mustang reino himalaio

Nas remotas e áridas terras altas do Norte do Nepal, um santuário budista recorda aos viajantes que o esclarecimento é possível. Com uma nova estrada aproximando o mundo exterior do antigo reino de Mustang, o seu líder oficioso teme a perda de um modo de vida.

Sobreviverão a sua cultura e o seu valioso tesouro de antiguidades tibetanas ao que se avizinha?

Texto: Mark Synnott
Fotografias: Cory Richards

O rei de Mustang irá recebê-lo agora.

Vestindo calças de ganga muito gastas e um casaco de tecido polar verde, o rei encontrava-se numa sala de pé-direito baixo, no seu palácio multissecular. Recitava um cântico budista e dedilhava com minúcia o seu fio de contas de oração. À sua volta, as paredes e pilares de madeira que sustentavam o telhado abatido estavam decoradas com pinturas requintadas de divindades budistas. Algumas envergavam trajes dourados e estavam alegremente reclinadas. Outras, empunhando espadas e rodeadas de chamas, uivavam de raiva. Estávamos em meados de Outubro e, aninhadas nestes sopés áridos da extremidade setentrional dos Himalaia, as frias paredes de adobe do palácio, atravessado por correntes de ar, indiciavam a chegada do Inverno.

Da janela abria-se uma perspectiva desafogada sobre a cidade amuralhada de Lo Manthang, a capital com seiscentos anos de história na lendária região nepalesa de Mustang, situada a apenas 15 quilómetros da fronteira com a China. Fileiras apertadas de edifícios de taipa caiados de branco estendiam-se lá em baixo. Espirais de fumo libertavam-se dos telhados. Os choupais agitavam-se com a brisa vespertina. A sudeste, um troço do rio Kali Gandaki abria-se como um leque no vale, correndo em direcção a uma muralha imponente de picos cobertos de neve.

No passado, este panorama esteve vedado a estrangeiros como eu. Durante a maior parte do século XX, o acesso a Mustang foi estritamente controlado pelo governo nepalês. Agora, porém, o rei convidara-me para o seu palácio em decadência para me mostrar um dos muitos desafios enfrentados pelo seu reino na época contemporânea.

O nome completo do rei é Jigme Singhi Palbar Bista, mas ele apresentara-se simplesmente como Jigme. Magro, com o cabelo grisalho ralo e uma energia que contradizia as suas seis décadas de vida, conduzira-me agilmente através de um corredor parcamente iluminado do palácio que a sua família se vira obrigada a abandonar depois de este sofrer danos graves causados pelo sismo de 2015. Subimos escadas de madeira que rangiam, navegámos entre buracos no chão e contornámos paredes decadentes decoradas com murais sujos de lama.

Apesar da decrepitude do palácio, a sala onde nos encontrávamos parecia bem conservada. Jigme reparou que eu observava o retrato de um homem e uma mulher vestindo trajes tradicionais tibetanos. “São os meus pais”, disse. “Esta era a sala de oração do meu pai. Ele foi o último rei de Mustang, o 25.º da sua linhagem. Eu sou o 26.º.”

À minha esquerda, um armário de madeira de sândalo revestido a folha de ouro estendia-se do chão ao tecto. Lá dentro, figurinhas de bronze retratando divindades budistas espreitavam pelas portas envidraçadas. Um conjunto de lamparinas votivas queimando manteiga de iaque enchiam a sala com o odor azedo típico dos templos budistas dos Himalaia.

Jigme explicou que as figurinhas eram mais do que meras obras de arte – eram espíritos vivos que vigiavam a sua família desde a Antiguidade. Antes de depositar cada estátua no altar, um alto sacerdote executava um ritual para lhe dar vida com um corpo, mente e discurso iluminados.

