Ria Formosa

A rede de canais da ria Formosa em toda a sua exuberância.

Ao longo do litoral do Sotavento algarvio, um complexo labiríntico de canais, ilhas, sapais e dunas forjadas pela ira dos ventos dá lugar a um dos ecossistemas mais extraordinários de Portugal: a ria Formosa.

Texto: João Rodrigues

Verdadeiro oásis de biodiversidade, a ria estende-se entre as penínsulas arenosas do Ancão e de Cacela, ocupando 18.400 hectares. Classificada como Parque Natural em 1987, esta jóia natural é uma zona húmida de importância internacional, inscrita na convenção de Ramsar. Enquanto sistema lagunar em constante metamorfose, transforma-se ao longo de cada estação por acção dos ventos, correntes e marés e pelo ciclo de vida das espécies que acolhe.

Qualquer dia é uma excelente oportunidade para mergulhar nas suas paisagens de cortar a respiração, onde encontros inesquecíveis com vida selvagem são garantidos. Se, hipoteticamente, hoje estivéssemos de regresso a casa, depois de uma longa jornada pela colectânea de habitats que compõem a alma selvagem deste lugar, estes seriam alguns dos capítulos mais marcantes do volumoso diário de bordo.

Ria Formosa

Os raros cavalos-marinhos da ria Formosa. O mergulho com garrafa só é permitido aos investigadores. O mergulho de lazer pode ser feito em apneia ou snorkeling.

No extremo oeste do Parque Natural, ao percorrermos a zona do Ludo pelo trilho de São Lourenço, ao nascer do Sol, durante a baixa-mar, somos recebidos por um vasto sapal pintado pelos tons esverdeados das salicórnias, sarcocónias, morraças e juncos.

No céu, o frenesi provocado por uma mistura de batimento de asas e chilreios anuncia a chegada de grandes bandos de aves limícolas e de anatídeos. Os alfaiates, ostraceiros, maçaricos-de-bico-direito e pilritos-pequenos são os que mais dão nas vistas. A vida é agitada neste ponto importante de passagem para as migrações entre a Europa e África. À medida que a luz do dia aumenta, revelam-se outros animais, como o flamingo, o colhereiro, a cegonha-branca, a íbis-preta e o garajau-grande, que se banqueteiam nestas águas lamacentas, ricas em moluscos, crustáceos e outros invertebrados.

Ocasionalmente, aves de rapina, como a águia-pesqueira e o peneireiro-cinzento mergulham ao longe, em águas mais profundas.

Quanto mais silenciosos são os nossos passos e escassos os nossos movimentos, mais intensos são os cânticos dos voadores que chegam a ser mais de vinte mil durante a época de invernada, fazendo desta uma zona especial de conservação. A experiência inesquecível, enriquecida por binóculo e monóculo, permite atentar nos pormenores mais exuberantes destes passeriformes.

Ria Formosa

A cerca de dois quilómetros para leste da cidade de Olhão, eflúvios de incenso perene denunciam o coração da ria Formosa, que palpita ferozmente nos limites da Quinta de Marim. Embora formado por um pedaço de cada habitat da ria, a extensa mata mediterrânea que nos envolve durante um percurso pedestre é a sua principal artéria.

Sob um dossel de pinheiros mansos e bravos, zambujeiros e sobreiros, as nossas pupilas deliciam-se com as cores garridas das flores do rosmaninho, do tomilho e do tojo e com o vermelho carregado de medronhos maduros.

Nesta catedral verdejante onde reina a tranquilidade, o silêncio só é interrompido pela agradável melodia vinda dos ninhos de algumas espécies como a pega-azul, a poupa, o rouxinol-bravo ou o papa-figos, que acompanham o batucar na madeira do pica-pau-malhado-grande.

Fugindo da estrada de terra batida parazonas de vegetação mais densae com olhos de inspector forense, conseguimos encontrar vestígios dos tímidos mamíferos que aqui habitam, como a gineta, a fuinha, o texugo ou mesmo a esquiva raposa.

Ria Formosa

Olhar um raro camaleão durante uma noite de Verão é magia que dificilmente o tempo levará da nossa memória.

Ao cair da noite, a luz das estrelas que invade esta floresta encantada entra em perfeita harmonia com a serenata das rãs-comuns e dos sapos que usufruem de um lago de água doce. Ligando a lanterna, abrimos caminho para um dos momentos mais especiais desta experiência: a observação dos invisíveis camaleões. Esta espécie ameaçada que, em Portugal, só existe no Algarve, perde a sua capacidade de camuflagem durante o sono nocturno, exibindo uma cor esbranquiçada facilmente identificável pelo feixe de luz. Após uma curta viagem de barco rumo a sul, chegamos à Armona, uma das cinco ilhas-barreira que protegem a ria contra investidas do Atlântico. No extremo leste da ilha, junto da barra da Fuzeta, as lagoas que se formam durante a baixa-mar sugerem que estamos nos trópicos. As águas quentes ecristalinas convidam a mergulhos e contrastam com a paisagem de areias claras. Alcatrazes e gaivotas-de-cabeça-preta descansam nas redondezas.

Atravessando a ilha, rumo a oeste, somos rodeados por dunas cobertas de vegetação resistente a ambientes áridos. Por aqui encontram-se cordeirinhos-da-praia, fenos-das-areias, couves-marinhas, trevos-de-creta e cardos-marítimos. Ao chegar à ponta da ilha, conseguimos ver Faro, Olhão, ilha do Farol e ilha da Culatra e perceber melhor a vastidão deste ecossistema.

Na ilha da Barreta, também apenas acessível por barco, um vasto deserto rodeado por águas límpidas acolhe numerosas populações do endémico tomilho-cabeçudo e de narcisos-das-areias. Se nos afastarmos do percurso pedestre de Santa Maria, cada passo tem de ser dado minuciosamente. Estamos a entrar em território de populações nidificantes de andorinha-anã e no único local do país onde nidifica a gaivota-de-audouin. Estas ilhas-barreira revelam alguns dos tesouros mais raros da nossa biodiversidade.

Junto da ilha da Culatra, na companhia de um guia certificado, mergulhamos num dos habitats mais importantes do planeta: as pradarias-marinhas. Abaixo da superfície, há um berçário de animais marinhos. Os frágeis e enigmáticos cavalos-marinhos hipnotizam e fazem esquecer o mundo por instantes.

No fundo, são uma analogia daquilo que é a ria Formosa, um maravilhoso, mas frágil ecossistema, que permite conectar com a natureza numa meditação intensa e profunda.

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