Cerca de mil matsigenka vivem no parque nacional, junto das margens do rio Manu e dos seus afluentes. Cultivam a terra e caçam na floresta, mas apenas para subsistência. Os macacos-aranha são presas favoritas, mas também são mascotes. 

O Parque Nacional de Manu é uma maravilha natural. Por enquanto, está protegido pelo isolamento e pelos caçadores indígenas que vivem na sua floresta tropical. Por enquanto…

Texto: Emma Marris
Fotografias: Charlie Hamilton James

Elias Machipango Shuverireni pega no seu grande arco de madeira de palmeira e nas suas flechas de bambu de ponta afiada. Vamos caçar macacos no Parque Nacional de Manu, no Peru, uma enorme extensão de floresta tropical protegida e um dos parques com maior biodiversidade do mundo.

A caça é legal. Elias pertence ao grupo indígena matsigenka, com menos de mil efectivos no parque. Os sobreviventes residem sobretudo ao longo das margens do rio Manu e dos seus afluentes. Todos os habitantes nativos do parque (incluindo as tribos ditas incontactáveis e também os matsigenka) têm o direito de colher plantas e caçar animais para consumo próprio, mas não podem vender os recursos do parque sem autorização especial, nem podem caçar com armas de fogo. Elias e a sua mulher cultivam iuca, algodão e outras culturas numa pequena clareira junto do rio Yomibato. Os filhos colhem frutos e plantas medicinais. Elias pesca e abate árvores. E caça, especialmente macacos-aranha e macacos-barrigudos— dois dos alimentos preferidos dos matsigenka. Ambas são espécies ameaçadas. 

Assim se passam as coisas há muito tempo, mas os matsigenka estão a aumentar de número, o que preocupa alguns biólogos que adoram o parque. E se a sua população duplicar? E se começarem a usar armas? Conseguirá a população de macacos sobreviver? E sem essas espécies, que dispersam as sementes das árvores de fruto enquanto petiscam pela selva fora, como mudará a floresta?

À medida que, fora do parque, a floresta se torna cada vez mais fragmentada pela extracção de gás natural, pela exploração mineira e pelo abate madeireiro, a protecção do parque torna-se mais decisiva.

À medida que, fora do parque, a floresta se torna cada vez mais fragmentada pela extracção de gás natural, pela exploração mineira e pelo abate madeireiro, a protecção do parque torna-se mais decisiva. E torna-se legítima a pergunta: os habitantes humanos fazem-lhe bem ou mal? E será que o parque lhes faz bem a elas?

De cabelo preto encaracolado e olhar intenso, Elias tem 53 anos. Veste uma camisola de futebol verde, calções e sandálias feitas a partir de pneus velhos. O seu lar é uma clareira com vários edifícios sem paredes mas com telhados de colmo. Num dia abafado de Novembro do ano passado, caminhámos selva adentro, acompanhados pelo seu genro Martin, a sua filha Thalia e uma neta adolescente. Thalia leva uma bolsa tecida à mão a tiracolo para colher plantas. Comigo vai Glenn Shepard, um antropólogo que passou trinta anos a trabalhar e a viver entre os matsigenka.

Passados cinco minutos na selva, ouvimos chamamentos de macacos. Os caçadores não abrandam: estes primeiros símios são meros alvos para os adolescentes treinarem a pontaria. Volvidos mais cinco minutos, ouvimos um grupo de macacos-capuchinhos. Elias deixa-os seguir caminho. Está à espera de algo mais pochini, ou seja, delicioso. 

Penhascos de argila formam uma camada natural de sal que atrai vários animais, incluindo estas araras-vermelhas. Mais de mil espécies de aves (10% do total mundial) vivem no interior do parque e em seu redor.

Começamos a examinar árvores de fruto e não tardamos a descobrir várias com frutos recentemente caídos. Andaram por aqui macacos, mas já se foram embora. Passa mais uma hora. Finalmente, o rosto de Thalia ilumina-se. Ocheto, diz num murmúrio. Macacos-aranha.

