aos animais “maus” prosseguiu sem restrições. Os predadores eram alvejados, armadilhados e envenenados desde a década de 1870. Um superintendente do parque até incentivou os caçadores comerciais a capturar e matar centenas de castores, utilizando armadilhas, para que estes não pudessem construir represas e inundar o seu parque. As lontras foram classificadas como predadores e, durante algum tempo, esteve em vigor uma sentença de morte contra as doninhas. O abate de lobos só terminou quando os lobos desapareceram por completo, não apenas de Yellowstone (cerca de 1930) mas de todo o Oeste americano.


Mais de um terço de Yellowstone, incluindo a nascente Grand Prismatic, fica na caldeira de um vulcão gigante, antigo e ainda activo. Um dia entrará novamente em erupção, de forma catastrófica. Segundo os cientistas, as probabilidades de uma ocorrência em breve são extremamente reduzidas. Fotografia Michael Nichols.

Esses abusos, medidas desadequadas e tendências calamitosas foram finalmente travados e até invertidos. No fim do século XX, Yellowstone recuperou. Em 1995 e 1996, cerca de setenta anos depois do último uivo do último lobo do parque, 31 lobos provenientes da região ocidental do Canadá foram libertados em recintos de aclimatação instalados em todo o parque. Os lobos tomaram conta da paisagem, proliferaram, prosperaram no parque e disseminaram-se pela região. Outros 35 lobos foram libertados no centro do Idaho aproximadamente na mesma altura. Vinte anos mais tarde, cerca de quinhentos lobos habitam o Grande Ecossistema de Yellowstone. Outros 1.300 vivem no Norte das montanhas Rochosas. O lobo-cinzento (o nome comum, embora a cor dos indivíduos varie entre manchas pálidas e preto) foi retirado da lista de espécies em perigo nos estados de Idaho e Montana. Os lobos podem agora ser legalmente caçados e capturados em armadilhas. Actualmente, cerca de cem lobos, constituindo dez alcateias, vivem principalmente no Parque Nacional de Yellowstone, onde Doug Smith, director do Projecto do Lobo de Yellowstone, lidera os esforços para monitorizar, gerir e proteger a espécie.

Numa manhã fria de Dezembro, num aeroporto imediatamente a norte do parque, saltei para o interior de um helicóptero juntamente com Doug Smith, para apreciar o projecto em curso. Doug trabalha com lobos há 37 anos e acompanha os de Yellowstone desde a sua reintrodução. Já manipulou mais de quinhentos indivíduos enquanto estes estavam sedados para lhes serem colocadas coleiras transmissoras. Segundos depois de estarmos em segurança a bordo, o helicóptero levantou e depois mergulhou em direcção ao rio Yellowstone, sob o comando de Jim Pope, um piloto especialista em captura de animais selvagens, embora mostre propensão para acrobacias aéreas. Jim estabilizou o helicóptero e depois voltou a subir, rumo a sul, sobrevoando as encostas. Um vento gélido entrou pela nossa bolha dentro enquanto víamos as copas das árvores 50 metros abaixo de nós.

Então, aterrámos suavemente num pedaço de neve limpa atrás da montanha. A equipa de Jim, uma dupla de “assaltantes” cuja tarefa consistia em disparar uma rede usando uma caçadeira, saltar do helicóptero e sedar os animais capturados, já imobilizara dois lobos.

Avistei Dan Stahler, colega de Doug, que examinava os lobos anestesiados com outros dois biólogos. Ajoelhado na neve, Dan já quase acabara de colocar uma coleira no animal maior, um belo macho preto, talvez com 3 anos e uma pequena lesão sobre o olho direito. O outro era uma jovem fêmea cinzento-clara, com a cabeça castanho-avermelhada.

Usando luvas médicas roxas, Dan colheu sangue da pata direita do animal e, de seguida, uma pequena amostra de tecido da orelha direita para análise de DNA. Doug mediu o macho: pata dianteira direita, comprimento do corpo, dente canino superior. Os caninos superiores são os dentes que se mostram mais ameaçadores quando um lobo rosna a um inimigo. Mas Doug chamou a minha atenção para os dentes carniceiros. “Estes são os dentes que cortam”, afirmou. Afiados e fortes, são essenciais para cortar carne e partir osso. 

Doug e a sua equipa foram rápidos. Levantaram o macho com uma faixa para pesá-lo. Recolheram uma amostra fecal e injectaram um microchip entre as suas espáduas. Pesaram e mediram a fêmea. Mediram a temperatura com um termómetro rectal. A temperatura corporal baixara ligeiramente, por isso deitaram-na sobre uma folha de plástico, embrulharam-na em casacos e colocaram aquecedores de mãos químicos na zona das virilhas enquanto concluíam outras tarefas. 

