O desfiladeiro do Cabril do Ceira é mais do que uma singularidade geológica: é um lugar idílico de águas cristalinas e onde o canto das aves ecoa como numa catedral. Fotografia de Luís Ferreira.
No fim da era dos dinossauros, este relevo ganhou a forma que hoje possui. Depois, chegaram os homens e as suas histórias.
Texto: Carlos Neto de Carvalho
No limite entre a Lousã e Góis, o rio Ceira contorce-se para cruzar o Cabril do Ceira. A distância, só vencida na imaginação pelo impulso do intrépido animal, separa a serra do Passô, na continuidade do Buçaco a noroeste, da serra dos Sacões, que irá crescer para os penedos de Góis, a sudeste. Tudo feito de dura rocha quartzítica, com fósseis e ondulações nas superfícies estratificadas que nos contam a história da sua origem em contexto marinho, quase há 500 milhões de anos.
Algumas centenas de milhões de anos mais tarde, o movimento das placas tectónicas levou ao dobramento destes estratos e ao metamorfismo das rochas. Esta é uma história antes da história, feita de evidências preservadas nas rochas. Mas existem outras histórias na memória dos locais para explicar tão divino cenário.
O contraste não poderia ser maior: a Várzea Grande, hoje Vila Nova do Ceira, feita de aluviões férteis, na confluência do rio Sótão, veiga plana e bem irrigada onde o Ceira se demora em toda a largura do vale, rodeado por uma constelação de pequenos lugares habitados; o Cabril do Ceira, com paredões de mais de cem metros de vertigem a estrangular o rio que desliza linear, tendo como sinais de vida uma biodiversidade adaptada à rocha viva, e a pequenina ermida da Senhora da Candosa a destacar-se no alto do cerro.
Conta a lenda que na veiga terá vivido um mouro convertido à lei cristã, ainda em tempos do domínio muçulmano da Península Ibérica. Este vivia do muito que a terra ali lhe dava e dos frutos do ouro depositado pelo Ceira.
Alvo de cobiça pelos seus conterrâneos, estes procuraram fechar o Cabril com uma barragem, de modo a alagar para sempre as suas terras. Mas as suas intenções fracassaram sucessivamente com o aparecimento nocturno de Nossa Senhora montada num burro, que fazia ruir a muralha e permitia o escape do Ceira. Afinal, os cascos do fantástico animal ainda lá estarão, junto do miradouro, marcados para sempre na rocha.
A má conduta cessou por fim e a ermida foi erigida para marcar o milagre, sendo hoje local de popular romaria a 15 de Agosto. Existem vestígios romanos neste lugar e na Várzea Grande. Nas aluviões, abrem-se estreitas minas, entivadas algumas ou com cavidades abertas nas suas paredes a distância regular para disposição de lucernas, por onde hoje corre água, mas de objectivo e idade incertos. Já as “pegadas” do burro de Nossa Senhora poderão ser as formas caprichosas conhecidas dos paleontólogos como Daedalus, que dão uma textura particular a estas rochas quartzíticas.
O viajante deleita-se aqui com a paisagem mítica dos miradouros da Senhora da Candosa, de acessos novíssimos, ou com o pôr do Sol em pleno desfiladeiro, a uma curta caminhada do lugar da Murtinheira.
Atravessando o rio em Maria Mendes, terá acesso a um dos cenários fluviais mais idílicos para um retemperador mergulho, no Cabril de Baixo. Aqui surge um túnel na rocha, com larga boca, cuja origem alimentou inúmeras lendas.
O Túnel do Cabril fez na realidade parte do projecto abandonado de ligação ferroviária entre Lousã e Arganil, dos inícios da década de 1930. A lenda é, muitas vezes, uma memória desvanecida, ou a tentativa de explicar um fenómeno singular. De uma ou do outro, não há melhor exemplo do que o Cabril do Ceira.