Agora já os vemos, saltando velozmente entre as copas repletas de animais, 20 a 30 metros acima das nossas cabeças. A caçada já começou e eu tropeço em raízes, arranco lianas, escorrego na lama e calco espinhos e teias de aranha enquanto me mantenho atento a serpentes. Elias e a família são mais graciosos, mas esta selva é difícil até para eles. A caça de animais no solo já é suficientemente difícil. Para capturar um macaco-aranha, um caçador tem primeiro de acompanhar o seu movimento e depois disparar para uma altura superior à de um edifício de seis pisos, na direcção de um alvo em movimento errático.

O caçador dispõe de vários medicamentos naturais para aumentar as suas probabilidades. Cerca de um dia antes da caçada, costuma ingerir ayahuasca, uma potente mistura psicoactiva que o faz vomitar. Supostamente, a substância purga-o de influências espirituais nocivas e põe-no em contacto com os espíritos que controlam as suas presas. Para melhorar a pontaria, pode espremer um pouco do sumo desta planta para os olhos. Durante a caçada propriamente dita, ele pode mastigar um pouco de Cyperus articulatus, ou piripíri, que contém um fungo psicoactivo que reforça a capacidade de concentração. Glenn, que já experimentou, chama-lhe ritalina da selva.

Elias salta à nossa frente, apanha o passo de uma fêmea, aponta e dispara uma flecha. Falha. Os macacos debandam. Se trouxesse uma caçadeira, o macaco estaria morto.

Não têm armas, não têm estradas, não podem comprar nem vender: mesmo existindo pessoas em Manu, tudo parece muito distante.

Não têm armas, não têm estradas, não podem comprar nem vender: mesmo existindo pessoas em Manu, tudo parece muito distante. O caminho mais popular de acesso ao parque implica uma viagem de automóvel de dez horas pelos Andes, numa estrada de pôr os cabelos em pé, seguida de cinco horas em embarcação a motor pelo rio Alto Madre de Dios até à sua confluência com o rio Manu. 

A entrada principal do parque fica aqui perto, mas, para visitarmos a aldeia de Elias e outras (que aliás exigem autorização do governo peruano), eu e Glenn tivemos de andar muitos mais dias de canoa a motor, subindo o Manu e os seus afluentes. O isolamento protegeu o parque de madeireiros e mineiros, mas também dos turistas. O número de visitantes anuais não excede poucos milhares.

Com 17.163 quilómetros quadrados, o parque abrange toda a bacia hidrográfica do rio Manu, desde pradarias de altitude a quase quatro mil metros, no flanco oriental dos Andes, descendo através da floresta nublada revestida a musgo até chegar à floresta tropical das terras baixas na região mais ocidental da bacia do Amazonas. É uma paisagem sumptuosa, extravagante e arrebatadora, frequentada por tapires e bandos de araras escarlate e sulcada por serpentes. Noventa e duas espécies de morcegos dominam o céu nocturno, 14 espécies de primatas balouçam entre as árvores, perseguidos por harpias com dois metros de envergadura de asa. Há borboletas por todo o lado. E em todas as superfícies, verticais e horizontais, há formigas. 

Duas mulheres da tribo “não-contactada” machco-piro observam o barco do fotógrafo no rio Alto Madre de Dios. Um século depois de os seus antepassados terem provavelmente fugido para a floresta para evitar a escravização pelos barões da borracha, um pequeno grupo começou a aparecer na margem do rio. 

Há mil espécies de árvores de todos os tamanhos, muitas das quais interligadas por trepadeiras grossas. As figueiras têm maior importância ecológica. Uma vez que dão fruto durante todo o ano, sustentam muitos animais ao longo da estação seca. “Já vi cem macacos numa única árvore”, afirma John Terborgh, ecologista da Universidade de Duke. “Em noites de luar, se tiverem fome, acordam às 2 da manhã e estão lá às 4 horas.” John e os seus colegas assumiram o controlo da Estação Biológica de Cocha Cashu pouco depois da criação do parque em 1973. A zona de investigação abrange menos de 1% do parque, mas inclui setenta espécies de mamíferos não-voadores e mais de quinhentas espécies de aves.

