brugge

Canais com muita vida. O edifício neogótico dos Correios (1898) de Gante ergue-se entre a Praça Korenmarkt e o canal Graslei que, no Verão, enche-se de transeuntes.

As cidades de Bruges, Gante e Antuérpia fazem parte de uma sugestiva viagem entre canais e praças que viram florescer uma das épocas mais prósperas da arte e do comércio europeus.

Texto: Eva Díaz Pérez

A visita a Flandres é uma extraordinária oportunidade de contacto com a Europa medieval. Nas cidades belgas, para lá do manto de tradição histórica, contempla-se a modernidade e descobrem-se núcleos urbanos que parecem extraídos de um postal.

Bruges é a primeira paragem nesta viagem pelas cidades que alimentaram a  riqueza  comercial e artística da Flandres. Nos seus canais,  desenham-se  miragens e reflexos enganadores e somos levados a suspeitar que existem duas cidades: a que se vê e a que vagueia sonâmbula dentro de água há séculos. Bruges foi o centro do mercado internacional de têxteis desde o século XII e destacou-se pela produção de delicadas rendas. O rio Zwin foi a artéria que permitiu o trânsito de mercadorias e o negócio têxtil, mas foi também a razão da sua crise no século XV. Com o tempo, os canais ficaram repletos de lodo e as barcaças encalhavam nos baixios e não conseguiam navegar. Foi o fim de Bruges que não teve outro remédio senão converter-se numa bonita estátua congelada, contemplando o seu passado.

É fascinante percorrer as ruas, praças e canais desta cidade de ar medieval e extrema beleza. Há uma luz semelhante à das aguarelas que se reflecte nas águas e projecta-se no interior das casas. O reflexo da água invade as salas e aposentos criando uma vibração que preenche cada instante da vida quotidiana. Existem muitos passeios possíveis em Bruges, como as rotas fluviais melancólicas que acabam frequentemente no lago do parque Minnewater, perto do Beatério, um recinto onde vivia uma comunidade de mulheres não vinculada a qualquer ordem religiosa.

mapa flandres

Outros itinerários permitem descobrir o bulício, a alegria e a comemoração da vida. É o que acontece na muito frequentada Praça Markt. Desde o período medieval que tem lugar aqui, à quarta-feira, um mercado de alimentos. Os restaurantes com esplanada em redor da praça são um bom local para tomar uma cerveja e contemplar o campanário, o Belfort, do século XIII.

Os seus 83 metros de altura vigiavam eventuais visitantes hostis e serviam de atalaia para prevenir a comunidade para o risco de incêndios, muito habituais naquela época no perímetro urbano.

Ao lado, a monumental Praça de Burg guarda outro tesouro histórico de Bruges, o Salão Gótico da Câmara Municipal ou Stadhuis. Na realidade, toda a cidade é semelhante a uma renda delicada. Os reflexos nos canais recordam a refinada filigrana de linha que decorava o pescoço e os punhos dos aristocratas e mercadores da Europa. A renda de Bruges é a luz misturada com a água que as mulheres que elaboram as delicadas peças vêem das suas casas. Fala-se de tudo isto no Centro da Renda, junto da Igreja de Jerusalém que, além de museu, organiza ateliers e vende tecidos.

Reina o silêncio na cidade adormecida. Os milhares de turistas não conseguem perturbar esta calma, pois permanece aqui a sensação de um eterno sono. A menos de um quilómetro da Igreja de Nossa Senhora, vale a pena caminhar até um restaurante português na Smedenstraat, onde os sabores nacionais se fundem com alguns dos produtos mais elaborados da gastronomia belga. Na caminhada, atente no silêncio das ruas, quebrado apenas pelo levíssimo som da água e pelo delicado rangido das folhas ao serem pisadas.

A apenas cinquenta quilómetros de distância de Bruges, localiza-se Gante, onde nasceu o imperador Carlos I de Espanha e V da Alemanha, um homem poderoso no século XVI e que manteve sempre uma memória agridoce da sua cidade natal, porque reprimiu com crueldade as rebeliões contra Espanha, impulsionadas a partir de Gante. No entanto, quis levar para Espanha o espírito alegre da cidade e impôs no seu novo reino o protocolo da corte flamenga nas cerimónias com banquetes e bailes.