Agora, é Jigme quem vela por estas divindades, pelo menos na sua forma física. No mundo secular, um negociante de antiguidades no mercado negro poderia vender esta pequena colecção por uma fortuna considerável. Durante séculos, a ideia de alguém as levar não causava grande preocupação nesta cidade isolada e devotamente budista. No entanto, o mundo exterior subiu finalmente até à porta de entrada de Mustang e o roubo de peças de arte é apenas uma das novidades com que o rei tem de se preocupar.

Porta ancestral

Outrora um ponto de ligação essencial na Rota da Seda, a região de Mustang foi também uma encruzilhada de estudiosos budistas desde o século XI. Os mercadores que atravessavam Mustang comercializavam sal e lã tibetanos em troca de especiarias e cereais do subcontinente indiano até à década de 1950. A anexação chinesa do Tibete fechou então o corredor.

mapa Mustang

Nos séculos XV e XVI, o reino de Lo enriqueceu graças ao controlo exercido sobre a zona superior do Mustang. Os impostos sobre a rota comercial financiaram obras de arte religiosas e a construção de templos budistas.

mapa Mustang

Enquanto eu e Jigme partilhávamos este momento sossegado na sua sala de oração, consegui discernir o som baixo de equipamentos de terraplenagem que trabalhavam nas obras de melhoria da estrada que aproxima a cidade do Sul. A viagem de aproximadamente 450 quilómetros desde a capital do Nepal, Katmandu, demorava em tempos semanas a pé ou sobre o lombo de cavalo ou um iaque. Agora, pode ser concluída em escassos três dias de carro. Veículos com tracção às quatro rodas atravessam uma sucessão vertiginosa de ziguezagues numa estrada estreita e acidentada esculpida nos penhascos que revestem o desfiladeiro de Kali Gandaki. A estrada é uma melhoria que modifica o paradigma para o povo do Mustang, permitindo o fluxo de mercadorias baratas e facilitando o acesso a instalações clínicas modernas, entre outras comodidades.

Este fluxo de mercadorias e pessoas poderá em breve tornar-se uma torrente vigorosa de comércio. A norte, os chineses anteciparam uma nova rota comercial lucrativa e aguardam-na com uma estrada recém-asfaltada que liga o seu lado da fronteira a auto-estradas rumo a Pequim. Falta apenas juntar as estradas para dar início a uma nova era de comércio neste canto lendário do tecto do mundo. A questão para Jigme e para o povo de Mustang é se se conseguirá preservar a essência deste reino minúsculo que o tornou especial ao longo de séculos.

Seria adequado se Mustang viesse a tornar-se de novo um entreposto comercial. O palácio que Jigme me mostrara era uma relíquia da Idade de Ouro da cidade, remontando ao século XV. Naquela altura, a zona superior da região era conhecida como Reino de Lo. O seu povo, os Lo-pa, primos étnicos dos tibetanos, tinham acumulado grande riqueza graças ao controlo do comércio no vale de Kali Gandaki. Flanqueada a oeste pelo sétimo pico mais alto do mundo, o Dhaulagiri I (8.167 metros), e a leste pelo décimo mais alto, o Annapurna I (8.091 metros), o desfiladeiro oferecia uma das rotas comerciais mais directas entre os ricos depósitos de sal do planalto do Tibete e os mercados da Índia.

reino himalaio de Mustang

Clique na imagem para ver detalhes. Reconstituição conjectural, feita por especialistas. Ilustração: Fernando G. Baptista, Patricia Healy, Eve Conant, Riley D. Champine, NGM. Fontes: Ben Ayers; Sienna R. Craig, Dartmouth College; Luigi Fieni; John Harrison, Faculdade de Arquitectura de Liverpool; Christian Luczanits, SOAS Universidade de Londres; Tim Williams, Instituto de Arqueologia da UCL

