Neste mar que envolve o paraíso mítico da evolução, existe a maior concentração de tubarões-martelo do mundo. Um santuário procura garantir a sua protecção.

Texto e fotografia Enric Sala

Duas raias-pintadas nadam com elegância nas águas cristalinas da ilha Wolf, a norte do arquipélago das Galápagos.

As ondas salpicavam-nos a cada cinco segundos e tive de colocar a minha máscara de mergulho para conseguir ver. A apenas 100 metros de distância, erguia-se um arco de rocha vulcânica, desafiando a erosão implacável do oceano Pacífico. Olhei para o meu colega, Pelayo Salinas de León, responsável pelas pesquisas marinhas da Fundação Charles Darwin, que saltava de cima para baixo sobre o flutuador à minha frente. Pelayo parece ter um sorriso permanente no rosto, mas naquele dia nem cabia em si de júbilo. Estávamos na ilha Darwin, a mais setentrional das Galápagos, à qual ele chama “a jóia da coroa”.

Abrigado sob o arco, Pelayo deu instruções a Manu San Félix, o nosso director de imagem subaquática, e a mim: “Desçam até ao fundo. Sigam-me até à borda da plataforma submarina. Quando lá chegarem, agarrem-se à rocha. E esperem.” Saltámos para a água e a corrente era tão forte que tivemos de descer depressa. Uma vez no fundo, a 20 metros de profundidade, segurámo-nos à rocha em frente de um cilindro plástico cinzento amarrado a uma pequena bóia.

Em redor, nadava uma dezena de peixes-borboleta, em tons de amarelo garrido e preto com o tamanho de um prato de sobremesa. 

Em redor, nadava uma dezena de peixes-borboleta, em tons de amarelo garrido e preto com o tamanho de um prato de sobremesa. Passaram cinco minutos em que nada aconteceu. Ao fim de dez minutos, olhei para Pelayo e fiz-lhe sinal de que era altura de avançar um pouco para tentarmos ver algo mais interessante. Porém, nesse preciso instante, ele abriu os olhos como duas lanternas dentro da máscara de mergulho e apontou para trás das minhas costas.

Virei-me rapidamente e vi uma grande massa muscular cinzenta, com uma das cabeças mais estranhas do reino animal. Era um tubarão-martelo com mais de dois metros de comprimento. Atrás dele, apareceram outros dois e por aí adiante. Pouco depois, havia cerca de vinte. É precisamente isto que todos os visitantes de Darwin esperam ver. 

Em 2014, Eliécer Cruz, actual presidente do Conselho do Governo das Galápagos e antigo director do Parque Nacional das Galápagos, tinha-me alertado para a magia de Darwin e de Wolf, outra ilha no Norte remoto do arquipélago: “Não fazes ideia da quantidade de tubarões que há ali.”

A moreia-verde é um predador muito abundante na ilha de Wolf, o novo santuário marinho das Galápagos. As moreias alimentam-se de crustáceos, polvos e peixes, e não são agressivas para com os mergulhadores, apesar do seu aspecto feroz.

 Na sua opinião, ambas deveriam ser “a prioridade número um da conservação marinha nas Galápagos”. Darwin e Wolf são duas entre mais de cem ilhas e ilhéus que compõem as Galápagos, arquipélago que se encontra perto da linha do equador e pertence à República do Equador. O seu primeiro visitante ilustre foi Charles Darwin, que percorreu as ilhas em 1835 durante a famosa viagem de circum-navegação do Beagle. As observações e amostras que ali recolheu foram essenciais para inspirá-lo a desenvolver a sua teoria da evolução por selecção natural. 

Um cavalo-marinho agarra-se a algas vermelhas junto de um baixio em Fernandina, a ilha mais jovem das Galápagos. Auxiliados pela sua camuflagem, os cavalos-marinhos aproximam-se de pequenos camarões e engolem-nos inteiros, uma vez que não possuem dentes.

 Ao visitar as ilhas hoje, imagino o que Darwin deverá ter sentido ao desembarcar. É um mundo fora deste mundo. A paisagem vulcânica tem um carácter primitivo, agreste, formado pela energia violenta do interior do planeta. Em simultâneo, mostra a serenidade conferida pela duração longuíssima dos processos geológicos. O mais extraordinário de tudo é a fauna mágica que habita as ilhas: iguanas que parecem dragões pré-históricos em miniatura, aves que não podem voar mas mergulham e tartarugas gigantes. 