Gante continua a respirar essa alegria. É uma cidade onde se brinda ao passado, ao presente e ao futuro graças ao seu ambiente universitário e a uma vibrante actividade cultural. Esse cosmopolitanismo descobre-se num simples passeio pelo bairro de Graslei, admirando o perfil das casas dos grémios profissionais com os seus característicos frontões escalonados.

As horas são marcadas pelo Belfort, o campanário, um dos símbolos da cidade com mais de noventa metros e um dragão de cobre dourado que vigia os céus. Quando soa o carrilhão de 54 sinos, Gante fica envolvida por um sugestivo concerto musical.

Pieter Paul Rubens

A casa e atelier de Rubens.

Pieter Paul Rubens nasceu em Siegen (Alemanha) em 1577, viveu oito anos em Itália e alguns anos na Flandres. Passou por Espanha e, finalmente, estabeleceu-se em Antuérpia, cidade natal dos pais. Em 1610, comprou um edifício na Praça Wapper e desenhou obras de ampliação. O seu desejo era que a casa respirasse o ar dos palácios barrocos de Génova que tanto o tinham cativado enquanto viveu em Itália. E conseguiu-o. O edifício converteu-se no lar e atelier do artista durante os últimos trinta anos de vida e num dos mais bonitos edifícios da cidade. Na actualidade, toda a casa é um museu repleto de obras de Rubens, de artistas da sua época e de discípulos que se tornaram célebres com Antoon van Dyck, cujo retrato se pode ver junto destas linhas. www.rubenshuis.be

A Catedral de São Bavão, onde foi baptizado Carlos V, é uma cápsula da época de maior pujança de Gante. É neste templo bonito que está exposto o tríptico de Van Eyck, A Adoração do Cordeiro Místico, pintado em 1432. A obra-prima sofreu vários sobressaltos que resumem bem a história convulsa da cidade: quase desapareceu vítima da ira iconoclasta de Calvino, foi roubada pelo exército de Napoleão e, durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães transferiram-na para uma mina de sal até os Aliados a recuperarem graças ao trabalho dos Monument Men, que salvaram o património saqueado pelos nazis. Para conhecer a história de Gante, recomenda-se uma visita ao Museu STAM, percorrendo-o até chegar à época actual através das salas do Museu de Arte Moderna SMAK ou do fascinante Museu do Design.

É altura de provar as delícias da cozinha flamenga no Groot Vleeshuis, no bairro Graslei. Aqui podem degustar-se as especialidades gastronómicas da Flandres Oriental, como presuntos de Gante que aqui se encontram suspensos das vigas de madeira do edifício. Na Praça Vrijdagmarkt, nas imediações, existe um curioso estabelecimento onde se pode brindar com… cerveja, naturalmente. Chama-se Dulle Griet e serve cerveja Kwak num copo grande apoiado num suporte de madeira.

Sede de uma das universidades mais antigas da Europa, a cidade exibe não apenas a animação estudantil mas também obras-primas da arte gótica nas suas praças e no Museu M. A primeira paragem é na Grote Markt, onde se erguem os magníficos exemplos do gótico flamejante: a Igreja de São Pedro e a Câmara Municipal. O outro ponto de atracção é a centenária Universidade Católica, que ocupa diversos edifícios e o Begijnhof, sede no século XIII de uma comunidade de mulheres que viviam retiradas sem no entanto terem tomado os votos. À tarde e à noite, os melhores locais para sentir o ambiente de Lovaina são as cervejarias de Oude Markt, cujas ementas oferecem todas as variedades da Bélgica.

Louvain

Um dia em Lovaina. Sede de uma das universidades mais antigas da Europa, a cidade exibe não apenas a animação estudantil mas também obras-primas da arte gótica nas suas praças e no Museu M. A primeira paragem é na Grote Markt, onde se erguem os magníficos exemplos do gótico flamejante: a Igreja de São Pedro e a Câmara Municipal. O outro ponto de atracção é a centenária Universidade Católica, que ocupa diversos edifícios e o Begijnhof, sede no século XIII de uma comunidade de mulheres que viviam retiradas sem no entanto terem tomado os votos. À tarde e à noite, os melhores locais para sentir o ambiente de Lovaina são as cervejarias de Oude Markt, cujas ementas oferecem todas as variedades da Bélgica.