Nestas rotas comerciais, os Lo-pa cobravam impostos às caravanas de iaques, as quais, além do sal, transportavam cevada, turquesas e glândulas de cervos almiscarados (utilizadas em medicamentos e perfumes). O nome Mustang deriva de uma palavra tibetana que significa “planície de desejo”, uma referência às riquezas que podiam aqui ser colhidas. Porém, antes de se transformar num entreposto comercial vibrante, Mustang fora uma encruzilhada importante para estudiosos budistas e peregrinos que se deslocavam entre a Índia e a China. Quando os ensinamentos budistas se fundiram com as práticas animistas da região, deram origem ao budismo tibetano. Ao longo do tempo, o reino acolheu a nova fé e construiu templos e mosteiros. Segundo a lenda local, o primeiro templo budista tibetano do reino foi construído a sul de Lo Manthang por um místico indiano que ali destruiu um demónio feminino. Actualmente, este templo, conhecido como Lo Gekar, encontra-se num bosque de salgueiros contorcidos, no fim de um desfiladeiro isolado, num local onde os autóctones acreditam que o coração dessa divindade demoníaca ainda se mantém aprisionado.

No século XVIII, com Estados poderosos a emergirem nas fronteiras de Mustang, o rei de Lo viajou para conhecer o rei do Nepal recém-unificado. Jigme descreveu como o seu predecessor levou oferendas de leite, sementes de mostarda e terra para demonstrar que Mustang tinha solos e riqueza para partilhar. Impressionado pelo gesto, o rei nepalês ofereceu protecção a Mustang em troca de impostos nominais e um tributo anual.

reino de Mustang

Uma carrinha chinesa expele fumo enquanto se desloca rapidamente para norte, rumo à fronteira, deixando atrás de si o maciço nepalês do Annapurna, coroado de neve. Quando esta estrada for unida à sua homóloga já concluída na China proporcionará uma das mais directas ligações terrestres entre Pequim e Nova Deli.

Dois séculos mais tarde, esta aliança salvaria Mustang da devastação causada pelo controlo chinês do Tibete, que começou pouco após a invasão liderada por Mao Tsé-Tung em 1950. Ao longo da década seguinte, enquanto milhares de templos budistas eram encerrados no Tibete, os tesouros de Mustang permaneceram incólumes. No entanto, o isolamento não evitou que o reino se visse arrastado para a Guerra Fria. No início da década de 1960, um exército secreto de guerrilheiros tibetanos treinados pela CIA entrou a pé em Mustang.

Com o apoio de armas e provisões descarregadas por meios aéreos norte-americanos e operadores de rádio, planearam ataques transfronteiriços contra o exército chinês e instalaram bases no Tibete. Apesar de terem interceptado alguns documentos secretos importantes, pouco conseguiram fazer e foram desarmados pelo governo nepalês em 1974. As repercussões políticas levaram o governo nepalês a selar a região com mais força do que nunca.

Foi neste mundo que Jigme foi criado, num reino proibido e isolado numa das paisagens mais inóspitas do planeta. Enquanto rei, o seu pai manteve-se atento à fronteira, mas a sua missão era manter a paz. Viajava constantemente entre aldeias, resolvendo conflitos locais e disputas de propriedade. “Raramente passava dois dias em casa”, contou-me. “Ouvia falar de um problema ou de uma discussão, saltava para cima do cavalo e lá ia ele. No reino, a sua palavra era a lei.”

Quando tinha 21 anos, Jigme saiu de Mustang para frequentar a faculdade em Katmandu. O pai visitava-o todos os invernos, fazendo a viagem de três semanas pelas montanhas como os seus antepassados tinham feito para honrar o tratado com o rei nepalês. “Ele levava produtos locais ao rei – tapetes de lã, cobertores e cavalos”, disse Jigme. “E enquanto lá se encontrava, apresentava contas de como os fundos governamentais eram gastos e pedia dinheiro para novos projectos.”

A situação começou a alterar-se em 2008. Após uma década de guerra civil, o Nepal adoptou uma nova Constituição, reinventando-se como república federal. Todas as monarquias foram abolidas e o pai de Jigme foi destituído. De repente, o papel para o qual Jigme se preparara foi eliminado, pelo menos oficialmente.

