Dois aventureiros lançaram-se numa caminhada de 1.050 quilómetros pelo Grande Canyon. Enfrentaram perigos e adversidades e viram em primeira mão como o desenvolvimento poderá arruinar um dos locais mais adorados dos EUA.
Texto Kevin Fedarko Fotografia Pete McBride
Num trecho da região central do Grande Canyon, o sector mais profundo da garganta interior é composto por uma rocha formada há cerca de 1.700 milhões de anos. “Deixem-no como está”, implorou Teddy Roosevelt durante uma visita ao Grande Canyon em 1903. “Não vão conseguir melhorá-lo. A eternidade criou-o e o homem só pode estragá-lo.”
Se escorregas aqui, vais cair no abismo”, grita Rich Rudow. Este não é um local para baixar a guarda. Estamos num penhasco 1.050 metros acima do rio Colorado, na extremidade da mesa Great Thumb, uma formação espectacular que se projecta da Orla Sul do Grande Canyon. Quem se aventura até tão longe não tem como chegar lá abaixo, sem equipamento de escalada e é preciso gerir mantimentos pensando sempre na caminhada de oito dias de regresso pelo mesmo caminho. Por isso, a maioria segue em frente.









Logo a seguir, a saliência ao longo da qual caminhamos nos últimos dias desaparece numa reentrância profunda na parede do desfiladeiro. Este local é conhecido como Olhos de Coruja devido a dois enormes buracos ovais existentes no penhasco. Além das agoirentas órbitas oculares desta caveira rochosa, os Olhos de Coruja contam uma história trágica. Quase quatro anos antes, num dia soalheiro de Fevereiro, uma jovem e bela mulher, amiga de Rich, caiu quando atravessava a passagem, precipitando-se para a morte.
Isto não era o que imagináramos no início da aventura, quando projectámos uma caminhada de uma ponta à outra do Grande Canyon.
Estamos agora no mesmo terreno e em condições bastante piores. Uma tempestade abatera-se sobre nós na noite anterior, cobrindo o desfiladeiro com 23 centímetros de neve. Isto não era o que imagináramos no início da aventura, quando projectámos uma caminhada de uma ponta à outra do Grande Canyon.
Como desígnio, não revela grande sanidade mental. Não há sequer um trilho que atravesse a totalidade das orlas Norte ou Sul. A forma mais eficiente de percorrer o desfiladeiro é flutuando pelo rio Colorado, que serpenteia pelo desfiladeiro ao longo de 433 quilómetros. Foi por esta razão que John Wesley Powell, líder da primeira travessia documentada do desfiladeiro, a fez de barco.
Após o feito de Powell no Verão de 1869, passar--se-ia mais de um século até à primeira travessia a pé de que há conhecimento. Nesse intervalo, o desfiladeiro passou de reserva florestal a monumento nacional, até assumir finalmente a sua posição como jóia da coroa do Sistema Nacional de Parques e tornando-se, possivelmente, a mais reconhecida e adorada paisagem dos EUA. Transformou-se em destino de férias para centenas de milhões de famílias e a sua imagem foi captada em inúmeras fotografias. Contudo, ninguém descobriu como atravessá-lo a pé até um guia de passeios fluviais de 25 anos chamado Kenton Grua concluir a sua caminhada no Inverno de 1976.
Kenton nunca divulgou o seu feito, mas, à medida que a notícia lentamente se espalhava, surgiu um novo desafio para uma minúscula comunidade de viajantes radicais, de mochila às costas, entre os quais um engenheiro electrotécnico chamado Rich Rudow. No Outono de 2015, Rich já completara centenas de caminhadas e explorações de ravinas estreitas no desfiladeiro e sentia-se pronto para enfrentar o seu maior desafio: uma caminhada de 57 dias, de leste para oeste, atravessando o lado norte do desfiladeiro.
