A viagem começa no Twee Rivieren Rest Camp, uma área especial na extremidade meridional do Parque Nacional Transfronteiriço Kgalagadi, partilhado pela África do Sul e pelo Botswana. Aqui, o viajante pode recuperar da longa viagem aérea desde a Europa antes de se aventurar num dos ícones do turismo de natureza da África Austral.
Pela frente, terá então 250 quilómetros de estrada perfeitamente asfaltada até à entrada do parque. Deverá seguir à risca as recomendações daqueles que conhecem bem o terreno. Os viajantes devem recorrer pelo menos a dois veículos todo-o-terreno, transportando igualmente uma reserva de combustível e um telefone de satélite para prevenir situações de emergência.
A importância de ser pequeno. Além dos grandes mamíferos, o Kalahari acolhe inúmeros animais de menor porte, mas grande beleza.
O motivo? A rota pelo Parque Nacional Kgalagadi e pela Reserva de Caça Central do Kalahari, que fica nas imediações, não se cruza com estações de serviço, estradas asfaltadas ou aldeias. É uma rota pela natureza através de um deserto impiedoso, mas de inigualável beleza. E os imprevistos acontecem mesmo em África.
De pele cor de azeitona, baixa estatura e traços inconfundíveis, os san ou bosquímanos (uma designação que tem vindo a ser entendida de forma pejorativa) são os primeiros habitantes das terras do Sudoeste africano e de grande parte do Kalahari, e por isso, os seus legítimos donos.
É provável que, ao parar para resolver trâmites administrativos enquanto atravessa a África do Sul para o Botswana, aviste alguns san movendo-se com determinação. A sua baixa estatura (raramente ultrapassam o metro e meio de altura) não esconde a sua energia. São os maiores especialistas do Kalahari e os únicos capazes de sobreviver com facilidade no interior do deserto.
Passado o controlo de entradas, chega a altura de a viagem se afastar da estrada asfaltada que avança para norte e começar a sentir a paisagem. Mais à frente, uma pista de areia vermelha permite usufruir do primeiro momento de condução sobre as areias do lendário deserto. Depois, segue-se a travessia pelo leito do rio Nossob, na fronteira entre a África do Sul e o Botswana, que a partir de Novembro está seco. O Verão austral é terrível no Kalahari. Não chove durante meses e os termómetros ultrapassam diariamente os 40ºC, chegando a superar a fasquia dos 50ºC. Nenhum rio guarda água à superfície. Daqui deriva o nome do parque, Kgalagadi, de onde nasce o nome Kalahari que significa “terra de sede”.
Entardecer no parque Kgalagadi. Uma manada de gnus levanta poeira enquanto se dirige rumo a um charco ou em busca de um local para pernoitar.
Apesar do seu nome, este não é um deserto no sentido estrito do termo. A escassa chuva do Inverno e as águas subterrâneas permitem uma vegetação adaptada às condições extremas de calor e seca. Estas águas subterrâneas alimentam as árvores que bordejam os leitos secos dos rios. E as árvores fornecem sombra e comida aos herbívoros (as gazelas, oryxes e gnus são mais abundantes) que sobrevivem neste habitat severo.
Os leitos dos rios convertem-se no melhor local para observar a fauna durante as horas de calor.
Quase imóveis, os gnus-de-cauda-preta abrigam-se sob precários refúgios vegetais. São os primeiros grandes mamíferos que se avistam. Longe da sombra, um grupo de gazelas saltitantes pasta na vegetação rasteira do leito. Estes antílopes de pequeno tamanho, nervosos e ágeis, resistem ao sol melhor do que os gnus. O solo de areia reflecte os raios solares e estes, por seu turno, fazem ricochete na pele branca da barriga das gazelas, dissipando desta forma cerca de 80% do calor corporal, permitindo que os animais pastem durante todo o dia.
O springbok é o antílope mais abundante no deserto do Kalahari.