O governo do Equador teve a visão de proteger as ilhas Galápagos como Parque Nacional, o primeiro do país, em 1959. Consciente do seu valor mundial, a UNESCO nomeou as ilhas como Património Mundial em 1978.

O governo do Equador teve a visão de proteger as ilhas Galápagos como Parque Nacional, o primeiro do país, em 1959. Consciente do seu valor mundial, a UNESCO nomeou as ilhas como Património Mundial em 1978.

No entanto, existe um mundo que Darwin nunca chegou a imaginar, um mundo subaquático com uma abundância de vida que supera a existente em terra. Em Dezembro de 2015, liderei a expedição do projecto “Mares Prístinos” da National Geographic Society até às Galápagos, para explorar ambientes naturais sobre os quais ainda sabemos pouco. Em colaboração com a Fundação Charles Darwin, pretendíamos reunir informação científica e imagens para apoiar um projecto do Parque Nacional das Galápagos para expandir a área de protecção marinha em redor do arquipélago.

O cormorão-das-galápagos é endémico deste arquipélago e único no seu género. Evoluiu nas ilhas sem predadores naturais e com grande abundância de alimento na orla costeira, tendo por isso perdido a capacidade de voar.

Apesar de a superfície terrestre das ilhas se encontrar protegida desde 1956, a pesca industrial ameaçava aquela extraordinária concentração de vida marinha. Navios pesqueiros com redes de cerco e palangreiros chegavam a capturar milhares de atuns numa única viagem e, com eles, espécies ameaçadas e protegidas, como golfinhos, tubarões, jamantas, focas, tartarugas e aves marinhas.

Para evitar outra matança de escala industrial, em 1998 o governo do Equador criou uma reserva marinha que incluía as águas até 40 milhas náuticas em redor das ilhas. Essa reserva proibia a pesca industrial, mas permitia a pesca aos pescadores locais, que utilizam métodos artesanais. A pesca só era totalmente proibida em menos de 1% da reserva marinha.

Essa reserva proibia a pesca industrial, mas permitia a pesca aos pescadores locais, que utilizam métodos artesanais.

Contudo, mesmo antes de 1998, o interesse do mundo pelas Galápagos fazia-se sentir noutra dimensão. Em vez de comerem animais marinhos, mais pessoas queriam vê-los vivos, no seu ambiente. As Galápagos proporcionavam uma experiência única, uma viagem ao passado do nosso planeta, um laboratório vivo da evolução, sem igual em qualquer outro lugar do mundo. 

A empresa Lindblad Expeditions organizou o primeiro cruzeiro ecoturístico nas Galápagos em 1957, abrindo a porta a um novo tipo de turismo de natureza. Na actualidade, existem mais de 25 mil habitantes distribuídos por quatro ilhas e cerca de 220 mil turistas visitam o arquipélago anualmente. A maioria vem observar a fauna marinha, actividade que em 2015 gerou 158 milhões de euros de receitas e empregou um terço dos habitantes das Galápagos.

Os mangues das Galápagos providenciam um habitat para juvenis de pargos e de outras espécies de peixe, mas são também uma zona de alimentação para vários peixes e tartarugas marinhas. 

 “Sem o turismo, as Galápagos não existiriam tal como hoje as conhecemos”, resumiu Fernando Alvarado, ministro do Turismo do Equador, após um mergulho em Darwin em Dezembro de 2015. No convés do Argo, o nosso navio, explicou-me que o turismo salvou a natureza selvagem das ilhas. Embora possam acarretar problemas, como a introdução acidental de espécies invasoras, os passeios turísticos nas Galápagos obedecem a regulamentos estritos e limitam-se a uma superfície muito pequena. “Além disso, como em muitos outros locais, a presença contínua de ecoturistas dissuade os barcos de pesca furtiva de atum”, continuou o ministro. Significará isto que as Galápagos estão a salvo da pegada humana?

No Norte do arquipélago, a ilha de Darwin alberga a maior concentração de biomassa de tubarões do mundo; os tubarões-martelo formam cardumes com mais de trezentos indivíduos.

 Estudos recentes mostram que Darwin e Wolf albergam a maior biomassa de tubarões de todo o planeta. Apesar disso, a sua abundância diminuiu nas últimas décadas, uma vez que não só foram ilegalmente capturados dentro da reserva marinha das Galápagos, como também em toda a região tropical do oceano Pacífico Oriental. 