“Manu é um dos poucos locais dos trópicos onde temos a oportunidade de conviver com a biodiversidade e estudá-la em todo o seu esplendor”, afirma Kent Redford, ecologista da empresa Archipelago Consulting. “É um local extraordinariamente florescente e onde se sente um impacte humano relativamente pequeno.”

No entanto, apesar de toda a exuberância, Manu não é um paraíso intacto. Existe aqui muita história.

No entanto, apesar de toda a exuberância, Manu não é um paraíso intacto. Existe aqui muita história. Diversas tribos, exprimindo-se em múltiplos idiomas, viveram ao longo das margens do rio Manu, num período tão densamente povoado que uma tribo lhe chamava Rio das Casas. Nem os incas, nem posteriormente os conquistadores espanhóis, conseguiram subjugar as tribos instaladas. As relações comerciais com os incas ligaram os povos indígenas à região em seu redor. E as doenças espanholas, que mataram um número incalculável de pessoas, começaram a ligar a região ao mundo exterior.

Na década de 1890, este mundo foi novamente virado do avesso. A borracha para o fabrico de pneus vendia-se a preços exorbitantes. Os barões da borracha contrataram indígenas da Amazónia para colher a seiva das árvores e também para atacar outras tribos e obter mão-de-obra escrava. Um barão ambicioso, Carlos Fermín Fitzcarrald, instigou mais de mil pessoas a transportar um barco, peça a peça, sobre o istmo que separa o rio da zona superior do Michahua. A sua chegada abriu a bacia do Manu à extracção de borracha.

 

Um tamarim domesticado agarra-se com força a Yoina Mameria Nontsotega enquanto a rapariga matsigenka mergulha no rio Yomibato, nas profundezas do Parque Nacional de Manu.

Usando os piro como sodados, Fitzcarrald tentou escravizar as tribos instaladas ao longo do Manu. Centenas de pessoas morreram ao tentar resistir-lhe: diz-se que as águas do rio ficaram vermelhas. Outra tribo, os toyeri, foi quase exterminada. Alguns machco-piro morreram e pensa-se que outros terão fugido para a floresta. 

Os seus descendentes fizeram recentemente notícia ao emergirem da selva em busca de contacto.

Em resumo: a geografia política de Manu não é primeva nem isolada. Há mais de um século que é afectada pelas forças de uma economia globalizada, na qual a inovação tecnológica e as exigências do consumo de uma parte do mundo moldam e frequentemente lesam as vidas daqueles que vivem junto de recursos naturais preciosos.

Terminado o crescimento explosivo da borracha, a maioria dos piro (hoje frequentemente denominados yine, devido ao seu idioma) mudou-se para jusante do rio Manu, vindo a criar aldeias como Boca Manu e Diamante, no rio Alto Madre de Dios. Os matsigenka vieram preencher esse vazio. Vindos do Oeste e do Sul, ocuparam primeiro as terras isoladas junto da nascente e depois a frente ribeirinha desocupada do Manu, depois de escolas missionárias serem ali fundadas na década de 1960.

Os matsigenka têm agora escolas e também clínicas médicas e telefones públicos de satélite em comunidades como Tayakome e Yomibato.

Os matsigenka têm agora escolas e também clínicas médicas e telefones públicos de satélite em comunidades como Tayakome e Yomibato.

 A organização sem fins lucrativos Rainforest Flow construiu recentemente estruturas de saneamento básico e tratamento de águas residuais que fornecem água potável a quase todos os agregados familiares. Os habitantes destes povoados dispersos caçam, colhem e cultivam os seus próprios alimentos, mas também ouvem música pop peruana, usam imitações de crocs e T-shirts com expressões como “Palm Beach”. Os matsigenka que vivem junto da nascente ainda vestem roupas tecidas à mão e não usam dinheiro nem utensílios metálicos. Com o tempo, têm chegado gradualmente às aldeias ribeirinhas em busca de machados e cuidados médicos.