A viagem segue rumo a norte. Algumas dunas assumem tons intensos de cor-de-laranja e fazem recordar a vizinha Namíbia, país que faz fronteira a oeste com o Parque de Kgalagadi. O horizonte parece multiplicar-se até se perder no infinito. Arbustos baixos pintam o solo com cores pálidas, que evidenciam o calor a que o Kalahari submete os seus habitantes. De vez em quando, uma acácia centenária surge como um refúgio no meio do sequeiro. Imensos ninhos comunitários de aves tecedoras disfarçam as copas das árvores, convertendo-as no que se assemelha ao telhado de uma cabana ou a um guarda-chuva gigante. Como tudo neste deserto mágico, os ninhos comunitários não são mais do que estratégia das aves para suportar o calor do Verão e o frio intenso do Inverno austral. No interior destas enormes construções de palha, a temperatura permanece estável a 30ºC durante todo o ano.
O tecelão-sociável (Philetairus socius) protege-se das altas temperaturas em ninhos gigantes que reúnem várias gerações.
A luz da tarde pinta a areia e cria tons avermelhados ainda mais intensos. A rota prossegue pela estrada de asfalto que conduz ao acampamento de Nossob, onde deve reservar-se alojamentos antecipadamente. No deserto do Kalahari, os acampamentos são pequenos e contam com uma lotação muito limitada.
Por aqui, podem avistar-se famílias de suricatas que observam quem chega sem qualquer medo. Há os exploradores, mães vigilantes, jovens traquinas e pequenos curiosos que espreitam a partir das tocas junto do tronco das árvores. A actividade incessante parece um convite a uma paragem para os observar de perto, mas a tarde cai rapidamente e não é permitido circular pelo parque à noite. O crepúsculo marca o momento da chegada dos predadores e, no Kalahari, existem muitos e são todos temíveis.
Não é improvável que alguns quilómetros mais à frente o viajante seja surpreendido por uma leoa a caminhar lentamente em direcção a outras que a aguardam do outro lado da estrada. A sua lentidão não engana ninguém. Quando a escuridão cobrir o Kgalagadi, converter-se-ão em poderosas caçadoras.
Passada a excitação é altura de entrar no acampamento de Nossob e descansar num alojamento construído com madeira e adobe. O crepúsculo é o momento ideal para sair para o terraço e assistir ao avanço da noite. É uma sucessão inigualável de tons quentes que pintalgam os arbustos, a areia e as centenas de aves que se encontram em volta da casa em busca de restos de comida. Basta atirar um pouco de pão e um enxame de pequenos queleas, pardais e tecelões lançam-se ao alimento que desaparece em segundos.
A última luz do dia recorta o perfil de três girafas na planície da Reserva de Caça do Kalahari Central.
A paz apodera-se da paisagem. É altura de jantar e é melhor comer no alpendre para não perder o espectáculo da vida selvagem. O sol desaparece no horizonte infinito e as aves afastam-se e cessam de cantar. A forma perfeita de terminar o dia é escutar ao longe o rugido de um leão que se junta ao coro da noite com ecos evocadores do tempo em que uma viagem até ao Kalahari era uma das aventuras mais perigosas da Terra.
Leão do Kalahari. Diferencia-se dos restantes leões africanos pela menor envergadura e pela juba negra. Vive em grupos mais reduzidos e caça presas mais pequenas, sobretudo antílopes.
Muitas caravanas dos primeiros colonos tentaram atravessar o Kalahari. A maioria perdeu-se e sucumbiu. Outras, mais afortunadas, regressaram pelo mesmo caminho por onde tinham avançado e relataram os rigores insuportáveis deste vasto território arenoso. Por fim, em 1849, David Livingstone empreendeu a arriscada missão com a sua habitual determinação e habilidade, tornando-se o primeiro ocidental a atravessá-lo. Com a chegada da noite, é altura de o visitante recolher ao alojamento e deixar o espaço aberto livre para as deambulações de leões e outros predadores em busca de presas.