À data em que Rich e dois companheiros estavam preparados para partir, quase 40 anos após a travessia completa de Kenton Grua, apenas 24 pessoas se tinham aproximado do seu feito, ligando uma cadeia de trilhos separados no sentido do comprimento do desfiladeiro, num trajecto conhecido como travessia “seccional” completa. O número de caminhantes que realizaram uma travessia “contínua” completa numa só tentativa era ainda mais pequeno. Até 2015 mais pessoas tinham posto o pé na Lua (12) do que completado uma travessia contínua do Grande Canyon (8).
Quando o fotógrafo Pete McBride soube dos planos, contactou Rich e perguntou-lhe se poderíamos juntar-nos ao seu grupo. Eu e Pete tínhamos muitos anos de experiência na descida do desfiladeiro de barco, mas estávamos lamentavelmente mal preparados para o que nos aguardava. A única explicação para a anuência de Rich é ele ter-se sentido influenciado pela nossa principal motivação para fazê-lo: averiguar os relatos inquietantes que ouvíramos sobre o futuro do desfiladeiro, que incluíam novos empreendimentos turísticos, maior número de voos de helicóptero e a exploração de uma mina de urânio.
Desde que ocupou o seu lugar no imaginário dos norte-americanos, o Grande Canyon tem provocado sobretudo duas reacções: o ímpeto de protegê-lo e a tentação de fazê-lo render pilhas de dinheiro. Nos anos que se seguiram à expedição de Powell, mineiros acorreram ao desfiladeiro para reclamar concessões de extracção de cobre, zinco, prata e amianto. Na década de 1950, uma companhia mineira tentou enriquecer construindo uma linha de teleférico gigante para retirar guano de morcego de uma gruta e vendê-lo a cultivadores de rosas. Não durou muito. Houve até um plano governamental para construir duas centrais hidroeléctricas enormes no centro do desfiladeiro, um projecto que teria transformado grandes secções do rio Colorado numa série de reservatórios.
Mathieu Brown (à esquerda), Kelly McGrath (ao centro) e o autor avançam pela Rota Walter Powell até à Orla Sul.
A bem-sucedida campanha lançada para travar estas represas, liderada pelo Sierra Club na década de 1960, criou a ideia de que o Grande Canyon é inviolável. No entanto, eu e Pete ouvimos uma série de novas propostas, muitas das quais apresentadas por empresários inteligentes com negócios instalados nas imediações do desfiladeiro, em zonas não controladas pelo Serviço Nacional de Parques, mas pelo Serviço Florestal ou por uma das cinco tribos nativas americanas cujas reservas com estatuto federal se situam junto do desfiladeiro. As ameaças surgiam de todos os pontos cardeais: empreendimentos turísticos colossais, viagens de helicóptero ilimitadas e mineração de urânio preparavam-se para arruinar um dos melhores parques do mundo.
Eu e Pete achámos que a melhor maneira de compreendermos o que estava verdadeiramente em jogo era seguir o exemplo de Kenton Grua e atravessar o coração do desfiladeiro a pé.
“Amigo, estás bem?”, murmura Pete, abanando-me suavemente. Estamos em finais de Setembro. O Sol está prestes a pôr-se no nosso primeiro dia de caminhada e eu encontro-me estendido sobre o estreito pedaço de terra onde deveremos passar a noite. O desfiladeiro surpreende aqueles que o desafiam com terrenos inclementes desde o ponto de partida. Acrescente-se a isso mochilas com 23 quilogramas e uma vaga de calor de início de Outono que elevou as temperaturas a 43ºC.
Na manhã seguinte, Pete sentia-se ainda pior do que eu. Tinha cãibras tão intensas que, quando tirou a camisa, parecia que um rato se enfiara na sua barriga e corria, dos ombros para o estômago, em voltas sucessivas sob a sua pele.
Ao sexto dia, reconhecemos que aquilo era demasiado para nós e fomo-nos embora, deixando Rich e os companheiros seguirem viagem. No caminho de regresso, Pete estava delirante e desorientado e, quando chegámos a Flagstaff, foi-lhe diagnosticada hiponatremia, um desequilíbrio de sais e minerais provocado pelo calor que, não tratado, pode provocar a morte.