“Não me senti perturbado”, disse Jigme. “Percebi que os tempos estavam a mudar e que precisava de concentrar-me na nova vida que se abria agora. Nunca sentimos orgulho da nossa posição, nem recebemos qualquer pagamento por isso. Por isso, aceitámos a situação.”

reino himalaio de Mustang

Os textos sagrados estão guardados em pilhas sob representações de diversas formas do Buda num mosteiro, fortificado, e ainda são utilizados em cerimónias religiosas. Cada livro de folhas soltas contém páginas escritas à mão (muitas das quais ilustradas com pinturas) e capas de madeira gravadas à mão envoltas em tecido.

Quando o pai morreu, em 2016, Jigme foi empurrado para uma posição desconfortável. A maior parte dos Lo-pa considerava-o o rei legítimo, mas sem poder oficial. No entanto, continuava a depender dele conduzir rituais religiosos e ocasionalmente para arbitrar conflitos locais.

O modelo dessa veneração popular é simples. Naquele mesmo dia, enquanto caminhávamos pelas vielas estreitas de Lo Manthang, todos por quem passávamos tiravam o chapéu e curvavam a cabeça, com reverência. Jigme, sorridente e jovial, cumprimentava cada pessoa pelo nome.

Como consegue este rei, sem qualquer poder ou autoridade de facto, preservar o legado cultural do seu reino? O palácio decadente de Jigme é apenas um exemplo dos desafios a enfrentar. Supostamente construído em 1441 pelo filho de Ama-Pal, o lendário primeiro rei de Mustang, o palácio figura na lista da UNESCO de candidaturas a Património Mundial, mas, devido aos danos causados pelo terramoto e ao clima cada vez mais húmido, requer um investimento financeiro substancial para travar a sua decadência. Entretanto, para lá das paredes de Lo Manthang, os numerosos vales e desfiladeiros do reino acolhem muitos outros palácios e templos ancestrais, cada um habitado pelas suas próprias divindades e repleto dos seus próprios tesouros.

Falaram-me num sítio em particular – o convento budista abandonado de Gompa Gang, empoleirado num penhasco sobranceiro ao rio Kali Gandaki, a meia encosta sobre o vale. Na manhã seguinte, antes da alvorada, eu e Tsewang Jonden Bista, primo de Jigme, partimos na sua direcção.

Conduzimos ao longo do Kali Gandaki, enquanto ele fluía preguiçosamente ao longo de uma planície ampla. Rebanhos de cabras desgrenhadas trotavam junto da estrada, pastoreadas por rapazes e raparigas adolescentes cobertos de poeira. Socalcos cultivados revestiam o solo fértil ao lado do rio. Vivia-se a época de colheitas e famílias inteiras – incluindo crianças – eram conduzidas a searas verdes de trigo e pomares carregados de maçãs.

Estacionámos na base de uma falésia argilosa. Lá em cima, via-se a vertente esburacada com dezenas de aberturas semelhantes a janelas. Tsewang, que gere uma empresa de caminhadas, assumiu a sua faceta de guia turístico e explicou que Mustang é famoso por estas misteriosas “cavernas do céu”. Milhares foram escavadas em falésias por toda a região. A datação por carbono sugere que algumas foram abertas há mais de um milénio. Em 2008, uma equipa da National Geographic conseguiu aceder a uma gruta a duzentos metros de altura na falésia. No interior, encontrou uma câmara ampla onde se guardavam milhares de manuscritos com textos e imagens budistas e pré-budistas. Outras grutas continham esqueletos, mas ninguém sabe ao certo quem as escavou, nem a razão pela qual houve quem se esforçasse tanto para criar estes esconderijos.

reino himalaio de Mustang

O noviço Ngwang Phinjo segura um tesouro do passado de Mustang. A pintura em tela, chamada thangka, retrata uma divindade segurando a Lua, que contém a imagem de um coelho. Possivelmente utilizadas para meditação pessoal ou instrução monástica, estas pinturas correm risco de degradação, devida à passagem do tempo e à exposição aos elementos.