Quando os dados já estavam finalmente recolhidos, Doug convidou-me a ajoelhar-me na neve junto do macho grande e segurar-lhe a cabeça para ser fotografado. Pegando no animal cautelosamente, reparei que o seu pêlo negro era iluminado por extremidades grisalhas e prateadas. A sua língua estava pendurada fora da boca, mole como uma meia. Ele estava zonzo e indefeso de momento, mas era magnífico.

“Veja bem estes olhos”, disse Doug. Bem abertos, eram de um castanho acobreado fulgurante. “Selvagem”, comentou. “É disto que o nosso mundo está a tentar livrar-se. Aqui mesmo, aquele olhar. Nós queremos manter este olhar. É isso que queremos fazer com o Parque de Yellowstone.”

Durante as primeiras décadas após a fundação do parque, os ursos-pardos eram alimentados à mão pelos turistas.

O mesmo é válido para os ursos-pardos de Yellowstone, apesar de todos os esforços humanos no sentido contrário. Durante as primeiras décadas após a fundação do parque, os ursos-pardos eram alimentados à mão pelos turistas e era-lhes permitido comer os desperdícios humanos das lixeiras dos hotéis do parque. A ideia era que se tornariam “domesticados” e, por conseguinte, seriam mais fáceis de observar: um espectáculo de vida selvagem. No entanto, longe de domesticados, continuaram sempre animais selvagens, fortes e bem armados, ciosos da sua solidão e com fêmeas veementemente protectoras das suas crias. A morte de Lance Crosby em Agosto de 2015 é apenas a mais recente recordação desse facto.

São igualmente vorazes – precisam de comer. Em Yellowstone, a dieta do urso-pardo inclui 266 tipos diferentes de animais, plantas e cogumelos, consumidos em enormes quantidades, sobretudo durante o Outono, quando estão a acumular gordura para a hibernação. Alguns dos organismos mais cruciais, como a truta e uma espécie de pinheiro, declinaram ultimamente devido a alterações no ecossistema causadas pelos seres humanos. O urso-pardo é um animal adaptável e deve conseguir adaptar-se à medida que as alterações ocorrerem, insistem os cientistas especializados na matéria.

A alcateia de Mollie nspecciona rastos de urso no vale Pelican, em Yellowstone. Os lobos começaram a ser reintroduzidos no parque em 1995 e estão agora a prosperar, mas os investigadores mantêm-nos sob vigilância apertada. Fotografia Ronan Donovan.

 Kerry Gunther, o homólogo de Doug Smith como biólogo encarregado da gestão dos ursos, falou sobre este tópico numa tarde em que me sentei com ele no campo, observando um sítio que não figura nos mapas turísticos: um riacho fundo e peculiar que os ursos usam, por vezes, como banheira. Andámos toda a manhã a abrir caminho pelo mato para lá chegar e almoçámos num outeiro, conversando sobre aquilo que Kerry vira em 30 anos de estudo dos ursos em Yellowstone. 

Na década de 1980, “todas as fêmeas de urso adultas pareciam essenciais para a população”, disse. Os números eram baixos porque a população de ursos-pardos diminuíra drasticamente na década de 1970, após uma alteração na ênfase da gestão que deixou de considerar os animais selvagens como um espectáculo “domesticado” para prestar mais atenção à ecologia. Um acontecimento-chave por detrás dessa mudança foi o Relatório Leopold, de 1963, um marco na evolução das ideias referentes aos objectivos e políticas de Yellowstone. Esse relatório foi produzido por uma comissão de avaliação encabeçada por A. Starker Leopold. O relatório não era a primeira opinião especializada a sugerir uma abordagem ecológica à gestão dos parques, mas teve importância considerável. Segundo o relatório, as condições em cada parque nacional deveriam ser “mantidas ou, onde necessário, recriadas”, de modo a representarem “uma vinheta da América primitiva”, sublinhando desta forma, mas sem clarificar, o paradoxo do selvagem cultivado. Esse e outros factores – com destaque para a reacção pública às duas mortes humanas causadas por ursos-pardos, aparentemente não relacionadas, mas chocantes pela coincidência de terem acontecido na mesma noite no Parque Nacional de Glacier em Agosto de 1967 – levaram ao encerramento de todas as lixeiras de Yellowstone.

O biólogo Doug Smith vai aplicar uma coleira transmissora a este lobo sedado. Fotografia David Guttenfelder.