Em finais de Outubro, intimidados, mas não derrotados, descemos novamente o desfiladeiro, agora muito mais fresco, e retomámos a viagem no ponto onde desistíramos três semanas antes. Nos dias seguintes, percorremos um trilho disposto ao longo de um vertiginoso conjunto de saliências calcárias quase trezentos metros acima do rio.
O projecto Escalade Tramway seria construído na zona ocidental das terras navajo. Os seus apoiantes dizem que trará receitas turísticas a uma reserva empobrecida.
Um padrão diário emergiu: todas as manhãs enchíamo-nos de papas de aveia e depois partíamos num trajecto de 19 a 23 quilómetros. Isto acontecia até o Sol começar a pôr-se, instante em que, maltratados, arranhados e moídos, devorávamos um jantar reidratado e deitávamo-nos a admirar o céu nocturno enquanto ouvíamos as palavras de Edward Abbey num audiobook que Pete descarregara para o telemóvel.
O livro chamava-se “Desert Solitaire” e era a homenagem de Abbey à terra dos parques-irmãos do Grande Canyon: Canyonlands e Arches. Pedi frequentemente a Pete que voltasse a reproduzir a parte em que Abbey avisa os leitores para não saltarem para dentro dos carros no mês de Junho seguinte e correrem até lá, na esperança de verem algumas das maravilhas que ele tenta evocar: Em primeiro lugar, não se vê nada dentro de um carro; é preciso sair da geringonça e caminhar, ou melhor, rastejar, de gatas, pelo arenito e através dos arbustos espinhosos e dos cactos. Quando rastos de sangue começarem a marcar o seu caminho, talvez veja qualquer coisa. Talvez. Mas provavelmente não.
Esforçava-me sempre por manter-me acordado para o parágrafo seguinte:
Em segundo lugar, a maioria das coisas sobre as quais escrevo neste livro já desapareceram ou estão a desaparecer rapidamente. Isto não é um guia de viagem, mas uma elegia. Um memorial. Isto que tem nas mãos é uma lápide.
Aquelas palavras, escritas por Abbey em 1967, notabilizavam-se por uma presciência inquietante. Com efeito, a paisagem bravia dos Arches que, em tempos, o maravilhara está agora tão esgotada pelo elevado número de visitantes que a entrada no parque teve de ser intermitentemente interdita no fim-de-semana comemorativo do Memorial Day no ano passado. Como eu e Pete estávamos prestes a descobrir, alterações parecidas com as forças das palavras de Abbey estão a acontecer no interior do Grande Canyon.
Cem quilómetros de rio a jusante de Lees Ferry, as águas do rio Colorado encontram-se com as do seu principal afluente no desfiladeiro, um rio conhecido como Little Colorado, cujas águas assumem frequentemente um tom azul-turquesa vivo. O ponto onde os dois rios se juntam, chamado Confluência, tem um significado espiritual profundo para muitos nativos americanos cujas terras ancestrais se situam no desfiladeiro, incluindo os havasupai, os zuni, os hopi e os navajo.
Na manhã de 2 de Novembro, emergimos na margem norte do rio e remámos até ao outro lado para iniciarmos uma árdua subida de 1.050 metros através de uma série de íngremes recortes nos penhascos que acabariam por nos conduzir a uma zona isolada da orla oriental do desfiladeiro e à fronteira ocidental da Reserva Navajo.
Escolhemos esta rota por ser paralela ao caminho ao longo do qual um grupo de desenvolvimento de Scottsdale planeia construir o teleférico Escalade. Gôndolas com capacidade para oito pessoas transportariam turistas desde a orla até perto do rio, onde os construtores planeiam um centro comercial com vista para a Confluência.
Nunca existiu um projecto de desenvolvimento como este no desfiladeiro. A força motriz por detrás deste projecto é o consultor político R. Lamar Whitmer, que convenceu um grupo de políticos navajo de que o empreendimento proporcionaria receitas muito necessárias à tribo. A oposição inclui ambientalistas, bem como praticamente todas as tribos da região, incluindo um grupo de navajos. Este grupo autodenomina-se Salvem a Confluência. Quando um dos seus membros, Renae Yellowhorse, soube que eu e Pete íamos sair do desfiladeiro num sítio com vista para a Confluência, telefonou a um amigo e pediu-lhe que a conduzisse até 66 quilómetros da sua casa para partilhar uma panela de guisado tradicional de borrego e conversar um pouco connosco.