Na alvorada, a viagem prossegue para leste e transita para o Botswana, depois de atravessar o leito seco do rio Nossob. É fácil madrugar quando existe a expectativa de desbravar um território desconhecido e selvagem. A pista de areia vermelha dá lugar a outra de areia mais fina de um branco brilhante. É a hora de maior actividade no Kalahari, quando o sol ainda não aqueceu a terra até a tornar um forno. Duas girafas movem-se no horizonte ainda adormecido. Mais à frente, sobre uma pequena colina, aproxima-se da estrada um grupo de oryxes que medem forças enfrentando-se com os poderosos chifres. Passaram a noite a alimentar-se de erva e ramos secos carregados de humidade e isso bastará para hidratar os seus poderosos corpos e demonstrar que são os mamíferos mais bem adaptados ao deserto africano.
O oryx é o herbívoro mais adaptado à escassez de água e às elevadas temperaturas do deserto.
Seguindo em frente, chega-se a Mabuasehube, na fronteira oriental do parque. São apenas 160 quilómetros de distância mas demora-se quase cinco horas a vencê-los. A condução no Kalahari pode provocar surpresas desagradáveis e é melhor estar preparado para tudo. Um veículo todo-o-terreno chega a consumir 40 litros em 100 quilómetros de um território imenso e sem locais de abastecimento. Esse desafio costuma deixar os aventureiros desprevenidos em maus lençóis. “Se está cansado, deve ficar dentro do veículo”, explica o guia.
“Se sair, o calor ou os leões acabam por o matar. É por isso que se recomenda viajar com dois veículos e com um telefone de satélite.” Os dias seguintes são dedicados a percorrer as estradas na área de Mabuasehube. Diferentes animais desfilam na berma da estrada, avestruzes, girafas, cabras-de-leque, antílopes, raposas, chacais, suricatas. E, claro, há predadores. Por aqui, são frequentes os leões, embora geralmente se observem adormecidos à sombra, e numerosas hienas que visitam os acampamentos com uma inquietante curiosidade.
Nesta região, as chitas chamam a atenção: são maiores e de uma cor mais clara do que as de Masai Mara ou do Serengeti. É fascinante observar a forma como caçam lançando-se numa corrida de alta velocidade, encurralando a presa e devorando-a em seguida.
Uma longa estrada liga Kgalagadi a Letlhakeng, o último ponto onde pode abastecer combustível. Depois, seguindo para norte, chegará a Khutse, a porta sul da Reserva de Caça Central do Kalahari. A reserva, com uma área de 52.800km2, é uma das maiores áreas protegidas do continente africano e a segunda maior reserva de caça do mundo.
O leopardo, tal como o leão, repousa durante o dia e sai para caçar ao entardecer.
As pistas e os acampamentos dentro desta reserva recordam outras épocas e outra África. Podem passar-se alguns dias sem ver mais do que um ou dois veículos na área, mas novos animais, ainda mais extraordinários, mantêm a atenção dos visitantes. Por aqui, podem ver-se alcateias de mabecos, cudus-grandes, leopardos esquivos por vezes alimentando-se junto de uma árvore e, porventura, com sorte, até se consegue divisar uma cobra do Cabo (Naja nivea). Afinal, estas planícies secas estão repletas de vida!
Os san realizam as suas danças como uma forma de curar o corpo e a alma.
Nem tudo é prazer e satisfação no Kalahari. Nos acampamentos, grupos de homens san mostram as suas artes de caça e os métodos de adaptação ao deserto. Ao falar com eles, o viajante descobre o lado mais negro da sua história. A Reserva de Caça do Kalahari foi criada em 1961 para proteger o território tradicional de cinco mil bosquímanos, uma etnia que vive neste deserto há mais de dois mil anos. No início da década de 1980, prospectores identificaram aqui jazidas de diamantes e a sorte mudou para o povo san.