Subimos um trilho até uma cumeeira com vista sobre o rio. Aqui, um bosque denso de salgueiros rodeava uma estrutura de barro caiada de branco. Empurrámos um portão de ferro, abrindo-o, e entrámos no pátio. Havia uma velha bandeira de oração fixa a um poste de madeira instalado numa pilha de rochas e chifres de iaque deslavados. O galhardete esvoaçava ao vento enquanto Tsewang explicava como, durante a época áurea do convento no século XVIII, os peregrinos viajavam até este local vindos de toda a Índia, Nepal e Tibete para rezarem e receberem bênçãos. À medida que a prosperidade de Mustang diminuía, o convento caiu lentamente no abandono.

Entrámos por uma porta baixa no salão principal, onde uma estátua colossal do Maitreya Buda, com dois pisos de altura, dominava a divisão. A cabeça entrava por uma abertura no tecto numa segunda câmara, no segundo piso, onde raios de sol iluminavam o seu rosto. Tsewang explicou que esta encarnação do Buda representa um futuro professor que espalhará a sabedoria pelo mundo, após um longo período de fome e guerra. Depois, apontou a lanterna para a parede e vi que a divisão estava coberta de murais. Um retratava um Buda sentado de pernas cruzadas em cima de uma nuvem com uma mulher em tronco nu, segurando um búzio numa das mãos e oferecendo uma taça de prata com a outra. Havia inúmeras figuras em cenas complexas e coloridas, embora esbatidas. Enquanto avançávamos na escuridão, Tsewang apontou a luz para imagens que representavam o cosmo, a roda da vida e centenas de divindades. “Aqui está o Guru Rinpoche”, disse, iluminando uma figura com trajes azuis e vermelhos, o principal fundador do budismo tibetano, que se crê ter viajado por Mustang no século VIII.

Observando-as mais de perto, reparei que muitas das pinturas se desintegravam. Uma delas apresentava-se crivada de buraquinhos. Outra coberta de rachas e com algumas bolhas sob o estuque. Durante séculos, esta região junto do planalto do Tibete recebeu pouca chuva, mas o clima está a mudar rapidamente e a estrutura de taipa enfrenta agora níveis de humidade com os quais nunca se previu que tivesse de lidar.

“No passado, a chuva e a neve derretida só se infiltravam numa camada de tijolo”, disse Tsewang. “Agora, há menos tempestades, mas mais fortes. Por vezes, temos uma quantidade de neve equivalente a um Inverno inteiro numa grande tempestade de Primavera. Quando tudo derrete ao mesmo tempo, é isto que acontece.”

A humidade infiltra-se nas paredes e penetra no interior seco. Quando a água se evapora, cristais de sal formam-se atrás da tinta, provocando a descamação dos murais. Este processo está a ocorrer em todos os Himalaia e é virtualmente impossível travá-lo, uma vez iniciado. “Até o clima conspira contra nós”, suspirou Tsewang.

Numa passagem atrás do Buda colossal, Tsewang apontou para uma parte da anca da estátua toscamente remendada com lama. “Há cerca de 20 anos, fomos invadidos por ladrões que nos roubaram os gsung”, disse. São os tesouros que consagram e dão vida à estátua.

Tradicionalmente, as esculturas rituais tinham o centro oco, independentemente do seu tamanho. Durante o processo de consagração, eram preenchidas com orações escritas e artefactos de valor como contas de ágata, figurinhas de bronze, ouro e pedras preciosas. O tesouro ajuda a dar vida à estátua, mas os objectos também podem ser utilizados para reconstruir o mosteiro caso este seja danificado ou destruído.