O Alto Madre de Dios corre ao longo da fronteira meridional do Parque de Manu. Para entrarem no parque, os visitantes costumam fazer uma viagem de cinco horas em canoa a motor, prosseguindo depois pelo rio Manu até à região a montante.

 Os machco-piro são ainda mais isolados. Desde a época da borracha que se mantêm virados sobre si mesmos, caçando e colhendo alimentos nas profundezas da floresta. Mas é provável que tenham muita noção do mundo exterior e, nos últimos cinco anos, membros de um grupo começaram a aparecer nas praias do rio Alto Madre de Dios, nas imediações do parque, acenando aos barcos e pedindo comida. 

Os turistas e os habitantes locais fazem oferendas por vezes com resultados trágicos. Em 2011, alguns machco-piro mataram Nicolas “Shaco” Flores, um homem matsigenka que lhes dava comida e utensílios há anos. Em 2015, mataram um jovem na aldeia de Shipetiari. 

Madeireiros abatem árvores de madeira macia imediatamente a sul do Parque de Manu. Madeiras duras valiosas com o mogno já foram abatidas ilegalmente ao longo de estradas e rios nas proximidades. No entanto, o parque propriamente dito tem sido protegido pelos vigilantes e pela sua inacessibilidade.

 Romel Ponciano é um de vários yine oriundos de aldeias como Diamante que trabalham para o Ministério Peruano da Cultura, tentando estabelecer relações amigáveis com os seus parentes isolados. Ele e outros estão instalados num posto no Alto Madre de Dios, na margem oposta do local onde tem aparecido frequentemente um grupo de machco-piro.

Os primeiros contactos de Romel com o grupo isolado foram tensos. Eles pediram-lhe que disparasse uma flecha e despisse as suas roupas. Examinaram-lhe os olhos e a boca, cheiraram-lhe o sovaco, apalparam-lhe os testículos – tudo para descobrir se ele era mesmo um irmão. Romel afeiçoou-se a eles entretanto e recebeu a alcunha de Yotlu, que significa “pequena lontra do rio”. Mesmo assim, nunca lhes vira as costas. “Talvez daqui a cinco ou dez anos eles andem por aí como nós”, afirma. “Ainda terão as suas flechas para caçar, mas não para matar. Eles matam porque sentem medo.”

Os médicos que examinaram os machco-piro dizem que, até à data, o isolamento os manteve mais saudáveis do que os povos indígenas instalados em aldeias, que se debatem com infecções respiratórias e bactérias dentárias transmitidas por estrangeiros – que podem deixá-los com tosse e sem dentes. No entanto, o isolamento dos machco-piro também significa que têm poucas ou nenhumas imunidades, por isso doenças virais como o sarampo e a febre-amarela podem matá-los facilmente.

A lontra-gigante cresce até atingir 1,8 metros de comprimento e consome até 3,5 quilogramas de peixe por dia. Outrora comum em lagos e rios da América do Sul, vivendo em famílias divertidas e ruidosas, encontra-se actualmente em perigo na maioria das regiões. A sua população em Manu aumentou desde que a caça comercial foi proibida em 1973.

 Ao completarmos uma curva no rio a caminho de Nomole, vislumbro figuras em movimento na margem distante. Têm uma fogueira acesa que liberta fumo branco. Para nossa segurança e deles, para os proteger de doenças, não tentamos estabelecer contacto.

Sob o amplo céu azul, rodeados de uma selva aparentemente interminável, é fácil imaginar que estamos a ver pessoas intocadas pela civilização, vivendo num estado de felicidade primitiva. Tenho de me recordar que eles representam refugiados de um certo genocídio. São a quinta e a sexta geração descendente dos povos traumatizados pelo sucesso da borracha, vivendo como caçadores-recolectores em terras anteriormente cultivadas pelos seus antepassados: não são, de todo, imunes ao contacto. Foram amplamente contactados na década de 1890.

