Na ilha das Flores, existe um paraíso de rocha que homenageia o passado e permite cortar amarras com o presente.
Texto: Gonçalo Pereira Rosa
A Cuada nem sempre foi um refúgio paradisíaco.
Fundada no século XVII na freguesia da Fajã Grande, na ponta oriental da ilha das Flores, constituiu durante décadas uma marca de pobreza e humildade das populações mais orientais do território português. São casas de resistência – ao tempo, à pobreza, à fidelidade das tradições.
No século XIX, haveria pouco mais de uma centena de habitantes nestas casas rústicas, então sem confortos, desprovidas até em muitos casos de telhados. Os arruamentos eram e são irregulares, exigindo atenção ao caminhante. Conta-se que poucos tinham o privilégio de usar sapatos na aldeia. Vivia-se da agricultura e da tecelagem.
Em meados do século XX, a Cuada estava moribunda. A população partiu em busca de novas oportunidades – muitos limitaram-se a seguir a sugestão do horizonte. Na verdade, esta costa éo primeiro obstáculo rochoso que o vento encontra quando sopra no Atlântico Norte, vindo da costa americana.




O sonho de uma vida melhor parecia votar a Aldeia da Cuada ao destino de outras aldeias e vilas do país. Dois empreendedores meteram então mãos à obra. Com carinho, Teotónia e Carlos Silva reconstituíram as casas – uma a uma, à medida das possibilidades, respeitando as traças e os materiais locais. Mantiveram a estrutura de pequenos jardins anexos a cada habitação que, em tempos, constituíam as singulares hortas de subsistência. Hoje, são jardins floridos e locais ideais para a leitura e contemplação.
Na Cuada, há um equilíbrio único entre tradição e modernidade. Desenganem-se pois aqueles que ali acorrem sedentos dos confortos tecnológicos do século XXI. A rede de comunicações é rudimentar e os acessos à estrada ou ao restaurante local exigem a caminhada pelas mesmas vielas estreitas e regulares que homens e animais percorreram nos últimos quatro séculos. Em compensação, não há outro sítio no planeta onde o visitante possa rodopiar sobre si e, na rotação de 360 graus, deparar com o mar, com as planícies balizadas por pequenos muretes de pedra, ajardinados ou ainda cultivados, que se estendem até à Ribeira Grande e por fim com uma imponente barreira vertical, pintada de verde pela vegetação e de onde a água se precipita no fluxo interminável das cascatas.
A menos de dez quilómetros pelas estradas serpenteantes das Flores, ficam duas das atracções imperdíveis da ilha: a Cascata da Ribeira do Ferreira (também conhecida como Poço das Alagoinhas) e as lagoas Negra e Comprida. São indícios de que, a ter existido uma divindade criadora, ela não foi necessariamente justa na atribuição de tesouros naturais, concentrando nas Flores monumentos ímpares de conjugação do solo, da água e da floresta, e negando a outros territórios benesses semelhantes.