Segundo Charles Ramble, um académico que investigou o roubo, e alguns líderes locais, um lama tibetano chegou a Gompa Gang por volta do ano 2000 e ofereceu-se para reinstaurar uma comunidade de freiras. Entusiasmados com a oferta, os representantes locais deixaram-no ver o karchak, um livro que inclui factos essenciais sobre o edifício, incluindo a localização dos gsung. Depois, o lama visitante partiu, prometendo regressar em breve. Pouco depois, descobriu-se o buraco na anca do Buda. Não há registos do que estaria escondido dentro da estátua, mas os tesouros que há séculos davam vida a esta divindade tinham desaparecido. Nunca mais houve notícias do lama. Desde então, pensa-se que Gompa Gang já não tem poder. Tsewang disse-me que quase ninguém vai lá rezar.

“Viu o autocarro?”, perguntou-me Jigme certa tarde, enquanto estávamos sentados a beber chá. Horas mais cedo, tínhamos de facto visto um autocarro fabricado na Índia subir a custo a poeirenta estrada ziguezagueante que acede a Lo Manthang. O autocarro saíra da vila de Jomsom, 95 quilómetros de carro a sul de Lo Manthang, antes da alvorada, e todos os lugares estavam ocupados por autóctones e um punhado de turistas nepaleses. Uma grande bandeira decorada com um texto nepalês fora colocada na frente achatada do veículo, anunciando que era o primeiro autocarro público a empreender a viagem. “Quando era pequeno, nunca imaginei que um dia fosse possível conduzir até aqui a partir de Katmandu”, disse Jigme.

reino himalaio de Mustang

Um grupo de oração de mulheres Lo-pa idosas reúne-se numa sala exterior de Jampa Lhakhang, um templo de Lo Manthang, para comer papas e recitar mantras. Tendo vivido numa época de grandes mudanças, a sua geração poderá incluir alguns dos últimos moradores permanentes de Mustang.

Essa percepção começara a mudar. À medida que a economia da China crescia exponencialmente e outras regiões do Nepal se desenvolviam, Jigme e todas as outras pessoas de Mustang aperceberam-se de que a existência de uma estrada era inevitável. Com efeito, estamos sentados no exemplo mais tangível dessa conclusão: o Royal Mustang Resort. Jigme mandou construir este hotel de 22 quartos num terreno exterior às muralhas da cidade de Lo Manthang que lhe fora deixado em herança pelo pai. Assemelha-se a uma cidadela caiada de branco, com torres de vigia em cada canto. O seu amplo terraço no telhado oferece uma perspectiva fantástica sobre o vale de Kali Gandaki. Sentámo-nos em elegantes cadeirões de cabedal, beberricando o nosso chá em frente de um forno a lenha com a lareira crepitante, alimentada por ramos de salgueiro secos.

Em 1992, os turistas foram finalmente autorizados a visitar Mustang, embora o número de licenças emitidas por ano seja reduzido. O ritmo tem-se mantido lento, mas Jigme está confiante de que isso mudará. E enquanto o Nepal é famoso pelas expedições ao Evereste, grande parte da receita de 480 milhões de euros do sector turístico do país é gerada por caminhantes e peregrinos religiosos para os quais Mustang tem um encanto especial. Mustang possui paisagens espectaculares, mas é também uma janela para a cultura tibetana que praticamente se evaporou dos outros locais.

Apesar da visão optimista de Jigme, o retorno deste investimento ainda parecia distante. Naquele momento, eu e Tsewang éramos os únicos hóspedes do hotel. Jigme, porém, não era o único a apostar no turismo. Aquando da minha visita, havia dezenas de hotéis em Lo Manthang, uma cidade com apenas 1.300 residentes oficiais. E o clima rigoroso do Mustang só permite visitas seis meses por ano. As temperaturas de Inverno descem muito abaixo de zero, congelando os canos e impossibilitando o uso das casas de banho dos hotéis. Durante o Verão, os deslizamentos de terra desencadeados pelas monções bloqueiam com frequência as estradas durante semanas.