 

Uma armadilha fotográfica captou este ocelote num passeio nocturno. Os ocelotes podem pesar 15 quilogramas e caçam roedores, lagartos, preguiças e também… as galinhas do caçador e agricultor Elias Machipango Shuverireni. Apesar disso, Elias admira a beleza do felino.

 Ao devastador crescimento explosivo da cultura borracheira seguiu-se fenómeno idêntico noutros recursos: madeira, ouro, gás natural. Todas estas riquezas foram arrancadas à floresta por autóctones mal pagos. Apesar de existir algum abate madeireiro ilegal de pequena escala no interior, Manu permanece uma excepção verde nesta paisagem de extracção.

Nas imediações exteriores da fronteira noroeste do parque, gasodutos transportam a sua carga desde os ricos campos de Camisea, que produzem até 34 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia e contribuem muito para a economia peruana. A exploração recentemente iniciada a sudeste poderá motivar o Peru a construir um gasoduto de ligação aos campos de Camisea, atravessando o parque. 

Embora com pontos de actuação dispersos, os vigilantes do parque de Manu actuam como dissuasores para madeireiros, mineiros e caçadores de pequena escala, mas a maioria dos observadores concorda que o isolamento de Manu tem sido a sua melhor defesa.

Embora com pontos de actuação dispersos, os vigilantes do parque de Manu actuam como dissuasores para madeireiros, mineiros e caçadores de pequena escala, mas a maioria dos observadores concorda que o isolamento de Manu tem sido a sua melhor defesa. “O parque está protegido pela sua inacessibilidade, explica Ron Swaisgood, director científico de Cocha Cashu. Agora, “a mineração de ouro e a exploração de gás começaram a corroer as zonas-tampão. Algumas destas degradações podem contaminar o parque.”

A construção de uma estrada aceleraria consideravelmente essa contaminação e o governador da região de Madre de Dios, Luis Otsuka, está a promover uma que se estenderia para além do Alto Madre de Dios até Boca Manu. Os turistas, os madeireiros e os mineiros já não teriam de recorrer a embarcações caras e sorvedoras de combustível para lá chegarem. A aldeia de Diamante localiza-se junto da estrada proposta.
Os seus moradores anseiam por ela, de tal forma que estão a desenvolver esforços para promover a sua construção.

Numa visita de estudo organizada pela sua escola, crianças matsigenka comem peixe capturado através de um método tradicional: raízes de barbasco moídas até formarem uma pasta e depois postas a rodopiar nas águas do rio. As raízes libertam rotenona, uma toxina que atordoa os peixes, mas não as pessoas que os comem.

Quando chegamos à cidade, no regresso da nossa viagem pelo parque, ela parece deserta. Casas pintadas de cores garridas amontoam-se ao longo do rio. Cobertores de malha polar com imagens de tigres e pavões secam ao sol. O silêncio é interrompido apenas por algumas crianças e galinhas e porcos deambulando à solta.

Encontramos uma loja aberta e bebemos uma cerveja, a primeira bebida fresca que ingerimos em várias semanas. À medida que o dia avança, os homens começam a regressar à aldeia, segurando catanas e com as costas molhadas pelo suor. Entre eles encontra-se o líder da aldeia, Edgar Morales. Diz-nos que os homens têm andado a abrir caminho para os topógrafos do governo, para que eles possam recolher os dados necessários para a aprovação da estrada. 

Os habitantes de Diamante, explica, cultivam muitas bananas e transportam-nas de barco para as venderem na aldeia vizinha de Boca Manu. No entanto, sabem que conseguiriam melhores preços em Cuzco e costumam sentir-se roubados. “Os nossos filhos que vão cortar madeira não recebem nada”, afirma Edgar. “Há boas planícies por aqui, com terra argilosa e escura. Podemos cultivar banana-da-terra, papaia, ananás e iuca para vender em Cuzco. Em breve, haverá aqui viaturas. Já nos avisaram que virá gente má para nos tirar as terras, mas temos oitocentas pessoas aqui. Conseguimos defender-nos.”