 O encerramento súbito dessas mesas de alimentação deixou os ursos esfomeados, atordoados pela privação súbita, confusos e temerários. Arranjaram problemas, sofreram as consequências, a sua taxa reprodutiva diminuiu e a população sofreu uma redução drástica, possivelmente para menos de 140 ursos-pardos em todo o ecossistema. Só no ano de 1971, mais de quarenta ursos-pardos foram mortos em vários conflitos e acidentes, incluindo ursos que tinham sido capturados, marcados e libertados novamente. O urso-pardo de Yellowstone poderia ter-se extinguido completamente se o declínio se tivesse prolongado por uma década. Contudo, foi classificado como espécie ameaçada nos 48 estados contíguos em 1975, ao abrigo da Lei das Espécies Ameaçadas. A caça ao urso-pardo foi proibida, pelo menos enquanto actividade desportiva no Grande Ecossistema de Yellowstone, e o parque adoptou novas políticas para proteger as pessoas dos ursos e vice-versa.

“Passámos muito tempo a gerir ursos individuais, sobretudo fêmeas, trabalhando arduamente para os manter vivos”, disse Kerry, que chegou a Yellowstone em 1983. Isso implicou evitar conflitos entre ursos e seres humanos, implementar medidas práticas como tornar caixotes de lixo e contentores à prova de urso, patrulhar locais de acampamento, formar os visitantes no sentido de não alimentarem intencionalmente os ursos ou deixarem-nos roubar alimentos humanos.
A ideia era manter distância razoável entre seres humanos e ursos e encorajar os ursos a depender de alimentos naturais que começaram a redescobrir após o encerramento das lixeiras.

E resultou. Mais fêmeas sobreviveram, geraram mais crias e “a população recuperou”, concluiu Kerry. O número de ursos-pardos aumentou dentro do parque, bem como a área da sua distribuição. Agora, há ursos em zonas periféricas do ecossistema onde não eram vistos há décadas. Os ursos são difíceis de contar, mas o último censo, apenas para a zona central do ecossistema, aponta para uma população de 717 ursos. No ecossistema inteiro, disse Kerry Gunther, “podemos perfeitamente ter cerca de mil”. Com base nestes valores, na tendência das últimas décadas e na crença partilhada de que o Grande Ecossistema de Yellowstone está agora tão cheio de ursos quanto possível, muitos biólogos estaduais e federais sugerem que chegou a altura de retirar a protecção de que o urso-pardo de Yellowstone goza ao abrigo da Lei das Espécies Ameaçadas…

 Yellowstone é hoje um enorme santuário para animais selvagens. 

 

 

O cadáver de um bisonte que se afogou no rio Yellowstone alimenta uma fêmea alfa (à direita) da alcateia de Mollie e as suas crias de dois anos. O ataque a um bisonte vivo é perigoso: com muito maior frequência, os lobos de Yellowstone escolhem como alvo os veados, que compõem 85% da sua dieta de Inverno. Fotografia Ronan Donovan.

 O lobo regressou. A população de ursos-pardos restabelece-se desde a perigosa regressão da década de 1970. O castor recuperou de um longo declínio. O bisonte, em tempos quase levado à extinção, está agora a salvo em Yellowstone, reproduzindo--se bem e transcendendo as fronteiras do parque. Foram feitos esforços para proteger os cruciais corredores de migração do antilocapra americano. Os veados são abundantes, mas não em número tão excessivo como foram nas décadas em que viveram livres da predação dos lobos. Segundo estes indicadores, Yellowstone é um refúgio de vida selvagem magnificamente eficaz.

Tudo no interior está interligado. O lobo, por exemplo, está ligado ao urso-pardo através da sua competição por presas unguladas, sobretudo crias de veado e veados adultos enfraquecidos pelo Inverno ou pelos rigores da época de acasalamento, que ocorre durante o Outono. 

O pinheiro está associado ao besouro-do-pinheiro, que mata a árvore e explode em surtos populacionais relacionados com as alterações climáticas. Os bisontes estão ligados às políticas públicas reguladoras do gado vacum devido a uma doença, a brucelose, provavelmente trazida por vacas para os EUA e que levou o estado de Montana a permitir o abate de bisontes de Yellowstone que migrassem para fora das fronteiras do parque.

Estas interligações sublinham o facto de o ecossistema de Yellowstone (como qualquer outro ecossistema) resultar de uma combinação de criaturas vivas.