Reserva de caça do Kalahari. Os veículos que atravessam a reserva devem ir prevenidos com água e combustível para mais de um dia.
Em 1997, 2002 e 2005 quase todos os bosquímanos foram expulsos da reserva. O governo desmantelou casas, escolas e instalações sanitárias e destruiu poços e condutas de água. As comunidades foram realojadas em New Xade, a poucos quilómetros da saída ocidental da área protegida. Em 2014, quando o governo do Botswana proibiu a caça no país, deixou os san sem o seu meio de subsistência tradicional.
Vinte anos depois do primeiro desalojamento, com a entrada interdita nas suas terras, os san estão a perder as suas tradições e muitos jovens começaram a consumir drogas e álcool. Desde 2002 e com a ajuda de ONG internacionais, os san ganharam vários processos nos tribunais estatais, mas o governo do Botswana ainda não acatou as decisões judiciais.
A cosmovisão San. Num território tão extenso com quase duas vezes a área de Espanha, árido e com escassa precipitação, os san conseguiram prosperar por mais de vinte mil anos, embora, nos últimos 300 anos, tenham atravessado mais dificuldades: foram perseguidos e escravizados nos séculos XVII, XVIII e XIX e foram expulsos das suas terras no século XXI. É por esta razão que a protecção do património rupestre e oral que chegou aos nossos dias é essencial. As obras de Laurens van der Post (O Mundo Perdido de Calaári, de 1958) podem ser uma boa aproximação ao tema. Outra leitura empolgante é Kalahari. Uma Aventura No Deserto Africano, de Rogério Andrade Barbosa, com bastante informação sobre os povos locais. Se viajar até à África do Sul, é imprescindível a visita ao Museu da Cidade do Cabo para admirar as pinturas do chamado Painel de Linton. O Museu McGregor de Kimberley e o Museu Vryburg também exibem pinturas rupestres.
Um guia san do acampamento acompanha visitantes enquanto estes observam um grupo de leões no charco de Xoxo, um bebedouro artificial onde se junta a fauna local. O pequeno caçador olha com nostalgia para o leão e o charco de água, o valioso líquido a que já não tem acesso. Este deserto mistura tristes histórias humanas com a sua beleza quase sobrenatural.
Os dias têm outro ritmo na imensidão do Kalahari e fazem esquecer as preocupações que o viajante deixou na sua terra natal. A última noite de viagem costuma ter lugar já fora do parque e perto de Maun, a porta de entrada no delta do Okavango, de onde partem os voos de regresso a casa. O alojamento faz-se em Meno-A-Kwena, um lodge maravilhoso à entrada do Parque Nacional das Planícies de Makgadikgadi e um local extraordinário e paradoxal entre a África em estado bruto e as potencialidades turísticas do continente.
Submersos na piscina debruçada sobre o rio Boteti, os visitantes encontram-se rodeados do maior luxo e conforto que existe em África. A nostalgia do regresso começa a instalar-se e cada um sente já saudades da absoluta liberdade das enormes e solitárias planícies do Kalahari.
Planificar um safari no deserto do Kalahari.
Documentação: Passaporte e visto para a África do Sul. Para o Botswana, basta passaporte.
Como chegar: Há voos de Lisboa e do Porto para Joanesburgo e para a Cidade do Cabo. Todos os voos têm uma escala. A viagem mais rápida demora 15 horas.
Como deslocar-se: É aconselhado realizar o safari em dois veículos todo-o-terreno com reserva de combustível e água.
Moeda: Rand na África do Sul e pula no Botswana.
Idioma: Inglês.
Melhor época: A partir de Março, o calor já não é tão intenso. De Junho a Agosto (Inverno), as noites são muito frias.
Saúde: É conveniente estar vacinado contra o tétano, poliomielite, difteria e hepatite A.
botswanatourism.co.bw
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