O cilindro cinzento que observamos durante o nosso mergulho em Darwin é um instrumento que detecta a presença de tubarões equipados com transmissores acústicos. O cilindro é um posto de escuta muito mais eficaz do que um mergulhador: prende-se ao fundo e só é preciso trocar as baterias – e recuperar os dados – uma vez por ano. Os receptores indicam-nos se um tubarão monitorizado na ilha X chegou à ilha Y, mas nada nos dizem sobre o percurso realizado. Para tal, os cientistas recorrem a marcos que assinalam periodicamente a sua posição e a transmitem a um satélite. Depois disso, é possível desenhar o mapa das migrações dos tubarões.

Uma equipa internacional de investigadores marcou dezenas de tubarões de espécies diferentes ao largo das costas do Pacífico, da América Central e do Norte para estudar os seus movimentos. 

Uma equipa internacional de investigadores marcou dezenas de tubarões de espécies diferentes ao largo das costas do Pacífico, da América Central e do Norte para estudar os seus movimentos. 

Os investigadores, que fazem parte da rede Migramar, descobriram que as Galápagos, e em particular as ilhas isoladas de Darwin e Wolf, são pontos de paragem obrigatória na migração anual dos tubarões da região. Os transmissores revelaram que os tubarões-martelo migram entre as Galápagos e as reservas marinhas da ilha de Coco, na Costa Rica, e Malpelo, na Colômbia. Além disso, Darwin e Wolf registaram a maior migração de fêmeas do gigantesco tubarão-baleia em fase de gestação.

Iguanas marinhas descansam após mergulharem em busca de algas na ilha Fernandina. Semelhantes a dragões pré-históricos, constituem a única espécie de iguana marinha e encontram-se apenas nas Galápagos. Fotografia Manu San Félix

 No interior das zonas protegidas, os tubarões gozam de protecção, mas, quando cruzam a linha invisível que delimita a reserva, entram num mar que não perdoa, repleto de milhões de anzóis e centenas de quilómetros de redes. Aliás, não foram apenas as espécies migratórias que sofreram reduções. Estudos recentes concluíram que a abundância de espécies capturadas pela pesca artesanal nas Galápagos também diminuiu ao longo do tempo.

O ministro do Ambiente do Equador, Daniel Ortega, e o artista de renome internacional e conservacionista marinho dedicado, Miguel Bosé, acompanharam-nos na expedição de Dezembro de 2015. Na ilha Darwin, tiveram a oportunidade de descer até 200 metros de profundidade no submarino DeepSee. Depois da sua primeira viagem às profundezas, Bosé exclamou que esperava ver mais. “Vemos muitos tubarões e peixes pequenos, mas falta metade da cadeia alimentar, os peixes grandes, como as garoupas e os pargos.”

Depois da sua primeira viagem às profundezas, Bosé exclamou que esperava ver mais. “Vemos muitos tubarões e peixes pequenos, mas falta metade da cadeia alimentar, os peixes grandes, como as garoupas e os pargos.” 

Entre 2011 e 2013, Salinas de León e alguns colegas viajaram com pescadores e obtiveram amostras no pequeno mercado de peixe da ilha de Santa Cruz. Registaram o tamanho, idade e género de cerca de trezentos exemplares a que os autóctones chamam “bacalhaus”, uma espécie de garoupa que só existe nas Galápagos e na ilha de Coco. “Em cada 100 indivíduos que examinámos, apenas um era macho”, contou Salinas de León após o nosso mergulho em Darwin. “Isso significa que os machos, que são maiores, foram alvo de sobrepesca.” O seu sorriso permanente converteu-se numa triste interrogação. Mostrou-me fotografias da década de 1970, com “bacalhaus” muito maiores do que os actualmente observáveis no mercado de Santa Cruz. As análises de Salinas de León demonstram que o tamanho médio do “bacalhau” diminuiu mais de 30 centímetros (40%) devido à pesca excessiva. Algo parecido ocorreu ao pepino-do-mar, cujas capturas (exportadas na totalidade para a Ásia) foram proibidas em finais da década de 1990, pois a espécie estava à beira do colapso devido ao excesso de captura. 