Embora Jigme tenha esperança de que a estrada traga pessoas a Lo Manthang, ela também facilita a saída da população da cidade. Nos últimos anos, muitos jovens têm partido em busca de sorte em Katmandu, no Japão, na Coreia e nos EUA. Há muito que a economia do vale depende dos grandes rebanhos de cabras e iaques, mas os trabalhos duros estão a perder o interesse. Segundo um censo recente, mais de dois mil Lo-pa vivem na cidade de Nova Iorque, um número superior à totalidade da população de Lo Manthang. Jigme prevê que, se esta tendência se mantiver, a região perderá 80% da sua população nos próximos 20 anos.

O cenário é agravado pelo facto de a promessa do turismo ter provocado uma especulação imobiliária desenfreada. “No passado, havia uma regra tácita segundo a qual os Lo-pa não podiam vender propriedades a estrangeiros”, explicou Jigme. No entanto, este tabu começou a ser ignorado com os novos valores imobiliários. Jigme disse-me que um lote de 0,4 hectares de terra de pasto coberta de rochas, a pouca distância do sítio onde nos encontramos sentados, foi recentemente vendido por 675 mil euros. “Podemos culpar um agricultor que só ganha 675 euros por ano por vender e se mudar para Katmandu ou Nova Iorque?”, perguntou.

Eu referira a Jig Me que queria visitar a fronteira chinesa. Por isso, certo dia, ele arranjou-me um lugar com Tsewang num veículo 4x4 pela manhã. Viajámos por uma estrada de gravilha que nos levou para norte, rumo a uma cordilheira de colinas castanhas, com as cristas cobertas de neve. Ao fim de uma hora, deslizámos até um posto de controlo do exército nepalês. Um jovem soldado viu-me no banco de trás, franziu o sobrolho e disse algo em nepalês. “Ele diz que os estrangeiros não podem visitar a fronteira”, disse Tsewang.

Voltámos para trás e páramos alguns quilómetros mais abaixo para comer massa num pequeno restaurante. Quando ouviu a história, o proprietário disse-nos que havia um caminho alternativo até à fronteira. “Posso mostrar-vos”, disse. Pouco depois, eu e ele estávamos a acelerar por um trilho poeirento na moto do homem, comigo atrás. Rumando a norte, subimos uma estrada esburacada aos ziguezagues que nos levou montanha cima, para lá de Kora La, a 4.660 metros de altitude. Alguns quilómetros depois da portela, a estrada terminava abruptamente numa vedação de arame farpado que se estendia sobre a terra árida até onde a nossa vista conseguia alcançar.

O vento uivava. Um sinal dizia, em inglês: “No Parking in the No Man’s Land” [Proibido estacionar na Terra-de-Ninguém] e “No Photography” [Proibido fotografar]. Alguns turistas nepaleses, que também tinham chegado de moto, ignoraram o sinal e tiraram fotografias em redor de um pilar de betão que assinalava a fronteira entre o Nepal e a China. Cerca de cem metros atrás da vedação, do lado chinês, três edifícios monolíticos e revestidos com algo que aparentava ser mármore branco bloqueavam a nossa vista para norte. Diversas câmaras de vídeo montadas em postes de metal estavam apontadas na nossa direcção.

Mais tarde, encontrei imagens de satélite que revelavam o que existia para lá dos gigantescos edifícios de mármore – estruturas que os autóctones diziam ser casernas militares e uma longa faixa negra de asfalto dirigindo-se para norte, atravessando o planalto tibetano.

Não é mera coincidência que o surto construtivo de estradas no Nepal ocorra em simultâneo com a Iniciativa de Circunvalações e Estradas, uma colossal campanha de infra-estruturas do presidente chinês Xi Jinping, concebida para expandir a influência económica e política da China da Ásia Oriental à Europa. Quando estiver concluída, incluirá múltiplas estradas nos Himalaia, mas talvez nenhuma ofereça uma rota mais directa para a Índia do que aquela que percorri desde Katmandu até este local na fronteira.

A isso acresce, em segundo plano, a descoberta de uma grande jazida de urânio em Mustang, em 2014. A China está a construir centrais nucleares para satisfazer as suas crescentes necessidades energéticas e cumprir as suas promessas de reduzir as emissões de carbono. Embora as minas ainda não tenham aberto, parece lógico que, a determinada altura, o urânio se torne mais um dos tesouros cobiçados de Mustang.