É a “Max van het huis” que significa “tirar o sapato” porque antigamente era costume deixar um sapato como fiança, já que, em muitas ocasiões, os estudantes bebiam e saíam a correr sem pagar. Entre as 250 variedades da carta, encontrará seguramente uma cerveja do seu agrado.

Antuérpia  também  pertence à galeria de  cidades-espelho. A água faz parte da vida dos seus habitantes, como o demonstra o rio Escalda, que faz parte das suas crónicas históricas. Tal como em Bruges, Gante e noutras cidades flamengas, os rios explicam o glorioso passado. Antuérpia estabeleceu uma estratégia geográfica fluvial criando prósperas rotas comerciais. Tal como os rios Zwin ou Leie em Brugges e Gante, o rio Escalda marcou a história de Antuérpia. Hoje, é possível navegar até outras cidades através dos canais que ligam os seus caudais.

Ao chegar à Rua Meir, muito próxima da Torre KBC, não restam dúvidas de que a cidade assumiu uma faceta vanguardista, com edifícios contemporâneos e bairros de design. Aqui, situa-se o espantoso Museu do Diamante e a revitalizada zona dos velhos molhes, agora repletos de bares e com uma surpresa arquitectónica: o MAS, um museu que explora o passado de Antuérpia enquanto encruzilhada de culturas.

Na Praça Maior, o visitante pode sentar-se a beber cerveja e a comer os tradicionais mexilhões ao vapor com batatas fritas. A praça é dominada pelo edifício da autarquia do século XVI e pela fonte com a estátua do soldado Silvius Brabo que, segundo a lenda, terá abatido o gigante Antigo, lançando depois a mão deste para as águas do Escalda.

A história da Flandres é a de um pequeno território capaz de derrotar gigantescos impérios. Assim sucedeu, por exemplo, com o espanhol, a que pertenceu durante algum tempo. Um conflito permanente de desencontros mas também de dependências económicas e culturais. Algo que se descobre no Museu Plantin-Moretus, residência do tipógrafo Christoffel Plantin, nomeado por Filipe II como primeiro tipógrafo real. Plantin e o genro, Jan Moretus, conseguiram o monopólio da venda de obras litúrgicas em Espanha e nas suas colónias. E tudo isto apesar das suspeitas mais que fundadas da relação dos impressores flamengos com o protestantismo.

Neste invulgar museu, estão as prensas mais antigas do mundo. Quase se consegue ouvir o som dos tipógrafos, escolhendo o chumbo e manejando os frascos e as almofadas de couro usadas para colocar tinta nas chapas de impressão. Cheira a fumo, óleo e tinta na Sala dos Correctores onde se colocavam a secar as páginas in albis.

Antuérpia guarda muitos segredos do passado noutras bonitas residências, como é o caso da Casa Rockox (Keizerstraat, 12), e nos edifícios industriais como a Estação Central, uma fabulosa obra do início do século XX. Outro contributo artístico de Antuérpia para o mundo é o legado do mestre Rubens. As obras do pintor podem ver-se na Catedral de Nossa Senhora (com telas como A Descida da CruzA Ressurreição de Cristo ou A Assunção da Virgem) e também no Museu Real de Belas-Artes, à espera de reabrir após o profundo restauro dos últimos anos. É possível tropeçar num autêntico fantasma de Rubens quando se visita a sua casa na Praça Wapper, que conserva intacto o atelier do artista. Ao contemplar a oficina do artista, adivinha-se a importância que o pintor teve na sua época, já que, para além de se dedicar a múltiplas encomendas provenientes da Europa, o atelier funcionava também como um salão onde se juntavam destacadas personalidades.

Depois de uma visita ao mais grandioso, vale a pena deter-se nos pormenores, como Vlaeykensgang, uma passagem secreta de 1591 agora ocupada por cafés, restaurantes e oficinas de artesãos. O viajante que visita a Flandres tem a sensação de passear por uma obra de arte, uma pintura de Rubens, que soube replicar a luz deste território onde o passado e o presente se confundem com elegância. 

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