Quase todas as inscrições com escrita do Sudoeste são encontradas fora do contexto, adensando o mistério sobre a identidade dos escribas.
Há mais de 2.500 anos, uma estranha forma de escrita era utilizada no Sudoeste da Península Ibérica. Quem seriam estes escribas?
Texto: Gonçalo Pereira Rosa
Os romanos diziam que as palavras voam, mas as pedras ficam. Talvez em mais nenhuma outra ocorrência arqueológica este pedaço de sabedoria antiga faça tanto sentido. No final do século XVIII, Frei Manuel do Cenáculo registou a ocorrência de várias inscrições de uma escrita invulgar no Alentejo. Chamou-lhes premonitoriamente “pedras Phenicias”, reconhecendo nos signos um carácter pré-romano.
Nos séculos seguintes, à medida que se processavam mais descobertas, este sistema de escrita foi ganhando outros nomes. Estácio da Veiga designou-a como “escrita do Algarve”, reflectindo a importância regional das ocorrências. Outros autores trataram-na como “escrita ibérica” ou “sud-lusitana”. Uma forte tradição associou esta escrita ao universo tartéssico apesar de mais de 90% das descobertas se registarem fora do limite geográfico desta cultura. Nas últimas duas décadas, vingou por fim a designação “escrita do Sudoeste”.
Aspecto da exposição permanente do Museu da Escrita do Sudoeste, inaugurado em Almodôvar em 2007.
Raramente se registam descobertas in situ, o que dificulta a interpretação. Nos raros casos em que tal sucedeu, foi em contexto de reutilização no período romano, que nada esclarece sobre a função original. No início da década de 1990, porém, os arqueólogos Manuel e Maria Maia fizeram uma descoberta espantosa: numa placa de xisto, um mestre e um aprendiz reproduziram 27 signos desta escrita – o primeiro com objectividade, o segundo procurando reproduzir os signos do mestre. Não foi propriamente a pedra de Roseta desta escrita porque não a comparou com uma escrita conhecida, mas forneceu uma ideia do universo de signos disponíveis. Desde então, muitas outras peças têm emergido, sobretudo desde que os investigadores Pedro Barros, Samuel Melro e Amílcar Guerra têm alertado as populações do Alentejo e do Algarve para esta vicissitude.
O universo cronológico das estelas encontradas até agora situa-se em meados da Idade do Ferro, entre os séculos VI e V a.C. Ao contrário do que acontece com os vestígios materiais, a escrita fenícia está escassamente representada nas áreas onde a influência dessa cultura é mais substancial. Na região onde a escrita do Sudoeste mais se manifesta, a cultura material sugere geralmente menor influência exógena.
Em 2007, o município de Almodôvar inaugurou uma colecção permanente de 20 destas estelas, 16 das quais encontradas no concelho. De então para cá, este museu único, que une os mundos mágicos da arqueologia e da linguística, juntou mais algumas peças num percurso interpretativo que procura acrescentar informação a um dos enigmas históricos da Península Ibérica: quem eram estas comunidades que se exprimiam numa língua que nos chegou tão fragmentada?
Museu da Escrita do Sudoeste
Rua do Relógio, Almodôvar
Horário: 9h – 13h / 14h – 18h (3.ª feira a domingo)
Contacto: Tlf.: +286 665 202