Segundo Renae, na reserva pululavam agora boatos de que Whitmer e os seus aliados estavam a reunir investidores para financiar o projecto multimilionário enquanto, ao mesmo tempo, forjavam novas alianças com os membros do Parlamento Navajo, na esperança de contornarem o presidente navajo Russell Begaye, um destacado opositor do projecto. “Quando os meus netos cá vierem, quero que vejam este sítio da mesma maneira que os meus antepassados o viram. Não queremos desenvolvimento nesta área, não queremos uma Disneylândia à beira do desfiladeiro”, declarou esta mulher de determinação feroz.
O explorador Rich Rudow (à esquerda) e o autor jantam junto de uma nascente no desfiladeiro Olo, uma das ramificações do Grande Canyon. Oásis semelhantes correm o risco de ser danificados por projectos de desenvolvimento junto do parque que poderão diminuir ou contaminar o aquífero que sustenta a vida na Orla Sul.
O amigo que conduzira Renae Yellowhorse ao nosso encontro, um homem chamado Roger Clark, conseguiu contextualizar a afirmação. Director de programa do Grande Canyon Trust, um grupo de conservação que passou 30 anos a enfrentar as ameaças contra o desfiladeiro, Roger está preocupado com o plano do teleférico. Mas está ainda mais preocupado com o facto de este projecto fazer parte de um conjunto de ameaças mais vasto que representa um ataque sem precedentes à integridade do desfiladeiro.
Outra questão que o atormenta, bem como a muitos outros ambientalistas, é Tusayan, uma vila a três quilómetros da entrada principal do parque, na Orla Sul. Um consórcio de investidores quer transformá-la numa estância turística, potencialmente com milhares de casas novas e mais de dez mil metros quadrados de espaços comerciais, incluindo hotéis de luxo e um spa.
Tudo isto vai exigir quantidades enormes de água. Os empreendedores, liderados por uma empresa italiana chamada Stilo, argumentam que estão a pensar nas formas de trazer a água até ao local, incluindo por comboio ou construindo um aqueduto até ao rio Colorado. Mas também têm o direito de abrir poços na superfície da região árida da Orla Sul para aceder a um aquífero que alimenta várias nascentes e exsurgências das profundezas do Grande Canyon. Estas bolsas minúsculas onde a água irrompe através de fendas na rocha exposta compõem menos de 0,01% da área de superfície do desfiladeiro, mas cada pequeno oásis suporta uma rede complexa de fauna e flora.
Os biólogos temem que qualquer perturbação destas nascentes repercutir-se-á no bioma de todo o desfiladeiro.
Os biólogos temem que qualquer perturbação destas nascentes repercutir-se-á no bioma de todo o desfiladeiro.
O Serviço Florestal dos EUA não tardou a recusar a análise de um pedido de serventia de acesso feito por Tusayan, essencial para o avanço do projecto. Contudo, os apoiantes da vila já superaram muitos obstáculos e, se encontrarem forma de vencer esta última dificuldade, o caminho ficará praticamente desimpedido.
Tusayan não é a única ameaça sobre os aquíferos da região. Dez quilómetros a sudeste da vila, uma empresa chamada Energy Fuels reabriu uma mina após uma dura batalha em tribunal contra grupos ambientalistas e a tribo havasupai e começará em breve a extrair minério de urânio. Um porta-voz da empresa rejeitou a possibilidade de algum acidente de grandes proporções. Segundo dados dos Serviços Geológicos dos EUA, 15 nascentes e cinco poços na região do Grande Canyon contêm níveis elevados de urânio, sendo considerados não-potáveis, parcialmente devido a incidentes ocorridos em minas mais antigas, onde a erosão e problemas de contenção permitiram a infiltração de urânio nos lençóis freáticos.