Nessa noite, Jigme convidou-me para jantar no Royal Mustang Resort. Ao lado da nossa mesa, um aquecedor a propano protegia-nos do frio na sala decorada com pinturas tibetanas e fotografias da família real, em tonalidades de sépia.

Enquanto comíamos, Jigme previu que, dentro de poucos anos, os chineses construiriam um pólo empresarial em Kora La, com hotéis de estilo ocidental, casinos e talvez um aeroporto. “O turismo vai crescer”, disse. E uma expansão do turismo e da indústria pode ser exactamente aquilo de que Mustang precisa. Contudo, como reconheceu, essa expansão desencadearia também um maremoto de influências externas que poderiam absorver aquilo que significa ser Lo-pa: esse era um risco que todos os Lo-pa com quem falei achavam ter de aceitar. “Para salvarmos a nossa cultura, precisamos do turismo”, disse Jigme. “E para termos turismo, precisamos da estrada.”

Na minha última manhã em Mustang, encontrei-me com Jigme no seu hotel para tomar o pequeno-almoço. Enquanto bebíamos café e comíamos ovos, ele disse-me que tinha algo especial para me mostrar. À semelhança de muitas pessoas no Mustang, Jigme sentia relutância em partilhar informação sobre os seus próprios artefactos. Até à data, disse-me, não deixara ninguém ver os tesouros que herdara da sua dinastia real.

Levou-me a um local que prometi não revelar. Abrimos um alçapão de madeira que rangia no soalho e descemos uma escada tosca. Acendemos a lanterna dos nossos frontais e segui-o cuidadosamente até uma divisão sem janelas. Tivemos de nos agachar para não bater com a cabeça nas vigas de madeira. O ar estava estagnado e carregado de poeira. Jigme acendeu uma lamparina de manteiga de iaque e, na escuridão, apareceu uma fileira de estátuas de bronze, quase em tamanho real – um panteão de divindades, decoradas com ouro, prata, turquesas e coral. Brilhavam sob a luz amarela. Mais adiante, nas sombras, consegui ver que o resto da sala estava cheio de caixotes de madeira cobertos de pó, como se fossem caixotes de carga empilhados no porão de um navio.

“Herdei isto tudo”, disse Jigme, acompanhando as palavras com um gesto amplo. “E tenho de fazer algo grandioso. Estou a mostrar-lho porque o meu sonho é criar um museu vivo onde possa exibir estas peças e mantê-las vivas. Depois, um dia, poderei dá-las aos meus filhos. Mas para isso é preciso muito dinheiro e eu não o tenho.” Rindo-se, acrescentou: “Aquilo de que preciso mesmo é de uma máquina de dólares.”

Por ora, Jigme pouco podia fazer, excepto rezar e ter esperança de, um dia, encontrar uma forma de proteger a sua identidade. Talvez a estrada venha a trazer turistas suficientes para encher o seu hotel e possa tornar-se a máquina de dólares de que ele precisa para preservar os tesouros da família. Nada disto parecia incomodá-lo enquanto se aproximava das estátuas e inclinava a cabeça para acender uma segunda lamparina. Enquanto rezava baixinho em tibetano, interroguei-me se ele sentiria o corpo, o discurso e a mente destas divindades ancestrais fluindo até si.

Enquanto o pavio crepitava e a chama projectava formas escuras nas paredes esfareladas à nossa volta, pensei neste reino – não apenas nos seus tesouros históricos, mas também na fascinante grandiosidade da sua paisagem selvagem e na sua quietude apaziguadora da alma. Há aqui tanto para preservar. E ainda mais a perder.

Mark Synnott

A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso planeta, financia as expedições do explorador Mark Synnott desde 1999 e as missões fotográficas do explorador Cory Richards desde 2014. Ilustração de Joe Mckendry.

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