Uma análise económica dirigida pela Universidade da Califórnia e pela National Geographic Society demonstrou que, nas Galápagos, o valor de um tubarão ao longo da sua vida é de cerca de 4,5 milhões de euros em receitas geradas pelo mergulho turístico. Em contrapartida, esse mesmo tubarão morto proporciona 180 euros ao pescador que o captura. Uma barbatana de tubarão só pode ser vendida uma vez. Um tubarão vivo pode “ser vendido” milhares de vezes, a milhares de mergulhadores que viajam de todo o mundo para observarem algo único.

Os estudos científicos mostraram que a gestão da reserva não prevenia o declínio dos tubarões e de outras espécies que constituem a base da economia e do emprego nas Galápagos. Confrontado com este dilema e consciente do valor ecológico e económico da vida marinha nas ilhas, o Parque Nacional das Galápagos iniciou, em 2014, um processo de reavaliação da protecção da reserva marinha, com a participação activa de entidades científicas e conservacionistas e de todos os sectores produtivos das Galápagos, incluindo os pescadores artesanais. O ministro Ortega disse-nos, a bordo do Argo, que “apesar do extraordinário valor global das Galápagos, as suas águas adjacentes não estão suficientemente protegidas, o que ameaça a futura preservação desta jóia mundial da natureza”. 

O novo santuário protege as ilhas dos efeitos humanos directos, mas apenas ajuda a mitigar os impactes climáticos. Em anos de El Niño, quando a água aquece e a produtividade diminui, as algas escasseiam e as iguanas marinhas morrem ou reduzem o seu tamanho. 

 Os ministros Ortega e Alvarado organizaram uma reunião em Quito, em Fevereiro de 2016, com o presidente do Equador, Rafael Correa. Miguel Bosé e eu participámos para discutir a importância económica de um ambiente marinho saudável para o Equador, assim como a sua relevância ecológica global. O presidente Correa já estava ao corrente do âmbito deste projecto e indicou a importância económica de uma natureza saudável para o Equador.

O santuário, o primeiro do seu género no Equador, proíbe qualquer actividade de extracção numa área com cerca de quarenta mil quilómetros quadrados.

No dia 21 de Março de 2016, após várias reuniões entre o Parque Nacional das Galápagos, os ministros do Ambiente, do Turismo e da Agricultura, o Conselho do Governo das Galápagos, as organizações conservacionistas e os sectores produtivos das Galápagos, o presidente Correa assinou um decreto em Quito para criar um santuário marinho nas águas em redor de Darwin e Wolf.

O santuário, o primeiro do seu género no Equador, proíbe qualquer actividade de extracção numa área com cerca de quarenta mil quilómetros quadrados. Além disso, foi igualmente protegida uma vintena de áreas de menor dimensão, elevando a área marinha protegida das Galápagos a um terço da superfície da reserva marinha. Ao assinar o decreto, o presidente equatoriano assegurou que a nova protecção “beneficiará o turismo, as actividades económicas sustentáveis, a ciência, mas ratifica, acima de tudo, o nosso compromisso para com o desenvolvimento sustentável e a conservação”. 

Zonas interditas à pesca demonstraram em todo o mundo que a protecção não só beneficia a vida marinha, como também gera emprego e produz receitas turísticas consideráveis, como já sucede nas Galápagos, uma das maravilhas naturais do mundo.

Zonas interditas à pesca demonstraram em todo o mundo que a protecção não só beneficia a vida marinha, como também gera emprego e produz receitas turísticas consideráveis, como já sucede nas Galápagos, uma das maravilhas naturais do mundo. Além disso, os santuários funcionam como contas-poupança, onde se criam peixes que ajudam a repovoar as zonas adjacentes, o que também beneficia os pescadores. 

Após a assinatura do decreto, Miguel e eu perguntámos ao presidente equatoriano como se sentia. “Creio que cumprimos o nosso dever: conservar essa jóia natural única, a nível mundial, para usufruto das gerações presentes e vindouras”, respondeu.

A minha memória viajou até ao dia em que deixámos a ilha de Darwin, no final da nossa expedição. O Sol pôs-se atrás do arco de pedra de Darwin, inflamando as nuvens e o céu. O arco de Darwin simboliza o triunfo, o triunfo da natureza em persistir diante das crescentes pressões humanas e o triunfo do Equador, que soube proteger algo único que, como disse o presidente Rafael Correa, “não pertence ao Equador, mas a toda a humanidade”

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