Entretanto, um trecho de 35 quilómetros do corredor fluvial situado no fundo da extremidade ocidental do desfiladeiro foi aberto a tráfego aéreo ilimitado pela tribo hualapai, cuja reserva faz fronteira com a margem sul do rio Colorado. Graças a um pedido de alteração de uma regra da Administração Federal de Aviação requerida pelos hualapai, a tribo pode agora operar diversos voos de helicóptero sem restrições. Estes voos estão repletos de pessoas que vêm apreciar a paisagem e voam abaixo da orla do desfiladeiro desde o nascer ao pôr do Sol. O ruído que produzem é de tal forma intenso e contínuo que a zona é localmente conhecida como Beco dos Helicópteros.
“Cada uma destas ameaças pode destruir um pouco da majestosidade do desfiladeiro e, juntas, retirarão à paisagem a capacidade de fazer aquilo que a torna singular, que é incutir-nos humildade demonstrando que os seres humanos são minúsculos em relação às forças que moldaram este planeta e que não somos o centro do mundo”, resumiu Robert Clark.
A maior ameaça, na opinião do meu interlocutor, é que Tusayan, o teleférico e o Beco dos Helicópteros tenham potencial para acelerar outros projectos de desenvolvimento. Ele referiu que o estrondoso sucesso dos passeios de helicóptero dos hualapai chamou a atenção de alguns navajo, que pensam que o sistema de teleférico poderá ser a âncora de uma explosão semelhante de passeios aéreos nos flancos orientais do desfiladeiro. Se esses planos forem concretizados e se o desenvolvimento de Tusayan avançar, as consequências serão devastadoras. “De uma forma muito real, toda a extensão do desfiladeiro seria transformada em algo menos parecido com um parque nacional e mais com um parque de diversões”, acrescentou.
Depois do Dia de Acção de Graças, eu e Pete regressámos ao local onde concluímos a nossa etapa anterior e começámos a caminhar para jusante. Cento e noventa e seis quilómetros mais tarde, voltámos a sair, na entrada da Orla Sul do parque. Seguiu-se um trecho de 106 quilómetros iniciado logo após o Ano Novo. O nosso ritmo diário era determinado pela localização das nascentes, das quais dependíamos para obter água potável, pulando de uma até outra. Num sítio chamado Horn Creek, tivemos de ignorar uma grande nascente contaminada por uma mina de urânio abandonada situada imediatamente abaixo da Orla Sul, que envenena as águas desde a década de 1960.
No fim de Janeiro, enquanto nos preparávamos para a etapa mais formidável de todas – um trecho de 249 quilómetros em torno da mesa Great Thumb — o nosso amigo Rich Rudow voltou a entrar em cena.
No fim de Janeiro, enquanto nos preparávamos para a etapa mais formidável de todas – um trecho de 249 quilómetros em torno da mesa Great Thumb — o nosso amigo Rich Rudow voltou a entrar em cena. Ele e o seu parceiro, Chris Atwood, tinham atravessado Grand Wash Cliffs em finais de Novembro, tornando-se a nona e décima pessoas a completar uma travessia contínua de todo o desfiladeiro. O seu amigo Dave Nally desistiu mais cedo devido a problemas respiratórios. Rich estava preocupado com os desafios que eu e Pete enfrentaríamos na Thumb durante o Inverno, altura em que as tempestades podem surgir sem aviso, despejando vários centímetros de neve sobre os incautos.
Rich decidiu que tinha de regressar para nos guiar. E foi assim que, na tarde de 2 de Fevereiro, estávamos todos rodeados por quase trinta centímetros de neve à beira dos Olhos de Coruja, interrogando-nos como chegaríamos ao outro lado.
Na ponta oposta desta formação em forma de ferradura, havia uma saliência enorme. Se conseguíssemos chegar àquela secção plana, tudo estaria bem. Mas para lá chegarmos teríamos de navegar directamente sobre uma encosta íngreme de xisto com a esperança de, se escorregássemos, conseguirmos travar a nossa escorregadela antes de nos precipitarmos 120 metros desfiladeiro abaixo. A tarde já se aproximava do fim e se não conseguíssemos alcançar um sítio seguro antes do anoitecer, teríamos de nos confrontar com a ideia assustadora de passar a noite nas encostas traiçoeiramente escorregadias dos Olhos de Coruja.