O Ministério Peruano do Ambiente, responsável pela gestão do parque, opõe-se à estrada, assim como a maioria dos moradores indígenas da região, segundo o director do parque John Florez.

O Ministério Peruano do Ambiente, responsável pela gestão do parque, opõe-se à estrada, assim como a maioria dos moradores indígenas da região, segundo o director do parque John Florez. “São os colonos que a exigem”, explica. “Diamante é a única comunidade nativa que está a pedi-la.”

Mauro Metaki, homem amável, educado numa missão e professor primário em Tayakome, opõe-se à estrada e sente-se frustrado com algumas pessoas da sua comunidade. “O governador regional está a mentir”, afirma. “São tolos por acreditarem nele. Ele está a entusiasmá-los, dizendo que a estrada vai beneficiá-los. Será ele e os amigos brancos dele que beneficiarão, pois levarão daqui a madeira, os animais e o ouro. Não vai sobrar nada para os matsigenka.”

Para os matsigenka que vivem na aldeia de Yomibato, o rio com o mesmo nome é uma fonte essencial de alimento e transporte. É também aqui que os alunos da escola da aldeia têm as suas aulas de natação diárias e brincam nos intervalos.

Há muitos anos que o ecologista John Terborgh manifesta a esperança de os matsigenka deixarem o parque — voluntariamente, sublinha — para bem da vida selvagem e das suas próprias oportunidades económicas. “Se acho que deveria haver povoados permanentes dentro de parques nacionais?” pergunta. “Não”, responde ele.

Com efeito, alguns jovens matsigenka começam agora a partir, ou pelo menos vão e voltam: o ensino secundário é limitado no interior do parque. Samuel Shumarapague Mameria, antigo presidente de Yomibato, diz que os rapazes que partiram regressaram mudados. “Quando cá estão, põem ervas nos olhos e comem piripíri”, diz. “Quando descem o rio, comem arroz e cebolas e esquecem-se da caça. Ficam com as cabeças cheias de livros e conhecimento.” Do mesmo modo, “quando as raparigas descem o rio, regressam demasiado preguiçosas para fiar algodão. As suas almas só pensam em ler e escrever. Têm o corpo e a alma cheios de papel.”

Há quem desça o rio para nunca mais voltar, aceitando empregos na indústria madeireira ou noutras profissões.

Há quem desça o rio para nunca mais voltar, aceitando empregos na indústria madeireira ou noutras profissões. “Vemos homens jovens partirem em busca de trabalho, abandonando mulher e filhos, e criando novas famílias no exterior”, relata o biólogo Rob Williams. A maioria dos matsigenka com quem falo gostaria que houvesse escolas com condições dentro do parque e que os seus filhos lá ficassem.

A imagem de Manu construída pelos matsigenka, à semelhança da imagem que têm da natureza, inclui-os a eles próprios. Enquanto John Terborgh e outros biólogos vêm de uma cultura que separa os seres humanos da natureza, os matsigenka consideram-se parte da ordem natural. Caçam macacos, tal como os jaguares. Os animais e plantas mais importantes têm espíritos e poderes, assim como as pessoas, e não existe uma fronteira concreta entre eles. Em Yomibato, contaram-me, de forma bastante convicta, a história sobre um velhote simpático que se transformava em jaguar e começava a matar galinhas e cães.
O jaguar acabou por ser morto com uma flecha no coração e queimado para que o seu espírito não regressasse.

Os matsigenka e outros povos indígenas do parque não são apenas caçadores: são guardas armados de facto. Se todas as pessoas que vivem dentro de Manu partissem em busca de educação e trabalho remunerado, outras viriam ocupar o seu lugar e provavelmente estariam menos dispostas a seguirem as regras vigentes contra o uso de armas e extracção comercial de recursos. 