Estas interligações sublinham o facto de o ecossistema de Yellowstone (como qualquer outro ecossistema) resultar de uma combinação de criaturas vivas, relações, factores físicos, circunstâncias geológicas, acidentes históricos e processos biológicos. As mudanças que fazem ricochete nestas redes de ligações, entre animais e plantas, predadores e presas, um nível da cadeia alimentar a outro, são alvo de interesse e de discórdia entre os cientistas que estudam a vida selvagem e a vegetação de Yellowstone. Os pormenores assumiram uma complexidade quase talmúdica, mas o que devemos ter em mente é que as perturbações têm efeitos secundários, geralmente imprevistos, e que por vezes esses efeitos são irreversíveis.
A devolução dos lobos a Yellowstone, por exemplo, não corrige necessariamente todos os problemas causados pela sua remoção de Yellowstone. 

O Grande Ecossistema de Yellowstone é tema de muitas discussões, em parte por abarcar tantas expectativas diferentes governadas por interesses diferentes. Da disputa, ressalta uma verdade importante: as pessoas que ali vivem, trabalham, caçam, pescam e passeiam não são os únicos detentores de interesses legítimos. Este sítio pertence ao país e ao mundo. 

No Inverno, Yellowstone pode ser difícil para os animais de pasto. Para encontrarem erva, os bisontes utilizam por vezes as suas enormes cabeças para revolverem a neve funda. Junto do rio Firehole, na bacia de Upper Geyser, a neve derrete mais depressa e há rebentos verdes a crescer no solo quente durante todo o ano. Fotografia Michael Nichols.

 O Parque Nacional de Yellowstone recebeu mais de quatro milhões de visitantes em 2015; o Parque Nacional de Grand Teton recebeu mais de três milhões; e depois de terem posto o pé nestes lugares, os visitantes sentem-se envolvidos. Nas palavras proferidas em Julho passado pelo superintendente de Grand Teton, David Vela, a um grupo de alunos de ascendência latina que passava uma semana no parque no âmbito de um programa de desenvolvimento juvenil: “Este parque nacional é vosso. Faz parte do vosso legado como americanos.”

Entretanto, nós, os donos do Parque Nacional de Yellowstone, com a responsabilidade de guardiões em nome da legião mundial de apaixonados por Yellowstone, enfrentamos desafios muito especiais. Todos os parques precisam de mais financiamento, tendo em conta o trabalho impossível que fazem. Apenas uma fracção dos seus fundos de exploração e melhoramento provém do governo central, enquanto iniciativas essenciais como o Projecto do Lobo de Yellowstone são apoiadas por capital privado, através de organizações de “amigos” como a Fundação Parque Yellowstone. Os parques precisam de apoio político para decisões difíceis, como a que poderá ocorrer quando a entrada de veículos particulares for proibida devido ao excesso de afluência.

 

O bisonte é um animal sagrado na cultura dos povos nativos americanos. Em Fort Hall, Leo Teton posa junto de um poste enfeitado com crânios de bisonte. Os animais foram abatidos junto de Yellowstone, em caçadas que exprimem a ligação espiritual com o animal e confirmam direitos há muito consagrados pelos tratados.  Fotografia Erika Larsen.

 Os problemas mais urgentes dos animais selvagens, com destaque para os ursos-pardos, bisontes e lobos, requerem soluções participativas e não guerras constantes. As pessoas fervorosamente dedicadas à causa precisam de reconhecer que a intransigência ética não é uma estratégia, é apenas uma atitude que os satisfaz. Os membros das várias agências da Comissão Coordenadora do Grande Yellowstone, um organismo federal responsável pela supervisão de terras federais no ecossistema de Yellowstone, têm de integrar grupos privados entre os seus parceiros e tomar decisões arrojadas que transcendam a política local. As alterações climáticas parecem estar a prejudicar Yellowstone — através das amplitudes térmicas, ciclos dos insectos, secas e sabe-se lá mais o quê – e todos precisamos de esforçar-nos mais para corrigir isso.

É verdade: falar é fácil. Mas se queremos que o urso-pardo de Yellowstone se adapte, mude o seu comportamento e lide com novas realidades, não deveríamos nós fazer o mesmo? 

Uma armadilha fotográfica captou um urso-pardo (em cima) a tentar apanhar um fruto numa macieira. Os ursos são visitantes frequentes em pomares como este, junto da fronteira setentrional de Yellowstone. Fotografia Michael Nichols com Ronan Donovan e Serviço Nacional de Parques.

Fotografia David Guttenferlder.

Em 2013, Nic Patrick foi atacado por um urso-pardo no seu rancho, mas não guarda rancores: a progenitora estava a proteger as suas crias.

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