Passadas mais de duas horas, chegáramos apenas a meio da ferradura, onde um pequeno promontório se projectava da encosta. Não excedia os vinte metros de comprimento, mas tinha um espaço plano e um montinho de pedras ao fundo. Quando chegámos às pedras, Rich parou e baixou a cabeça por um instante. Depois tirou os óculos e limpou os olhos.
“Desculpem-me”, disse suavemente. “É uma grande emoção estar aqui.” Foi então que nos contou a história daquilo que acontecera à jovem mulher em cuja lembrança aquelas pedras haviam sido ali amontoadas.
O seu nome era Ioana Elise Hociota. Originária da Roménia, tinha 24 anos, casara-se recentemente e ela e o marido, Andrew Holycross, estavam prestes a completar uma travessia seccional do desfiladeiro.
No Inverno de 2012, Ioana tinha os olhos postos no trecho de saliências com 32 quilómetros junto à mesa Great Thumb. Quando Andrew percebeu que a sua agenda profissional deveria impedi-lo de ir, Ioana juntou-se a Matthias Kawski, seu orientador científico na universidade.
Estavam nos Olhos de Coruja quando Matthias avançou pela encosta acima. Ioana optou por uma rota mais directa que a afastou do alcance visual do colega. Um minuto mais tarde, Matthias ouviu uma pedra cair, seguida de um grito agudo e depois, passados alguns segundos, um estrondo oco. Esforçando-se por chegar à beira do penhasco, espreitou para baixo, procurando em vão por Ioana.
No dia seguinte, o corpo foi descoberto. Quando Rich Rudow terminou a sua história, olhou para ocidente, onde o Sol se punha sobre a orla do desfiladeiro. “Amigos”, anunciou, “vamos ter de passar aqui a noite”.
Um minuto mais tarde, Matthias ouviu uma pedra cair, seguida de um grito agudo e depois, passados alguns segundos, um estrondo oco. Esforçando-se por chegar à beira do penhasco, espreitou para baixo, procurando em vão por Ioana.
Nessa noite, toda a água dos nossos cantis congelou, apesar de os termos guardado dentro das tendas que montámos no pedaço de solo plano junto do memorial. Os sapatos também congelaram e, na manhã seguinte, tivemos de segurá-los sobre os fogões de campismo para descongelá-los.
Levantámos acampamento e arrastámo-nos pelas encostas cobertas de neve, até à saliência plana do outro lado dos Olhos de Coruja, onde secámos o equipamento ao sol e olhámos para trás para ver o que atravessáramos. Fiquei contente por deixar este local para trás. Contudo, sob o sol matinal, até a vertente onde Ioana Hociota se despenhara, apresentava um brilho cor de mel que parecia emanar do seu interior. Naquele instante, posso ter vislumbrado parte daquilo que Edward Abbey queria dizer quando escreveu que era necessário rastejar pelo terreno e sangrar até, finalmente, ver alguma coisa.
Dali, vi que o desfiladeiro não é definitivamente um parque de diversões. Não tem corrimãos: é um sítio onde os perigos são reais. As recompensas são igualmente reais, como o facto de, ao deslocarmo-nos entre uma paisagem bravia ancestral, nos lembrarmos da humilde posição ocupada pela nossa espécie e da fragilidade da vida. Aparentemente, Ioana Hociota sabia que precisava de sítios assim. E suspeito que todos nós precisamos.
Quatro dias mais tarde, saímos do desfiladeiro. Eu e Pete retomámos a nossa travessia com uma série de secções que, no final de Março, nos tinham trazido a 80 quilómetros do fim.
No princípio desta demanda, não tínhamos como saber que, mesmo depois de fazermos sete viagens separadas ao longo de um ano, o final ainda nos aguardava. No momento em que lê esta reportagem, em Setembro de 2016, é provável que estejamos de volta, para terminarmos a travessia. Se estiver a ler esta revista daqui por algumas décadas, por exemplo em 2066, esperemos que uma boa parte do lado selvagem do Grande Canyon, no mais genuíno sentido da palavra, ainda exista.