Actualmente, os matsigenka funcionam como um sistema de alerta avançado. Com as suas casas dispostas ao longo dos principais rios do parque, reparariam se madeireiros ou mineiros ou cultivadores de cocaína tentassem penetrar no seu interior e as suas flechas mortíferas seriam, juntamente com as dos machco-piro, dissuasores imediatos. 

Alain Nonchopopo Chogotaro Asuso fabrica os seus próprios arcos e flechas. Por enquanto, ele e outros caçadores matsigenka respeitam a proibição do uso de armas de fogo imposta pelo parque.

 No entender de Glenn Shepard, as actividades de caça dos matsigenka não são muito prejudiciais, desde que não usem armas de fogo. Ele e os seus colegas pediram a dezenas de caçadores que tomassem nota das suas caçadas: animais mortos, animais perdidos e distância percorrida para os encontrar. Concluíram que os matsigenka caçam cinco espécies em número suficiente para reduzir a sua população – macacos-aranha e macacos-barrigudos, queixadas, e duas aves, o matum e o jacu-de-spix.

Também descobriram que, mesmo que a população dos matsigenka cresça rapidamente nos próximos 50 anos, só 10% do parque ficará desprovido de macacos-aranha, mas a estimativa muda se os caçadores adquirirem armas de fogo. Com elas, poderiam rapidamente dizimar os macacos da floresta num raio de um ou dois dias de caminhada em redor das suas aldeias. Se os matsigenka cumpriram as proibições de uso de armas de fogo no parque, talvez seja por compreenderem que as armas poderiam ser uma vantagem de curto prazo, na melhor das hipóteses.

Andamos a caçar há cinco horas e Elias e a sua família ainda observam o topo das árvores em busca de macacos. Caminhando sobre uma cumeeira, deparamo-nos com um objecto misterioso e fedorento, uma pilha de folhas verdes encharcadas num líquido escuro e coberta de moscas. Martin, o genro de Elias, explica que os jaguares comem folhas e vomitam--nas, expurgando-se, “tal como nós fazemos, para serem melhores caçadores”. Elias aponta para uma mancha húmida de urina de jaguar ali perto. “Essa urina é recente”, afirma.

De súbito, a selva irrompe numa explosão de gritos altos e urgentes. Um bando oculto de macacos-barrigudos, a poucos metros de nós, num ponto mais baixo da cumeeira, está a emitir o seu alarme contra jaguares.

De súbito, a selva irrompe numa explosão de gritos altos e urgentes. Um bando oculto de macacos-barrigudos, a poucos metros de nós, num ponto mais baixo da cumeeira, está a emitir o seu alarme contra jaguares. O felino anda por perto. Sinto-me paralisada e percorrida por uma vaga de adrenalina. Elias senta-se calmamente num tronco e mete a mão no seu saco de rede. Tira algumas raízes de piripíri e mastiga-as.

Devidamente medicado, mergulha na vegetação densa. Faz tenção de abater um macaco-barrigudo e também um jaguar, se conseguir. Os jaguares não se limitam a competir com os matsigenka pelos macacos: também matam crianças.

Um instante depois, começa a chover. A água cai do céu com a ferocidade de uma mangueira de alta pressão. O som dos nossos movimentos é agora completamente abafado pela cacofonia de um milhão de folhas brilhantes fustigadas pelas gotas da chuva e corremos, deixando a cumeeira exposta para nos abrigarmos sob as árvores. Passados poucos minutos, Elias aparece, sorrindo, de mãos a abanar, vencido pela tempestade.

De regresso a casa, não traz carne de macaco para dar à mulher, mas há um macaco-aranha bebé a aquecer-se junto da fogueira. Os matsigenka adoram domesticar animais da floresta. Quando conseguem matar um macaco-aranha, é frequentemente uma fêmea retardada por crias pequenas e eles trazem os órfãos para casa. Quando os macacos crescem, são devolvidos à floresta. Esta cria está encharcada até aos ossos, como todos nós. Juntamo-nos a ele na fogueira. O fumo eleva-se, acima das papaeiras, e flutua através de Yomibato, floresta adentro. 

 

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